sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Rosa, a Bela

Pousou os olhos em Rosa, a mais velha das filhas vivas, e, como sempre, admirou-se. Sua estranha beleza tinha uma qualidade perturbadora à qual nem ela escapava; parecia ter sido feita de um material diferente do da raça humana. Nívea soube que Rosa não era deste mundo antes mesmo de trazê-la à luz, tendo-a visto em sonhos; por isso, não a surpreendeu o grito da parteira ao vê-la. Quando nasceu, Rosa era branca, lisa, sem rugas, como uma boneca de porcelana, com o cabelo verde e os olhos amarelos, a criatura mais formosa nascida na terra desde os tempos do pecado original, como disse a parteira benzendo-se. Desde o primeiro banho, a Nana lavou o seu cabelo com infusão de camomila, o que lhe atenuou a cor, dando-lhe tonalidades de bronze velho, e a punha nua ao sol, para fortalecer sua pele, translúcida nas áreas mais delicadas do ventre e das axilas, onde se adivinhavam as veias e a textura secreta dos músculos. Esses truques de cigana, no entanto, não foram suficientes e depressa correu o boato de que lhes nasceram um anjo. Nívea supôs que as ingratas fases do crescimento trouxessem algumas imperfeições a sua filha, mas isso não aconteceu, e, bem pelo contrário, aos dezoito anos Rosa não tinha engordado e não lhe haviam brotado espinhas; entretanto, acentuara-se, isso sim, sua graça marítima.
(...)
Severo considerava que era tempo de sua filha sair do devaneio e pôr os pés na realidade, aprender algumas tarefas domésticas e preparar-se para o casamento, mas Nívea não compartilhava essa inquietação. Preferia não atormentar a filha com exigências terrenas, pois pressentia que Rosa era um ser celestial, que não fora sido destinado a durar muito tempo no trâfego grosseiro deste mundo; por isso, deixava-a em paz com os seus fios de bordar e não contestava aquele jardim zoológico de pesadelo.




Isabel Allende, A Casa do Espíritos.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Salamanca



"E o tempo passava ... À noite Ana dormia mal, pensava muito e temia mais ainda. Procurava convencer-se a si mesma de que podia viver sem Pedro, continuar como era antigamente. Achava que tudo tinha acontecido só por causa do calor e da sua solidão. Mas se por um lado ela queria levar os pensamentos para essa direção, por outro seu corpo ia sempre que possível para Pedro, com quem continuava a encontrar-se à hora da sesta no mato da sanga. Ficava com ele por uns instantes, com o coração a bater descompassado. Falavam muito pouco e o que diziam não tinha a ver com o que faziam e sentiam. Eram momentos rápidos, excitantes e cheios de susto. E no dia em que pela primeira vez ela sentiu em toda a plenitude o prazer do amor, foi como se um terremoto tivesse sacudido o mundo. Voltou para a casa meio no ar, feliz, como quem acaba de descobrir uma salamanca - ansiosa por ruminar a sós aquele gozo estonteantemente agudo que a fizera gritar quase tão alto como os quero-queros."

O Continente, Érico Veríssimo.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Tudo é vivo dentro de mim



"Para eliminar o sofrimento, elimina-se a memória. Uma cirurgia aparentemente simples, única solução. Só que eu não consigo, tudo é vivo dentro de mim”.
Não verás país nenhum, Ignácio de Loyola Brandão

domingo, 25 de setembro de 2011

Encontros

Todo encontro genuíno de amor é também o encontro de duas pessoas que conseguem ouvir a música uma da outra e sentir alegria e descanso com aquilo que ouvem. Conseguem ouvir, não importa quantos ruídos tenham inventado pelo caminho, tantas vezes para se proteger da dor afastando a vida.

Ana Jácomo

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Comfort



"Reading was my escape and my comfort, my consolation, my stimulant of choice: reading for the pure pleasure of it, for the beautiful stillness that surrounds you when you hear an author’s words reverberating in your head."
Paul Auster

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Um cachorrinho

Para Clara esse teria sido um dos momentos mais dolorosos de sua vida, se Barrabás não tivesse vindo misturado aos pertences de seu falecido tio. Ignorando a confusão reinante no pátio, seu instinto levou-a diretamente ao canto em que tinham posto o engradado. Dentro estava Barrabás. Era um punhado de ossinhos cobertos por pêlo de cor indefinida, cheio de falhas infectadas, um olho fechado, o outro purgando secreções purulentas, imóvel, como um cadáver, em sua própria porcaria. Apesar dessa aparência, a menina não teve dificuldade em identificá-lo.
- Um cachorrinho! - exclamou.
Encarregou-se do animal, tirou-o do engradado, embalou-o contra o peito e, com cuidados de missionária, conseguiu dar-lhe água pelo focinho inchado e seco. (...) Clara converteu-se em mãe para o animal, e conseguiu reanimá-lo. Dois dias mais tarde, logo que se acalmou a tempestade da chegada do cadáver e do enterro do tio Marcos, Severo reparou no bicho peludo que sua filha levava nos braços.
- O que é isso? - perguntou.
- Barrabás - disse Clara.
- Entregue-o ao jardineiro para que se desfaça dele. Pode contagiar-nos com alguma doença - ordenou Severo.
Clara, porém, o havia adotado.
- É meu, papai. Se me tirar, juro que paro de respirar e morro.


Trecho de A Casa dos Espíritos, Isabel Allende

Amplificar a alegria e o bom humor



"Cada um é um…
Cada outro é outro…
Sofrer é um querer ser o outro.
Impossível é que o outro seja um…
Ninguém transforma ninguém.

Compreendendo-se as diferenças entre um e outro,
Forma-se a identidade um-outro
Um carrega dentro de si o outro,
Enquanto o outro leva um dentro de si.

Assim, um-outro é mais saudável para resolver qualquer sofrimento
Porque não existe vida sem dor.
Um-outro é a multiplicação do amor dos dois.
Porque o amor ajuda a superar a dor.
Um-outro amplifica a alegria e o bom humor
Porque a felicidade ilumina o triunfo da sabedoria”.
Homem Cobra, Mulher Polvo, Içami Tiba

domingo, 18 de setembro de 2011

Identidade


Preciso ser um outro
para ser eu mesmo

Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta

Sou pólen sem insecto

Sou areia sustentando
o sexo das árvores

Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço

Mia Couto, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Refazendo



"Abacateiro acataremos teu ato
Nós também somos do mato como o pato e o leão
Aguardaremos brincaremos no regato
Até que nos tragam frutos teu amor, teu coração
Abacateiro teu recolhimento é justamente
O significado da palavra temporão
Enquanto o tempo não trouxer teu abacate
Amanhecerá tomate e anoitecerá mamão
Abacateiro sabes ao que estou me referindo
Porque todo tamarindo tem o seu agosto azedo
Cedo, antes que o janeiro doce manga venha ser também
Abacateiro serás meu parceiro solitário
Nesse itinerário da leveza pelo ar
Abacateiro saiba que na refazenda
Tu me ensina a fazer renda que eu te ensino a namorar
Refazendo tudo
Refazenda
Refazenda toda
Guariroba"

Gilberto Gil

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

meditação solitária

"Na verdade, eu acho que o nosso contato com o sobrenatural deve ser feito em silêncio e numa profunda meditação solitária."
Clarice Lispector

O cacto



Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária:
Laocoonte constrangido pelas serpentes,
Ugolino e os filhos esfaimados.
Evocava também o seco Nordeste, carnaubais, caatingas... 
Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades excepcionais. 


Um dia um tufão furibundo abateu-os pela raiz.
O cacto tombou atravessado na rua,
Quebrou os beirais do casario fronteiro,
Impediu o trânsito de bondes, automóveis, carroças,
Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro horas privou a cidade de
                                                                                   [iluminação e energia:


- Era belo, áspero, intratável. 


 Manuel Bandeira

É para lá que eu vou



" Para além da orelha existe um som, à extremidade do olhar um aspecto, às pontas dos dedos um objeto - é para lá que eu vou.

À ponta lápis o traço.

Onde expira um pensamento está uma ideia, ao derradeiro hálito de alegria uma outra alegria, à ponta da espada a magia - é para lá que eu vou.

Na ponta dos pés o salto.

Parece a história de alguém que foi e não voltou - é para lá que eu vou.

Ou não vou?Vou, sim. E volto para ver como estão as coisas. Se continuam mágicas. Realidade?eu vos espero. É para lá que eu vou.

Na ponta da palavra está a palavra. Quero usar a palavra "tertúlia" e não sei quando. À beira da tertúlia está a família. À beira da família estou eu. À beira de eu estou mim. É para mim que vou. E de mim saio para ver. Ver o quê?ver o que existe. Depois de morta é para a realidade que vou. Por enquanto é sonho. Sonho fatídico. Mas depois - depois tudo é real. E a alma livre procura um canto para se acomodar. Mim é um eu que anuncio. Não sei sobre o que estou falando. Estou falando do nada. Eu sou nada. Depois de morta engrandecerei e me espalharei, e alguém dirá com amor meu nome.

É para o meu pobre nome que vou.

E de lá volto para chamar o nome do ser amado e dos filhos. Eles me responderão. Enfim terei uma resposta. Que resposta? a do amaor. Amor: eu vos amo tanto. Eu amo o amor. O amor é vermelho. O ciúme é verde. Meus olhos são verdes. Mas são verdes tão escuros que na fotografia saem negros. Meu segredo é ter olhos verdes e ninguém saber.

À extremidade de mim estou eu. Eu, implorante, eu a que necessita, a que pede, a que chora, a que lamenta. Mas a que canta. A que diz palavras. Palavras ao vento?que importa, os ventos as trazem de novo e eu as possuo.

Eu à beira do vento. O morro dos ventos uivantes me chama. Vou, bruxa que sou. E me transmuto.

Oh, cachorro, cadê tua alma?está à beira de teu corpo? Eu estou à beira do meu corpo.E feneço lentamente.

Que estou a dizer? Estou dizendo amor. E à beira do amor estamos nós."

É para lá que eu vou, Clarice Lispector.

No meio do caminho



No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.


Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
 
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
 
Tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Nossas verdades



"Que as mentiras alheias não confundam as nossas verdades, mesmo que as mentiras e as verdades sejam impermanentes."

Caio F. Abreu

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Ler

"Você lê e sofre. Você lê e ri. Você lê e engasga. Você lê e tem arrepios. Você lê, e a sua vida vai-se misturando no que está sendo lido."
Caio Fernando Abreu

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Rainha do mar


Quanto nome tem a Rainha do Mar?
Quanto nome tem a Rainha do Mar?

Dandalunda, Janaína,
Marabô, Princesa de Aiocá,
Inaê, Sereia, Mucunã,
Maria, Dona Iemanjá.

Onde ela vive?
Onde ela mora?

Nas águas,
Na loca de pedra,
Num palácio encantado,
No fundo do mar.

O que ela gosta?
O que ela adora?

Perfume,
Flor, espelho e pente
Toda sorte de presente
Pra ela se enfeitar.

Como se saúda a Rainha do Mar?
Como se saúda a Rainha do Mar?

Alodê, Odofiaba,
Minha-mãe, Mãe-d'água,
Odoyá!

Qual é seu dia,
Nossa Senhora?

É dia dois de fevereiro
Quando na beira da praia
Eu vou me abençoar.

O que ela canta?
Por que ela chora?

Só canta cantiga bonita
Chora quando fica aflita
Se você chorar.

Quem é que já viu a Rainha do Mar?
Quem é que já viu a Rainha do Mar?

Pescador e marinheiro
que escuta a sereia cantar
é com o povo que é praiero
que dona Iemanjá quer se casar.


Maria Bethânia



"Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim,
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho,
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim."

Sophia de Mello Breyner Andresen

Clarice

Foto de Érico Veríssimo

"Em 1953 meu pai foi convidado a dirigir o Departamento de Assuntos Culturais da União Pan-Americana, ligada à Organização dos Estados Americanos. Fomos para Washington, uma aborrecida cidade burocrática, no começo da era Eisenhower. O diplomata Maury Gurgel Valente e sua mulher Clarice estavam lá com os dois filhos, Pedro e Paulo, e foram os primeiros brasileiros a dar boas-vindas aos recém-chegados. Eles seriam os melhores amigos dos meus pais nos quatro anos que ficamos em Washington. Clarice e minha mãe, que não poderiam ter personalidades mais diferentes, tornaram-se amigas de infância. E sem que houvesse qualquer cerimônia, meus pais foram designados padrinhos extraoficiais do filho mais moço dos Valente, o Paulo.(Uma vez fui levar a Clarice e os dois meninos em casa de carro e na chegada o Paulinho perguntou: " Não quer entrar e tomar um cafézinho?"Grande surpresa. Ele mal começara a falar, era provavelmente a primeira frase inteira que dizia). Várias fotografias de Clarice, inclusive algumas que têm saído na imprensa, foram tiradas pelo meu pai durante o convívio dos dois casais naqueles anos americanos. Também houve uma designação extraoficial do meu pai como fotógrafo exclusivo de Clarice.

Eu tinha 16 anos quando chegamos a Washington e a minha primeira impressão da Clarice foi a de todo mundo: fascinação. Com sua beleza eslava, os olhos meio asiáticos, o erre carregado que dava um mistério especial à sua fala, e ao mesmo tempo com seu humor e jeito de garotona ainda desacostumada com o tamanho do próprio corpo."

Luis Fernando Veríssimo

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Um dia bem simples



"Hoje
arrumo as flores
em cima da mesa
as frutas na memória
quero um dia bem simples
alguma luz pousada
na superfície da água

hoje chamo para mim
amorosas palavras
que vivam um dia
perto do meu coração
que corram pela casa
com sua mistura de
mel e espanto"
Roseana Murray

terça-feira, 6 de setembro de 2011

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Presente


Um sol,
Um templo de luz na alma aprendiz.

Um vôo
No céu de nuvens tão calmas...
Furacão,
Trovão!

E lá no sertão
A chuva, a água,
A razão desse meu canto em paz.

A estrela, o chão, a casa, a estrada que eu quero seguir, florir...
A cidade, a saudade, a felicidade sempre aqui.

Força, fé, saúde, alegria,
Um milhão de risos por dia,
E o amor sou eu quem vai lhe ofertar.
Cura para toda ferida, sonhos que transbordam em vida
É questão de fé, é questão de acreditar, lutar
E o amor sou eu quem vai lhe ofertar!

Letícia Fialho

Um caderno lindo



"Tive vontade de sentar na calçada da rua augusta e chorar, mas preferi entrar numa livraria, comprar um caderno lindo e anotar sonhos."
Caio F. Abreu