segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Dois mascarados


Noite dos Mascarados

Chico Buarque
- Quem é você?
- Adivinha se gosta de mim!
Hoje os dois mascarados
Procuram os seus namorados
Perguntando assim:
- Quem é você, diga logo...
- Que eu quero saber o seu jogo...
- Que eu quero morrer no seu bloco...
- Que eu quero me arder no seu fogo!
- Eu sou seresteiro, poeta e cantor.
- O meu tempo inteiro, só zombo do amor.
- Eu tenho um pandeiro.
- Só quero um violão!
- Eu nado em dinheiro.
- Não tenho um tostão. Fui porta-estandarte, não sei mais dançar...
- Eu, modéstia à parte, nasci pra sambar!
- Eu sou tão menina...
- Meu tempo passou...
- Eu sou Colombina!
- Eu sou Pierrô!
Mas é Carnaval! Não me diga mais quem é você!
Amanhã tudo volta ao normal.
Deixa a festa acabar, deixa o barco correr,
Deixa o dia raiar que hoje eu sou
Da maneira que você me quer.
O que você pedir eu lhe dou,
Seja você quem for, seja o que Deus quiser!
Seja você quem for, seja o que Deus quiser!

Obs.: Essa música só tem graça quando a gente escuta! Então, ouçam aqui na voz de Chico, Nara Leão e MPB-4.

Os tambores

Eu, Zarité Sedella, do alto dos meus quarenta anos, posso dizer que tive mais sorte do que as outras escravas. Vou viver muito e a minha velhice será feliz porque a minha estrela – minha z'étoile – brilha também quando a noite está nublada. Conheço o prazer de estar com o homem escolhido pelo meu coração quando as suas mãos grandes despertam a minha pele. Tive quatro filhos e um neto, e os que estão vivos são livres. Minha primeira lembrança de felicidade, quando era uma pirralha magrela e desgrenhada, é a de me mexer ao som dos tambores, e essa é também a minha mais recente felicidade, porque na noite passada estive na praça do Congo dançando e dançando, sem pensamentos na cabeça, e hoje o meu corpo está quente e cansado. A música é um vento levado pelos anos, pelas lembranças e pelo temor, esse animal preso que carrego dentro de mim. Com os tambores desaparece a Zarité de todos os dias e volto a ser a menina que dançava quando mal começava a andar. Bato no chão com as solas dos pés, e a vida sobe pelas minhas pernas, percorre meus ossos, apodera-se de mim, acaba com a minha tristeza e adoça a minha memória. O mundo estremece. O ritmo nasce de uma ilha sob o mar, sacode a terra, atravessa-me como um relâmpago e segue em direção ao céu, levando as minhas aflições para que Papa Bondye as mastigue, engula e me deixe leve e feliz. Os tambores vencem o medo. Os tambores são a herança da minha mãe, a força da Guiné que está no meu sangue.

Trecho de A ilha sob o mar, de Isabel Allende.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Coragem, às vezes, é desapego.



Há um momento sem sol em que a gente percebe que o amor anoiteceu. O coração enxovalhado, ferido, está exaurido pela aflição de tanto esticar-se para tentar alcançar o fio da linha que se soltou e amarrá-lo de novo na pontinha dos sonhos. No fundo, ele sabe que não o alcançará: voa longe demais da possibilidade de alcance. Se ainda insiste, buscando impulso para pulos cansados, é porque aquele amor, exatamente aquele, ainda é tudo o que ele mais deseja. Porque não sabe onde colocará as mãos, o encanto, o olhar, depois daquele instante. Porque não lhe importa que outro amor venha ao seu encontro. É aquele, aquele lá, que ainda o descompassa.

Vida marejada, nó apertado na garganta das coisas, chega finalmente o momento em que desejamos apenas o sossego que costuma vir com a aceitação.
Coragem, às vezes, é desapego. É parar de se esticar, em vão, para trazer a linha de volta. É permitir que voe sem que nos leve junto. É aceitar que a esperança há muito se desprendeu do sonho. É aceitar doer inteiro até florir de novo. É abençoar o amor, aquele lá, que a gente não alcança mais.



Ana Jácomo

assumo minha solidão


E eis que sinto que em breve nos separaremos. Minha verdade espantada é que eu sempre estive só de ti e não sabia. Agora sei: sou só. Eu e minha liberdade que não sei usar. Grande responsabilidade de solidão. Quem não é perdido não conhece a liberdade e não a ama. Quanto a mim, assumo minha solidão. Que às vezes se extasia diante de fogos de artificio. Sou só e tenho que viver uma certa glória íntima que na solidão pode se tornar dor. E a dor, silêncio. Guardo seu nome em segredo. Preciso de segredos para viver.

Clarice Lispector

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Happy Friday


"No fim tu hás de ver que as coisas mais leves são as únicas que o vento não conseguiu levar: um estribilho antigo, um carinho no momento preciso, o folhear de um livro de poemas, o cheiro que tinha um dia o próprio vento…”

Mario Quintana

Viva!


"Para manter-me vivo, saio à procura de ilusões”

Caio Fernando Abreu

O meu pecado


"Meu Deus, me dê a coragem de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites, todos vazios de Tua presença. Me dê a coragem de considerar esse vazio como uma plenitude. Faça com que eu seja a Tua amante humilde, entrelaçada a Ti em êxtase. Faça com que eu possa falar com este vazio tremendo e receber como resposta o amor materno que nutre e embala. Faça com que eu tenha a coragem de Te amar, sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo. Faça com que a solidão não me destrua. Faça com que minha solidão me sirva de companhia. Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar. Faça com que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo. Receba em teus braços meu pecado de pensar”

Clarice Lispector

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

O seu viver é ralo

Quanto à moça, ela vive num limbo impessoal, sem alcançar o pior nem o melhor. Ela somente vive, inspirando e expirando, inspirando e expirando. Na verdade - para que mais que isso? O seu viver é ralo. Sim. Mas por que estou me sentindo culpado? E procurando aliviar-me do peso de nada ter feito de concreto em benefício da moça? Moça essa - e vejo que já estou quase na história - moça essa que dormia de combinação de brim com manchas bastante suspeitas de sangue pálido. Para adormecer nas frígidas noites de inverno, enroscava-se em si mesma, recebendo-se e dando-se o próprio parco calor. Dormia de boca aberta por causa do nariz entupido, dormia exausta, dormia até o nunca.
.
Trecho de A Hora da Estrela, de Clarice Lispector.
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*Imagem: Cena do filme A Hora da Estrela.

Nós dois

Crença
(Lenine)

Eu só penso em você
Depois que eu penso em mim
E eu penso tanto em nós dois
Sei que é de cada um
E acho até comum
Pensar assim de nós dois

Vai que a gente pensa igual
E acho isso normal
O igual da diferença
Cada um, todo ser
Tem sua crença

Eu só penso em você
Depois eu penso em mim
E eu me confundo em nós dois
Sei quando viramos um
E aparece um
Que se mistura em nós dois

Vem, não há o que pensar
Melhor achar normal
Viver a diferença
Pensa não, deixa assim,
Que a vida pensa

Tanto por viver, tento não jogar
Pra baixo do tapete essa poeira
Tonto de você tento não pensar besteira

Tanto por você, para o nosso bem
Às vezes fica um com e o outro sem
Seja como for, somos nós e mais ninguém

O que eu quero de você
E você quer de mim
Nós decidimos depois
Eu só penso em você
E tenho aqui pra mim
Que você pensa em nós dois

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Correspondências


"Rio, 8 julho 1965.

Seus Dragões não metem medo: seduzem e convidam a gente a mergulhar no mundo maravilhoso e tão imbricado no real, que é o da sua ficção. É uma alegria viajar de novo por essas terras. Agradeço-lhe a oportunidade que me deu de fazê-lo, com esse volume que dá belo testemunho da sua arte de contar.
O abraço amigo do seu

Carlos Drummond"

Carta escrita pelo Drummond a Murilo Rubião.

A verdadeira beleza


"As pessoas que se comprazem no sofrimento, que gostam de sentir-se infelizes e fazer aos outros infelizes, jamais poderão orgulhar-se de sua beleza. O mau humor, o sentimento de frustração, a amargura marcam a fisionomia, apagam o brilho dos olhos, cavam sulcos na face mais jovem, enfeiam qualquer rosto. Essa é a razão porque a mulher, que cultiva a beleza, deve esforçar-se para ser feliz. Felicidade é estado de alma, é atmosfera, não depende de fatos ou circunstâncias externas.”

Clarice Lispector para o Correio Feminino .

Hoje de madrugada - parte II (final)

Não demorou, minha mulher deu a volta na mesa e logo senti sua sombra atrás da cadeira, e suas unhas no dorso do meu pescoço, me roçando as orelhas de passagem, raspando o meu couro, seus dedos trêmulos me entrando pelos cabelos desde a nuca. Sem me virar, subi o braço, fechei minha mão no alto, retirando sua mão dali como se retirasse um objeto corrompido, mas de repente frio, perdido entre meus cabelos. Desci lentamente nossas mãos até onde chegava o comprimento do seu braço, e foi nessa altura que eu, num gesto claro, abandonei sua mão no ar. A sombra atrás de mim se deslocou, o pano da camisola esboçou um vôo largo, foi num só lance para a janela, havia até verdade naquela ponta de teatralidade. Mas as venezianas estavam fechadas, ela não tinha o que ver, nem mesmo através das frinchas, a madrugada lá fora ainda ressonava. Espreitei um instante: minha mulher estava de costas, a mão suspensa na boca, mordia os dedos.

Quando ela veio da janela, ficando de novo a minha frente, do outro lado da mesa, não me surpreendi com o laço desfeito do decote, nem com os seios flácidos tristemente expostos, e nem com o traço de demência lhe pervertendo a cara. Retomei o rabisco enquanto ela espalmava as mãos na superfície, e, debaixo da mesa, onde eu tinha os pés descalços na travessa, tampouco me surpreendi com a artimanha do seu pé, tocando com as pontas dos dedos a sola do meu, sondando clandestino minha pele no subsolo. Mais seguro, próspero, devasso, seu pé logo se perdeu sob o pano do meu pijama, se esfregando na densidade dos meus pêlos, subindo afoito, me queimando a perna com sua febre. Fiz a tentativa com vagar, seu pé de início se atracou voluntarioso na barra, e brigava, resistia, mas sem pressa me desembaracei dele, recolhendo meus próprios pés que cruzei sob a cadeira. Voltei a erguer os olhos, sua postura, ainda que eloqüente, era de pedra: a cabeça jogada em arremesso para trás, os cabelos escorridos sem tocar as costas, os olhos cerrados, dois frisos úmidos e brilhantes contornando o arco das pálpebras, a boca escancarada, e eu não minto quando digo que não eram os lábios descorados, mas seus dentes é que tremiam.

Numa arrancada súbita, ela se deslocou quase solene em direção à porta, logo freando porém o passo. E parou. Fazemos muitas paradas na vida, mas supondo-se que aquela não fosse uma parada qualquer, não seria fácil descobrir o que teria interrompido o seu andar. Pode ser simplesmente que ela se remetesse então a uma tarefa trivial a ser cumprida quando o dia clareasse. Ou pode ser também que ela não entendesse a progressiva escuridão que se instalava para sempre em sua memória. Não importa que fosse por esse ou aquele motivo, só sei que, passado o instante de suposta reflexão, minha mulher, os ombros caídos, deixou o quarto feito sonâmbula.

Conto extraído do livro Menina a caminho.

Hoje de madrugada - parte I

de Raduan Nassar

O que registro agora aconteceu hoje de madrugada quando a porta do meu quarto de trabalho se abriu mansamente, sem que eu notasse. Ergui um instante os olhos da mesa e encontrei os olhos perdidos da minha mulher. Descalça, entrava aqui feito ladrão. Adivinhei logo seu corpo obsceno debaixo da camisola, assim como a tensão escondida na moleza daqueles seus braços, enérgicos em outros tempos. Assim que entrou, ficou espremida ali no canto, me olhando. Ela não dizia nada, eu não dizia nada. Senti num momento que minha mulher mal sustentava a cabeça sob o peso de coisas tão misturadas, ela pensando inclusive que me atrapalhava nessa hora absurda em que raramente trabalho, eu que não trabalhava. Cheguei a pensar que dessa vez ela fosse desabar, mas continuei sem dizer nada, mesmo sabendo que qualquer palavra desprezível poderia quem sabe tranqüilizá-la. De olhos sempre baixos, passei a rabiscar no verso de uma folha usada, e continuamos os dois quietos: ela acuada ali no canto, os olhos em cima de mim; eu aqui na mesa, meus olhos em cima do papel que eu rabiscava. De permeio, um e outro estalido na madeira do assoalho.

Não me mexi na cadeira quando percebi que minha mulher abandonava o seu canto, não ergui os olhos quando vi sua mão apanhar o bloco de rascunho que tenho entre meus papéis. Foi uma caligrafia rápida e nervosa, foi uma frase curta que ela escreveu, me empurrando o bloco todo, sem destacar a folha, para o foco dos meus olhos: "vim em busca de amor" estava escrito, e em cada letra era fácil de ouvir o grito de socorro. Não disse nada, não fiz um movimento, continuei com os olhos pregados na mesa. Mas logo pude ver sua mão pegar de novo o bloco e quase em seguida me devolvê-la aos olhos: "responda" ela tinha escrito mais embaixo numa letra desesperada, era um gemido. Fiquei um tempo sem me mexer, mesmo sabendo que ela sofria, que pedia em súplica, que mendigava afeto. Tentei arrumar (foi um esforço) sua imagem remota, iluminada, provocadoramente altiva, e que agora expunha a nuca a um golpe de misericórdia. E ali, do outro lado da mesa, minha mulher apertava as mãos, e esperava. Interrompi o rabisco e escrevi sem pressa: "não tenho afeto para dar", não cuidando sequer de lhe empurrar o bloco de volta, mas nem foi preciso, sua mão, com a avidez de um bico, se lançou sobre o grão amargo que eu, num desperdício, deixei escapar entre meus dedos. Mantive os olhos baixos, enquanto ela deitava o bloco na mesa com calma e zelo surpreendentes, era assim talvez que ela pensava refazer-se do seu ímpeto.

Coro


"Os poetas, escritores, os sábios e vozes de seu tempo, formam um coro. O hino que partilham é o mesmo: os grandes e pequenos estão juntos, o belo vive, o resto morre, e tudo é absurdo, exceto honra, amor e o pouco que é conhecido pelo coração."

James Salter

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Cordão da insônia

Céu e Beto Villares



Dorme, dorme, babilônia!
Quanto mais quietinha fica,
Mais aumenta a insônia
E desperta a retina!
Mais atiça a procura
Ao silêncio que inspira...

E que pelo ar flutua
Sussurrando pr'onde ir...

Vou saindo pela rua,
Deixo o som me conduzir...
Saio no cordão da insônia,
Num bocejo que faz rir!

E que pelo ar flutua
Sussurrando pr'onde ir...

Vou saindo pela rua,
Deixo o som me conduzir...
Saio no cordão da insônia,
Num bocejo que faz rir!

Vou sem medo de altura,
Sem perigo de cair!
Dorme, dorme, babilônia!
Faz meu sonho existir.

Sonhando



Só querer cuidar, te proteger,
Esquecer, lembrar, te amando.

Se esconder, brigar sem perceber
Depois, chorar, te amando.

Nosso sol às 3 da manhã
Pro dia deitar sonhando.


Canção de Ed Côrtes e Fábio Góes

Ouça aqui na linda voz da Céu


Devemos atravessar


"A vida é um processo de crescimento, uma combinação de situações que temos de atravessar. As pessoas falham quando querem eleger uma situação e permanecer nela. Esse é um tipo de morte”.

Anais Nin

A paz

Composição: Gilberto Gil & João Donato


A paz invadiu o meu coração
De repente, me encheu de paz
Como se o vento de um tufão
Arrancasse meus pés do chão
Onde eu já não me enterro mais

A paz fez um mar da revolução
Invadir meu destino; A paz
Como aquela grande explosão
Uma bomba sobre o Japão
Fez nascer o Japão da paz

Eu pensei em mim
Eu pensei em ti
Eu chorei por nós
Que contradição
Só a guerra faz
Nosso amor em paz

Eu vim
Vim parar na beira do cais
Onde a estrada chegou ao fim
Onde o fim da tarde é lilás
Onde o mar arrebenta em mim
O lamento de tantos "ais"

Se puder, sem medo...

Oswaldo Montenegro


Deixa em cima desta mesa a foto que eu gostava
Pr'eu pensar que o teu sorriso envelheceu comigo...
Deixa eu ter a tua mão mais uma vez na minha
Pra que eu fotografe assim meu verdadeiro abrigo...
Deixa a luz do quarto acesa a porta entreaberta,
O lençol amarrotado mesmo que vazio...
Deixa a toalha na mesa e a comida pronta...
Só na minha voz não mexa, eu mesmo silencio...
Deixa o coração falar o que eu calei um dia,
Deixa a casa sem barulho achando que ainda é cedo,
Deixa o nosso amor morrer sem graça e sem poesia,
Deixa tudo como está e, se puder, sem medo...
Deixa tudo que lembrar, eu finjo que esqueço...
Deixa, e quando não voltar eu finjo que não importa,
Deixa eu ver se me recordo uma frase de efeito
Pra dizer te vendo ir fechando atrás da porta...
Deixa o que não for urgente que eu ainda preciso,
Deixa o meu olhar doente pousado na mesa,
Deixa ali teu endereço, qualquer coisa aviso...
Deixa o que fingiu levar, mas deixou de surpresa...
Deixa eu chorar como nunca fui capaz contigo,
Deixa eu enfrentar a insônia como gente grande,
Deixa ao menos uma vez eu fingir que consigo...
Se o adeus demora, a dor no coração se expande...
Deixa o disco na vitrola pr'eu pensar que é festa,
Deixa a gaveta trancada pr'eu não ver tua ausência,
Deixa a minha insanidade, é tudo que me resta...
Deixa eu por à prova toda minha resistência,
Deixa eu confessar meu medo do claro e do escuro,
Deixa eu contar que era farsa minha voz tranqüila,
Deixa pendurada a calça de brim desbotado
Que como esse nosso amor ao menor vento oscila,
Deixa eu sonhar que você não tem nenhuma pressa,
Deixa um último recado na casa vizinha,
Deixa de sofisma e vamos ao que interessa,
Deixa a dor que eu lhe causei, agora é toda minha...
Deixa tudo que eu não disse, mas você sabia...
Deixa o que você calou e eu tanto precisava...
Deixa o que era inexistente e eu pensei que havia,
Deixa tudo o que eu pedia, mas pensei que dava...

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Sempre existe um caminho

Quando tudo está perdido
Sempre existe um caminho
Quando tudo está perdido
Sempre existe uma luz

Mas não me diga isso...

Hoje a tristeza não é passageira
Hoje fiquei com febre a tarde inteira
E quando chegar a noite,
Cada estrela parecerá uma lágrima

Queria ser como os outros
E rir das desgraças da vida
Ou fingir estar sempre bem
Ver a leveza das coisas com humor

Mas não me diga isso...

É só hoje
E isso passa
Só me deixe aqui quieto
Isso passa
Amanhã é um outro dia
Não é?

Eu nem sei porque me sinto assim
Vem, de repente, um anjo triste perto de mim

E essa febre que não passa
E meu sorriso sem graça
Não me dê atenção
Mas obrigado por pensar em mim

Quando tudo está perdido
Sempre existe uma luz
Quando tudo está perdido
Sempre existe um caminho

Quando tudo está perdido
Eu me sinto tão sozinho
Quando tudo está perdido
Não quero mais ser
Quem eu sou

Mas não me diga isso...
Não me dê atenção
E obrigado por pensar em mim

.(A Via Láctea, Legião Urbana)

O corpo e a culpa

Antes do triunfo do cristianismo na Europa não existia o conceito de compaixão ou de amor ao próximo, e ninguém teria imaginado também que o sofrimento físico fosse proveitoso para a alma. A idéia de negar o prazer com o propósito de desenvolver um estado superior de consicência já tinha sido formulada, porém não tinha grande aceitação popular. A filosofia espartana, baseada na severidade e na disciplina, só teve adeptos entre os guerreiros. Epicuro representava melhor a tendência da sua época: a terra e tudo o que ela contém foram criados pelos deuses para uso e gozo dos homens... bem, às vezes das mulheres. Nas culturas grega e romana o prazer era um fim em si mesmo, de forma alguma um vício que depois fosse preciso expiar. As classes altas viviam no ócio, completamente alheias ao sentido de culpa, pois o trabalho não era virtude mas fatalidade, indiferentes à sorte dos menos afortunados e rodeadas de escravos que podiam atormentar à vontade. [...] Durante a Idade Média, a arte, o luxo e a beleza transformaram-se em motivos de suspeita; o deleite passou a ser fonte de culpa e o próprio corpo tornou-se inimigo da alma que abrigava. O sofrimento nesta vida era a forma mais segura de se alcançar eterno regozijo na próxima. [...] É claro que houve exceções, elas sempre existem entre os ricos e os sábios: alguns nobres e prelados da Igreja que nunca abdicaram da boa mesa e das belas mulheres; também viajantes que haviam descoberto as maravilhas do Oriente nas Cruzadas e regressaram com o gosto pelas especiarias exóticas, pelos perfumes, pelas ciências e pelas artes esquecidas desde a época do Império Romano, mas esses refinamentos ficaram relegados a algumas sibaritas das classes dominantes. A grande massa humana vivia na miséria, na ignorância e no medo. O hedonismo dos gregos e romanos, que consideravam o prazer como o fim supremo da existência, foi substituído pela sombria crença de que o mundo é um lugar de expiação, um vale de lágrimas onde as almas têm de se esforçar e sofrer martírios para ganhar um paraíso hipotético.

Trecho do livro Afrodite: contos, receitas e outros afrodisíacos, de Isabel Allende.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Um diário

6 de outubro - 1941

[...] Um diário não é apenas um escrínio onde a gente guarda as raras jóias que a vida nos dá. É também uma lata de lixo onde despejamos a cinza de nosso tédio, o cisco de nossas tristezas, a aguada bile de nossos odiozinhos e birras de cada dia.

Do diário de Sílvia, Erico Veríssimo.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Doce


"Pus-me a cantar minha pena
Com uma palavra tão doce,
de maneira tão serena,
que até Deus pensou que fosse
felicidade - e não pena!
Anjos de lira dourada,
debruçaram-me da altura.
Não houve, no chão criatura
de que eu não fosse invejada,
pela minha voz tão pura.
Acordei a quem dormia,
Fiz suspirarem defuntos.
Um arco-íris de alegria
da minha boca se erguia
pondo o sonho e a vida juntos.
O mistério do meu canto,
Deus não soube, tu não viste.
Prodígio imenso do pranto:
- todos perdidos de encanto,
só eu morrendo de triste!
Por assim tão docemente
meu mal transformar em verso,
oxalá Deus não o aumente,
para trazer o Universo
de pólo a pólo contente!"
Cecília Meireles

Espelho da Alma.



O dia vai
E a noite vem de mãos dadas com a lua
Todos os sonhos passeiam na rua
Aos olhos de quem deseja alcançar
Vou buscar e caminho sem direção
Tenho medo da escuridão
Mas confio na minha fé
Nesse mar, no balanço da ilusão
Eu carrego a proteção
Vejo a luz acender
Passear nos caminhos da solidão
É olhar para o espelho da alma
É abrir o coração
Caminho com fé sou criança
Brincando na estrada da vida
Não morre a minha esperança
Eu sempre encontro a saída
Sou filho do pai
E o mundo é meu... o mundo é meu
Diogo Nougueira.

Eus de que somos feitos


"Esses eus de que somos feitos, sobrepostos como pratos empilhados nas mãos de um empregado de mesa, têm outros vínculos, outras simpatias, pequenas constituições e direitos próprios – chamem-lhes o que quiserem (e muitas destas coisas nem sequer têm nome) – de modo que um deles só comparece se chover, outro só numa sala de cortinados verdes, outro se Mrs. Jones não estiver presente, outro ainda se se lhe prometer um copo de vinho – e assim por diante; pois cada indivíduo poderá multiplicar, a partir da sua experiência pessoal, os diversos compromissos que os seus diversos eus estabelecerem consigo – e alguns são demasiado absurdos e ridículos para figurarem numa obra impressa”.

Virginia Woolf

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Simplicidade


Quem quer que tenha algo verdadeiro a dizer se expressa de modo simples. A simplicidade é o selo da verdade.
.
(Schopenhauer)

Um tédio muito distinto

Pois não é que quis descansar as costas por um dia? Sabia que se falasse isso ao chefe ele não acreditaria que lhe doíam as costelas. Então valeu-se de uma mentira que convence mais que a verdade: disse ao chefe que no dia seguinte não poderia trabalhar porque arrancar um dente era muito perigoso. E a mentira pegou. Às vezes só a mentira salva. Então, no dia seguinte, quando as quatro Marias cansadas foram trabalhar, ela teve pela primeira vez na vida uma coisa a mais preciosa: a solidão. Tinha um quarto só para ela. Mal acreditava que usufruía o espaço. E nem uma palavra era ouvida. Então dançou num ato de absoluta coragem, pois a tia não a entenderia. Dançava e rodopiava porque ao estar sozinha se tornava: l-i-v-r-e! Usufruía de tudo, da arduamente conseguida solidão, do rádio de pilha tocando o mais alto possível, da vastidão do quarto sem as Marias. Arrumou, como pedido de favor, um pouco de café solúvel com a dona dos quartos, e, ainda como favor, pediu-lhe água fervendo, tomou tudo se lambendo e diante do espelho para nada perder de si mesma. Encontrar-se consigo própria era um bem que ela até então não conhecia. Acho que nunca fui tão contente na vida, pensou. Não devia nada a ninguém e ninguém lhe devia nada. Até deu-se ao luxo de ter tédio - um tédio até muito distinto.

Trecho de A hora da estrela, de Clarice Lispector.

Vivo-me esteticamente


"Eu próprio não sei se este eu, que vos exponho, por estas coleantes páginas fora, realmente existe ou é apenas um conceito estético e falso que fiz de mim próprio. Sim, é assim. Vivo-me esteticamente em outro. Esculpi a minha vida como a uma estátua de matéria alheia ao meu ser. Às vezes não me reconheço, tão exterior me pus a mim, e tão de modo puramente artístico empreguei a minha consciência de mim próprio. Quem sou por detrás desta irrealidade? Não sei. Devo ser alguém. E se não busco viver, agir, sentir, é – crede-me bem – para não perturbar as linhas feitas da minha personalidade suposta. Quero ser tal qual quis ser e não sou. Se eu cedesse destruir-me-ia. Quero ser uma obra de arte, da alma pelo menos, já que do corpo não posso ser. Por isso me esculpi em calma e alheamento e me pus em estufa, longe dos ares frescos e das luzes francas – onde a minha artificialidade, flor absurda, floresça em afastada beleza”

Fernando Pessoa

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Pobre flor

Y tu que has hecho?

En el tronco de un árbol una niña
grabó su nombre enchida de placer
Y el árbol conmovido allá en su seno
A la niña una flor dejó caer.
Yo soy el árbol conmovido y triste
tu eres la niña que mi tronco hirió
yo guardo siempre tu querido nombre
y tú , que has hecho de mi pobre flor?

Buena Vista Social Clube (Composição: Eusebio Delfín)

Ouçam aqui.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Life is short

"Life is very short and there's no time for fussing and fighting, my friend."
.
(The Beatles)

Cativa-me




"Exatamente, disse a raposa. Tu não és ainda para mim seo um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens também necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim o único no mundo. E eu serei para ti única no mundo..."


in O PEQUENO PRINCIPE. Antoine Saint-Exupéry.  

Memória do coração


"Era ainda jovem demais para saber que a memória do coração elimina as más lembranças e enaltece as boas e que graças a este artifício conseguimos suportar o passado.”

Amor nos tempos do Cólera, Gabriel Garcia Marquez.

...aquela alucinação trêmula...



"O homem mais sábio que conheci, Fermín Romero de Torres, me havia explicado certa ocasião que não existia na vida experiência compatível à primeira vez que se despe uma mulher. Sábio como era, ele não havia mentido, mas também não havia me contado toda a verdade. Não dissera nada sobre aquele estranho tremor das mãos que transformava cada botão , cada silêncio, em uma tarefa de titãs. Nada dissera sobre aquele feitiço de pele pálida e trêmula, sobre aquele primeiro roçar dos lábios, nem sobre aquela alucinação que parecia arder em cada poro da pele." 


  in A SOMBRA DO VENTO, p. 201. Carlos Ruiz ZAFÓN.

Um fantasma numa casa alheia

Fermina Daza não podia imaginar que aquela carta sua, instigada por uma raiva cega, pudesse ser interpretada por Florentino Ariza como uma carta de amor. Tinha posto nela toda a fúria de que era capaz, suas palavras mais cruéis, os opróbrios mais injuriosos, e injustos aliás, que no entanto lhe pareciam mínimos diante do tamanho da ofensa. Foi o último ato de um amargo exorcismo com o qual procurava criar um pacto de conciliação com seu novo estado. Queria ser outra vez ela mesma, recuperar tudo que tivera de ceder em meio século de uma servidão que a fizera feliz, sem dúvida, mas que uma vez morto o marido não deixava a ela nem traços de sua identidade. Era um fantasma numa casa alheia que de um dia para o outro se tornara imensa e solitária, e na qual vagava à deriva, perguntando a si mesma angustiada quem estava mais morto: o que tinha morrido ou a que tinha ficado.
Não podia afugentar um recôndito sentimento de rancor contra o marido por havê-la deixado só no meio do oceano. Tudo que era dele a fazia chorar: o pijama debaixo do travesseiro, os chinelos que sempre lhe pareceram de doente, a recordação de sua imagem se despindo no fundo do espelho enquanto ela se penteava para dormir, o cheiro de sua pele que havia de persistir na dela muito tempo depois da morte. Parava no meio de qualquer coisa que estivesse fazendo e dava um tapinha na própria testa porque de repente se lembrava de alguma coisa que esquecera de lhe dizer. A cada instante lhe vinham à mente as tantas perguntas cotidianas que só ele podia responder. Certa vez ele dissera algo que ela não podia conceber: os amputados sentem dores, cãibras, cócegas, na perna que não têm mais. Assim se sentia ela sem ele, sentindo que ele estava onde não mais se encontrava.

Trecho de O amor nos tempos do cólera, de Gabriel García Márquez.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Olho no meu coração

Janela

Janela, palavra linda.
Janela é o bater das asas da borboleta amarela.
Abre pra fora as duas folhas de madeira à-toa pintada,
janela jeca, de azul.
Eu pulo você pra dentro e pra fora, monto a cavalo em você,
meu pé esbarra no chão.
Janela sobre o mundo aberta, por onde vi
o casamento da Anita esperando neném, a mãe
do Pedro Cisterna urinando na chuva, por onde vi
meu bem chegar de bicicleta e dizer a meu pai:
minhas intenções com sua filha são as melhores possíveis.
Ô janela com tramela, brincadeira de ladrão,
clarabóia na minha alma,
olho no meu coração.


Adélia Prado

Esquisita


"Se me achar esquisita,
respeite também.
Até eu fui obrigada a me respeitar”.

Clarice Lispector

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Todas as cartas de amor são ridículas



Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)


Álvaro de Campos



Por não estarem distraídos



Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que, por admiração, se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque – a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras – e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.

Clarice Lispector

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Let It Be


When I find myself in times of trouble
Mother Mary comes to me
Speaking words of wisdom
Let it be

And in my hour of darkness
She is standing right in front of me
Speaking words of wisdom
Let it be

Let it be, let it be
Let it be, let it be
Whisper words of wisdom
Let it be

And when the broken-hearted people
Living in the world agree
There will be an answer
Let it be

For though they may be parted
There is still a chance that they will see
There will be an answer
Let it be

Let it be, let it be
Let it be, let it be
There will be an answer
Let it be

Let it be, let it be
Let it be, let it be
Whisper words of wisdom
Let it be

And when the night is cloudy
There is still a light that shines on me
Shine on until tomorrow
Let it be

I wake up to the sound of music
Mother Mary comes to me
There will be no sorrow
Let it be

Let it be, let it be
Let it be, let it be
There will be no sorrow
Let it be

Let it be, let it be
Let it be, let it be
Whisper words of wisdom
Let it be
(The Beatles)
*Para ouvir, clique aqui.

Contra o medo


"Agradecimento aos participantes do 1º Elael, por Eduardo Galeano.

Amigas, amigos,

Obrigado pela homenagem. Eu quero enviar um abraço para vocês. Desde aqui, do lugar de onde estou falando, enviando isso, por coincidência, se chama Café Brasileiro, que é o último sobrevivente, o “último dos Moicanos”, dos velhos cafés nos quais eu fui formado. Porque os cafés de Montevidéu foram a minha universidade.

Naquele tempo, a gente ainda tinha tempo para perder o tempo. E aqui nos cafés que eu aprendi o que eu sei da arte de narrar, de contar histórias, escutando. Eu sempre digo que o primeiro conselho que eu daria para aqueles que querem escrever é que, para não ser mudo é preciso, primeiro, não ser surdo. Quer dizer, ser capaz de escutar para ser capaz de falar. Isso eu aprendi aqui nos cafés, escutando histórias.

A arte de contar uma coisa acontecida ou, às vezes, imaginada como se tivesse acontecendo na hora em que é narrada. Essa arte da ressurreição que as palavras têm quando são palavras bem armadas, bem contadas, que nascem de verdade, nascem da necessidade de dizer. Eu não acredito em uma linguagem que não seja assim, que não brote da necessidade de dizer alguma coisa, de contar alguma coisa que me deixe ser contagiado.

A partir da certeza de que meu mestre, Juan Carlos Onetti, o grande escritor uruguaio, tinha razão quando ele mentia dizendo que um provérbio chinês dizia que as únicas palavras que merecem existir são as palavras melhores que o silêncio. Ele mentia porque esse provérbio não era chinês p... nenhuma. Era uma invenção dele. Mas muito boa. Eu acredito que sim. Escrever consiste em trabalhar para encontrar aquelas palavras melhores que o silêncio, porque é um desafio considerável. O silêncio é uma linguagem quase perfeita.

E escrever é pra mim isso: uma tentativa de recuperação das cores, das flores, do arco-íris. Eu parto da certeza de que o arco-íris terrestre é muito mais belo do que o arco-íris celeste. Mas nós estamos presos e ainda não somos capazes de vê-lo com todo o seu esplendor, toda a sua grandeza. Pode ser que as palavras ajudem um pouco, ou pelo menos um pouquinho, nessa tarefa da recuperação da nossa plenitude humana.

Estamos cegos pelo racismo, pelo elitismo, pelo militarismo e por outros “ismos” que por aí vão. Mas vale a pena. Até porque acho que é um ato de uma parte importante da luta contra o medo. Contra o medo de ser, contra o medo de se encontrar, contra o medo de dizer. E o medo é um cárcere"

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Construção


"Em luta, meu ser se parte em dois. Um que foge, outro que aceita. O que aceita diz: não. Eu não quero pensar no que virá: quero pensar no que é. Agora. No que está sendo. Pensar no que ainda não veio é fugir, buscar apoio em coisas externas a mim, de cuja consistência não posso duvidar porque não a conheço. Pensar no que está sendo, ou antes, não, não pensar, mas enfrentar e penetrar no que está sendo é coragem. Pensar é ainda fuga: aprender subjetivamente a realidade de maneira a não assustar. Entrar nela significa viver .
Sôfrego, torno a anexar a mim esse monólogo rebelde, essa aceitação ingênua de quem não sabe que viver é, constantemente, construir, não derrubar. De quem não sabe que esse prolongado construir implica em erros, e saber viver implica em não valorizar esses erros, ou suavizá-los, distorcê-los ou mesmo eliminá-los para que o restante da construção não seja abalado”

Caio Fernando Abreu

Vou viver a vida por ele

Affonso Romano de Sant'Anna


"A gente tem a leviandade de achar que os velhos nasceram velhos, que estão ali apenas para assistir ao nosso crescimento. Me lembro que menino ao ver um velho parente relatar fotos de sua juventude tinha sempre a sensação de que ele estava inventando uma estória para me convencer de alguma coisa.
No entanto, aquele velho que vejo na esquina da praia de Copacabana deve ter sido jovem algum dia, em alguma outra praia, nos braços de algum amor, bebendo e farreando irresponsavelmente e achando que o estoque da vida era ilimitado.
Teria ele algum desejo ao olhar as coxas das banhistas que passam? Olhando alguma delas teria se posto a lembrar de outros corpos que conheceu? Os que por ele passam poderiam supor que ele fazia maravilhas na cama ou nas pistas de dança?
Me lembra ter lido em algum lugar que o inconsciente não tem idade. Ah, sim, foi no livro de Simone de Beauvoir sobre "A velhice". E ali ela também apresentava uma estatística segundo a qual por volta dos 60 anos poucos se declaram velhos; depois dos 80 anos, só 53% se consideram velhos, 36% acham que são de meia-idade e 11% se julgam jovens.
Não sei porque, mas toda vez que vejo um senhor de cabelos brancos andando pela praia penso que ele é um almirante aposentado. Às vezes, concedo e admito que ele pode ser também da Aeronáutica. Por causa disto, durante muito tempo, vendo esses senhores passeando pela areia e calçada, sempre achava que toda a Marinha e Aeronáutica havia se aposentado entre Leblon e Copacabana.
(...)
Meu carro, no entanto, continua parado no sinal da praia de Copacabana. O carro apenas, porque a imaginação, entre o sinal vermelho e o verde, viajou intensamente. Vou ter de deixar ali o velho e sua acompanhante olhando o mar por mim. Vou viver a vida por ele, me iludir que no escritório transformo o mundo com telefonemas, projetos e papéis. Um dia, talvez, esteja naquela cadeira olhando mar à distância, a vida distante.
Mas que ao olhar para dentro eu tenha muito que rever e contemplar. Neste caso não me importarei que o moço que estiver no seu carro parado no sinal imagine coisas sobre mim. Estarei olhando o mar, o mar interior e terei alegrias de nenhum passante compreenderá."

Trecho da crônica Velho olhando o mar.

o que de tão visto ninguém vê




Uma criança vê o que um adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que de tão visto ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher. Isso exige às pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.

Otto Lara Resende

Corridinho

Adélia Prado


O amor quer abraçar e não pode.
A multidão em volta,

com seus olhos cediços,

põe caco de vidro no muro

para o amor desistir.

O amor usa o correio,

o correio trapaceia,

a carta não chega,

o amor fica sem saber se é ou não é.

O amor pega o cavalo,

desembarca do trem,

chega na porta cansado

de tanto caminhar a pé.

Fala a palavra açucena,

pede água, bebe café,

dorme na sua presença,

chupa bala de hortelã.

Tudo manha, truque, engenho:

é descuidar, o amor te pega,

te come, te molha todo.

Mas água o amor não é.

Eu sei, mas não devia...

Marina Colasanti


Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Nosso mundo


"Há aqueles que não podem imaginar um mundo sem pássaros;
há aqueles que não podem imaginar um mundo sem água;
ao que me refere, sou incapaz de imaginar um mundo sem livros.”

Jorge Luis Borges .

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Flor da pele



Ando tão à flor da pele
Qualquer beijo de novela
Me faz chorar
Ando tão à flor da pele
Que teu olhar "flor na janela"
Me faz morrer
Ando tão à flor da pele
Meu desejo se confunde
Com a vontade de não ser
Ando tão à flor da pele
Que a minha pele
Tem o fogo
Do juízo final...(2x)
Barco sem porto
Sem rumo, sem vela
Cavalo sem sela
Bicho solto
Um cão sem dono
Um menino, um bandido
Às vezes me preservo
Noutras, suicido!
(Zeca Baleiro)

Pouca claridade

Não falta por aí, nunca faltou, quem afirme que os poetas, verdadeiramente, não são indispensáveis, e eu pergunto o que seria de todos nós se não viesse a poesia ajudar-nos a compreender quão pouca claridade tem as coisas a que chamamos claras.

José Saramago

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Cravado na areia

Pensava sobre as semelhanças entre mim e Farida. Entendia o que me unia àquela mulher: nós dois estávamos divididos entre dois mundos. A nossa memória se povoava de fantasmas da nossa aldeia. Esses fantasmas nos falavam em nossas línguas indígenas. Mas nós já só sabíamos sonhar em português. E já não havia aldeias no desenho do nosso futuro. [...] Ambos queríamos partir. Ela queria sair para um novo mundo, eu queria desembarcar numa outra vida. Farida queria sair de África, eu queria encontrar um outro continente dentro de África. Mas uma diferença nos marcava: eu não tinha a força que ela ainda guardava. Não seria nunca capaz de me retirar, virar costas. Eu tinha a doença da baleia que morre na praia, com olhos postos no mar. [...] Uma coisa me certificava: pouco a pouco eu me amarrava à presença daquela mulher. Nunca eu tinha tocado em mulher de amar. As autênticas, reais mulheres me temorizavam. Ao invés, Farida era quase irreal, ela se sonhava e eu me deliciava naquele fingimento que punha nela. Mas quanto mais me ardia em paixão mais eu sentia que me devia ir embora. Minha missão era outra. [...] Farida me roubava coragem do caminho, me roubava força de decidir. Cada dia que passava, meu coração semelhava mais e mais aquele barco. Eu estava parado naquela mulher, como os ferros preguicentos do barco estavam cravados no banco de areia. Não podia adiar mais, se quisesse ser dono de mim. Deveria partir, imediatamente.

Trecho de Terra Sonâmbula, de Mia Couto.

Febre de sentir


"Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto {…} De resto, com que posso contar comigo? Uma acuidade horrível das sensações, e a compreensão profunda de estar sentindo…Uma inteligência aguda para me destruir, e um poder de sonho sôfrego de me entreter…”

O Livro do Desassossego, Fernando Pessoa .