
Carta de Amor
Encontrada no carro do metrô, e dizia assim:
“Estou pensando seriamente em declarar greve de mim a você, por tempo  indeterminado. Não me pergunte os motivos. Você sabe. Ou é melhor que  não fique sabendo, porque assim a greve é mais completa, e eu quero  justamente  ser um grevista mais total do que os outros grevistas que  brigam por salário decente e condições decentes de trabalho.
Quero que você fique perturbada e confusa, sem saber o que eu estou  fazendo ou deixando de fazer, e a todo instante a se perguntar: “Que  greve é esta? Em que consiste? Quando vai acabar? Que coisa mais  idiota.” É isso mesmo:  você achará idiota a minha greve, porque não a  entenderá. Então, o menor gesto que eu fizer, a palavra mais sem  significação, tudo se transformará para você em enigma, você me sentirá o  cara mais misterioso do mundo, por que não dizer:  o mais tenebroso.
Seu pequenino e encantador cérebro de colibri dará voltas a si mesmo e  não perceberá o sentido da minha abstenção oculta - de quê? E eu  continuarei firme, inflexível, grevista, sem expor minhas  reinvidicações. De jeito nenhum.
Então você se desmanchará em suspiros, se enrodilhará toda a meus  pés, pedirá perdão de faltas não cometidas, e que eu não sabia que você  fosse capaz de cometer. Confessará também as cometidas, mas eu não darei  bola e continuarei a tratar você da maneira ambígua que estou  anunciando. Você será um poço de petróleo repleto de amor, eu recusarei  sondar esse poço inesgotável, ou finjo que estou sondando mas com  vontade de não encontrar o menor indício de petróleo. Esta fase será  curta, pois não quero abusar de sua amorosidade oferecida. Passemos à  segunda fase.
Você se irritará comigo e, perdendo a paciência, me dirá duas ou três  coisas ácidas.Jogará um copo na minha direção. Ou uma xícara, dessas do  trivial do café. Eu desviarei o corpo do copo ou da xícara, e se você  me jogasse em cima um samovar seria a mesma coisa: não desistiria da  greve. Aí você adotava em princípio a idéia de enlouquecer. Só em  princípio. Eu é que estou pinel - concluiria você. Conclusão  provisória, a ser confirmada pelo psiquiatra, mas o psiquiatra, que é  meu amigo, lhe responderia: Ele é assim mesmo, isso passa.
Não vai passar não, talvez minha greve seja eterna, e nunca mais  seremos aqueles namorados que conquistaram o Oscar de melhor idílio no  Festival de Angra dos Reis. Continuaremos, sim, dois namorados unidos  por esse laço invisível da greve, como o empresário está cada vez mais  preso ao assalariado, ou este àquele, quando entram em conflito de  interesses, mas esta nossa categoria não dá prêmio…
A terceira fase…Haverá terceira fase? Você apelará para nossos amigos  comuns, ou para o Ministério da Comunicação Social, que aliás não  existe, existe só o Ministério, não a Comunicação? E que é que eles  podem fazer para acabar com uma greve tão fechada, tão silenciosa, tão  sutil, que nem a reforma da legislação trabalhista, por engenhosa que  seja, lhe dará remédio?
Bem, se você faz mesmo questão fechada, se sua vida ficar dependendo  da elucidação das causas primárias e outras, da minha greve, então eu  deixo no carro do metrô um envelope lacrado, com os seguintes dizeres (  no verso) :
“Razões e sem razões de minha greve particular - para ser aberto no caso de uma explosão nuclear”
Não adianta abrir, nessa emergência? Nem haverá quem abra o envelope?  Quem sabe? Sempre resta um sobrevivente, ou vários. A Bíblia o  demosntra. Eu não posso revelar o meu segredo nem diante de uma comissão  de inquérito parlamentar. Minha greve é absoluta. Tem paciência,  garota, não faço por menos, nem admito intervenções no meu sindicato.  Meu sindicato sou eu.
Tem uma coisa. Não deduza de tudo isto que estou declarando guerra.  Guerra é guerra, greve é outra coisa, e a minha então é outríssima. Sem  quebra, atenuação ou extinção de amor. Pois você não vê, boba,  bobíssima, que isto ainda é amor, é mais amor do que amor, é minha forma  de amar você, de um jeito só meu, que nem você mesma é capaz de  apreender em sua mineral abismalidade?   “Dio, como te amo! Até.”
Carlos Drummond de Andrade (Boca de Luar)
Gente amei essa crônica do Drummond, daí resolvi postar! (tenho que comprar esse livro urgentemente!)
ResponderExcluir"que isto ainda é amor, é mais amor do que amor, é minha forma de amar você, de um jeito só meu"
ResponderExcluirMaravilhoso!!!
Adorei, muito boa! Supreendente :)
ResponderExcluir"Então você se desmanchará em suspiros, se enrodilhará toda a meus pés, pedirá perdão de faltas não cometidas, e que eu não sabia que você fosse capaz de cometer."
ResponderExcluirAmei!