segunda-feira, 30 de abril de 2012

Mundo grande


Drummond


Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.

Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.

Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem… sem que ele estale.

Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma, não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! Vai inundando tudo…
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos – voltarão?

Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)

Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.

Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.

Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.

Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
– Ó vida futura! Nós te criaremos.

Por natureza e ofício

"Comovo-me em excesso, por natureza e por ofício. Acho medonho alguém viver sem paixões."
Graciliano Ramos

domingo, 29 de abril de 2012

arauto negro

(…)
Por que será que temos tanto medo das palavras? Não tanto da palavra escrita, mas da palavra pronunciada. Por que será que ainda acreditamos em palavras mágicas, rezas, abracadabra? Será que se eu agora, nesta gravação, em vez de te contar esta história, simplesmente parar por uns segundos, respirar fundo e te dizer: quero que você morra. Será que isso vai te ajudar a morrer? Será que isso vai te empurrar? Não sei. Sei apenas que, naquele momento, as palavras da mãe de Karen, por mais melodramáticas e teatrais que fossem, tiveram algum efeito em mim. Como quando você assiste a um filme, você sabe que é tudo mentira, fingimento, mas mesmo assim você sente medo e tristeza e alegria e o que for. Por que será que a gente, mesmo sabendo que é ilusão, na hora de sentir sente de verdade? Será apenas catarse? Ou será uma necessidade muito forte, e muito profunda, de viver algo especial? A necessidade dos grandes sentimentos, amor, ódio, honra, bravura.
Érika liga de novo o rádio, desta vez encontra rapidamente uma estação. Uma ópera. Érika diminui o volume, a música continua enquanto ela fala.
Mas, como te dizia, a mãe de Karen pegou a bolsa e foi embora. Eu fiquei lá, sem conseguir dizer nada, sem conseguir me levantar. Fiquei lá o resto da tarde. Me sentia, de repente, tão frágil, desamparada. É tão fácil qualquer coisa nos atingir. Até mesmo uma frase teatral. Fiquei pensando, talvez eu seja mesmo um monstro. Você acha? Mas o que é exatamente um monstro? Lembro que fui ver no dicionário, monstro é por definição um ser contrário à natureza. Algo que não deveria existir, que não estava programado. O monstro é, portanto, uma espécie de falha da evolução. Por outro lado, há a origem da palavra. Fui procurar a etimologia. E sabe o que eu achei? Lá dizia que originalmente monstro era o ser que vinha anunciar a vontade dos deuses. Curioso, não? Eu gosto dessa definição, porque no fundo ela nos redime, o monstro é apenas um arauto, um arauto negro, nada mais. E nada do que ele faça poderá mudar a vontade dos deuses, entende? Ou seja, o monstro não tem culpa da mensagem que carrega. Mais que isso. Sem ele ficaríamos incomunicáveis. Sem ele, ao entrarmos na sala escura na expectativa da música, do concerto, encontraríamos, aí sim, apenas o silêncio.
Érika desliga o rádio.
Carola Saavedra, Paisagem com dromedário

quarta-feira, 25 de abril de 2012

As meninas

"Que beleza, que força, que matéria viva e lancinante em As Meninas".
Carlos Drummond de Andrade


(Lygia Fagundes Telles)

Alguma coisa de sagrado

"O livro pode estar cheio de coisas erradas, podemos não estar de acordo com as opiniões do autor, mas mesmo assim conserva alguma coisa de sagrado, algo de divino, não para ser objecto de respeito supersticioso, mas para que o abordemos com o desejo de encontrar felicidade, de encontrar sabedoria”.
Ensaio: O Livro, Jorge Luís Borges

sexta-feira, 20 de abril de 2012

XV Encontro


Fuga

Retirantes. Cândido Portinari.


Saíram de madrugada. Sinha Vitoria meteu o braço pelo buraco da parede e fechou a porta da frente com a taramela. Atravessaram o pátio, deixaram na escuridão o chiqueiro e o curral, vazios, de porteiras abertas, o carro de bois que apodrecia, os juazeiros. Ao passar junto às pedras onde os meninos atiravam cobras mortas, Sinha Vitoria lembrou-se da cachorra Baleia, chorou, mas estava invisível e ninguém percebeu o choro. [...]
Agora Fabiano examinava o céu, a barra que tingia o nascente, e não queria convencer-se da realidade. Procurou distinguir qualquer coisa diferente da vermelhidão que todos os dias espiava, com o coração aos baques. As mãos grossas, por baixo da aba curva do chapéu, protegiam-lhe os olhos contra a claridade e tremiam. Os braços penderam, desanimados.
- Acabou-se.
[...] Que iriam fazer? Retardaram-se, temerosos. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, Sinha Vitória e os dois meninos.


Vidas Secas
, Graciliano Ramos

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Baleia



"Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes."


Vidas Secas
, Graciliano Ramos

quarta-feira, 11 de abril de 2012

estrelas apagadas


Deu-se aquilo porque Sinha Vitória não conversou um instante com o menino mais velho. Ele nunca tinha ouvido falar em inferno. Estranhando a linguagem de Sinha Terta, pediu informações. Sinha Vitória, distraída, aludiu vagamente a certo lugar ruim demais, e como o filho exigisse uma descrição, encolheu os ombros. O menino foi à sala interrogar o pai, encontrou-o sentado no chão, com as pernas abertas, desenrolando um meio de sola.
- Bota o pé aqui. A ordem se cumpriu e Fabiano tomou medida da alpercata : deu um traço com a ponta da faca atrás do calcanhar, outro adiante do dedo grande. Riscou em seguida a forma do calçado e bateu palmas
- Arreda.
O pequeno afastou-se um pouco, mas ficou por ali rondando e timidamente arriscou a pergunta.
Não obteve resposta, voltou à cozinha, foi pendurar-se à saia da mãe:
- Como é?
Sinha Vitória falou em espetos quentes e fogueiras.
- A senhora viu?
Aí Sinha Vitória se zangou, achou-o insolente e aplicou-lhe um cocorote.
O menino saiu indignado com a injustiça, atravessou o terreiro, escondeu-se debaixo das catingueiras murchas, à beira da lagoa vazia.
A cachorra Baleia acompanhou-o naquela hora difícil. Repousava junto à trempe, cochilando no calor, à espera de um osso. Provavelmente não o receberia, mas acreditava nos ossos, e o torpor que a embalava era doce. Mexia-se de longe em longe, punha na dona as pupilas negras onde a confiança brilhava. Admitia a existência de um osso graúdo na panela, e ninguém lhe tirava esta certeza, nenhuma inquietação lhe perturbava os desejos moderados. Às vezes recebia pontapés sem motivo. Os pontapés estavam previstos e não dissipavam a imagem do osso.
Naquele dia a voz estridente de Sinha Vitória e o cascudo no menino mais velho arrancaram Baleia da modorra e deram-lhe a suspeita de que as coisas não iam bem. Foi esconder-se num canto, por detrás do pilão, fazendo-se miúda entre cumbucos e cestos. Um minuto depois levantou o focinho e procurou orientar-se [...], como nunca se impacientava, continuou a pular, ofegante, chamando a atenção do amigo. O pequeno sentou-se, acomodou nas pernas a cabeça da cachorra, pôs-se a contar-lhe baixinho uma história. Tinha um vocabulário quase tão minguado como o do papagaio que morrera no tempo da seca. Valia-se, pois, de exclamações e de gestos, Baleia respondia com o rabo, com a língua, com movimentos fáceis de entender.
Todos o abandonavam, a cadelinha era o único vivente que lhe mostrava simpatia. [...]
- Inferno, inferno. Não acreditava que um nome tão bonito servisse para designar coisa ruim. E resolvera discutir com Sinha Vitória. Se ela houvesse dito que tinha ido ao inferno, bem. Sinha Vitória impunha-se, autoridade visível e poderosa. Se houvesse feito menção de qualquer autoridade invisível e mais poderosa, muito bem. Mas tentara convencê-la dando-lhe um cocorote, e isto lhe parecia absurdo. [...]
Entristeceu. Talvez Sinha Vitória dissesse a verdade. O inferno devia estar cheio de jararacas e suçuaranas, e as pessoas que moravam lá recebiam cocorotes, puxões de orelhas e pancadas com bainha de faca. [...] Repetiu que não havia acontecido nada e tentou pensar nas estrelas que se acendiam na serra. Inutilmente. Aquela hora as estrelas estavam apagadas.

Trecho de Vidas Secas, Graciliano Ramos

terça-feira, 3 de abril de 2012

Família

Família. Tarsila do Amaral.


"Agora, Fabiano conseguia arranjar as ideias. O que o segurava era a família. Vivia preso como um novilho amarrado ao mourão, suportando ferro quente. Se não fosse isso, um soldado amarelo não lhe pisava o pé não. O que lhe amolecia o corpo era a lembrança da mulher e dos filhos. Sem aqueles cambões pesados, não envergaria o espinhaço não, sairia dali como onça e faria uma asneira. Carregaria a espingarda e daria um tiro de pé de pau no soldado amarelo. Não. O soldado amarelo era um infeliz que nem merecia um tabefe com as costas da mão. Mataria os donos dele. Entraria num bando de cangaceiros e faria estrago nos homens que dirigiam o soldado amarelo. Não ficaria um para semente. Era a ideia que lhe fervia na cabeça. Mas havia a mulher, havia os meninos, havia a cachorrinha."


Trecho de Vidas Secas, Graciliano Ramos