terça-feira, 31 de maio de 2011

Estranha ideia de família

A família é um tema recorrente nos poemas de Drummond e surge diversas vezes por meio do retrato. Dentre eles, um dos mais conhecidos é o "Confidência do itabirano", segundo poema do livro Sentimento do mundo e que já foi publicado no blog. No entanto, nesses poemas a família aparece como uma memória dolorosa, como lembrança de um passado que não passou totalmente e pesa no presente. Alexandre Pilati, em A nação drummondiana, afirma o seguinte sobre "Confidência do itabirano":
A compreensão do passado dá-se pela percepção imediata de que ele não foi de todo superado, uma vez que as coisas estão ao lado do poeta, a testemunhar um tempo não contemporâneo em relação ao tempo do eu enunciador. O requinte da atitude lírica memorialística e reflexiva contrasta com relíquias, coisas que parecem estar fora do tempo presente. [...] A "fotografia na parede"torna Itabira uma relíquia. Torna-a um problema irresolvido, estampado na parede do funcionário republicano (2009, 75).

Em Sentimento do mundo, além de "Confidência de Itabirano", há "Os mortos de sobrecasaca", outro poema que se assemelha quanto à relação entre passado, presente e laços familiares. Seguido a ele, há o poema "Retrato de família", presente no livro A rosa do povo.

Os mortos de sobrecasaca

Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis,
alto de muitos metros e velho de infinitos minutos,
em que todos se debruçavam
na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca.

Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes
e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos.
Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava
que rebentava daquelas páginas.
Carlos Drummond de Andrade
In: Sentimento do mundo, 1940

Retrato de família

Este retrato de família
Está um tanto empoeirado.
Já não se vê no rosto do pai
Quanto dinheiro ele ganhou.

Nas mãos dos tios não se percebem
As viagens que ambos fizeram.
A avó ficou lisa, amarela,
Sem memórias da monarquia.

Os meninos, como estão mudados.
O rosto de Pedro é tranquilo,
Usou os melhores sonhos.
E João não é mais mentiroso.

O jardim tornou-se fantástico.
As flores são placas cinzentas.
E a areia, sob pés extintos,
É um oceano de névoa.

No semicírculo das cadeiras
Nota-se um certo movimento.
As crianças trocam de lugar,
Mas sem barulho: é um retrato.

Vinte anos é um grande tempo.
Modela qualquer imagem.
Se uma figura vai murchando,
Outra, sorrindo, se propõe.

Esses estranhos assentados,
Meus parentes? Não acredito.
São visitas se divertindo
Numa sala que se abre pouco.

Ficaram traços de família
Perdidos no jeito dos corpos.
Bastante para sugerir
Que um corpo é cheio se surpresas.

A moldura deste retrato
Em vão prende seus personagens.
Estão ali voluntariamente,
Saberiam – se preciso – voar.

Poderiam subtilizar-se
No claro-escuro do salão,
Ir morar no fundo dos móveis
Ou no bolso de velhos coletes.

A casa tem muitas gavetas
E papéis, escadas compridas.
Quem sabe a malícia das coisas,
Quando a matéria se aborrece?

O retrato não me responde,
Ele me fita e se contempla
Nos meus olhos empoeirados.
E no cristal se multiplicam

Os parentes mortos e vivos.
Já não distingo os que se foram
Dos que restaram. Percebo apenas
A estranha ideia de família

viajando através da carne.
Carlos Drummond de Andrade
In: A rosa do povo, 1945

Havia jardins, havia manhãs




Lembrança do mundo antigo



Clara passeava no jardim com as crianças.



O céu era verde sobre o gramado,




a água era dourada sob as pontes,



outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados,



o guarda-civil sorria, passavam bicicletas,



a menina pisou a relva para pegar um pássaro,



o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era tranquilo em



[redor de Clara.



As crianças olhavam para o céu: não era proibido.



A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. Não havia perigo.



Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos.



Clara tinha medo de perder o bonde das 11 horas,



esperava cartas que custavam a chegar,



nem sempre podia usar vestido novo. Mas passeava no jardim,



[pela manhã!!!



Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!


Sentimento do Mundo, Carlos Drummond de Andrade.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

A realidade não precisa de mim

Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

Alberto Caeiro

A vida presente

Mãos dadas

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.

O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.

Carlos Drummond de Andrade, In: Sentimento do mundo.

Ouçam aqui o próprio poeta recitando o poema.

Melodia dos anjo celestiá


Eu nunca falei à toa.
Sou um cabôco rocêro,
Que sempre das coisa boa
Eu tive um certo tempero.
Não falo mal de ninguém,
Mas vejo que o mundo tem
Gente que não sabe amá,
Não sabe fazê carinho,
Não qué bem a passarinho,
Não gosta dos animá.

Já eu sou bem deferente.
A coisa mió que eu acho
É num dia munto quente
Eu i me sentá debaxo
De um copado juazêro,
Prá escutá prazentêro
Os passarinho cantá,
Pois aquela poesia
Tem a mesma melodia
Dos anjo celestiá.


Trecho de O Sabiá e o Gavião, de Patativa do Assaré

O medo



Congresso internacional do medo



Provisoriamente não cantaremos o amor,



que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.



Cantaremos o medo, que estereliza os abraços,



não cantaremos o ódio porque esse não existe,



existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,



o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,



o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,



cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,



cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,



depois morremos de medo



e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.


Sentimento do mundo, Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Liberdade


Liberdade é como saborear um passeio de bicicleta sem precisar apostar corrida com ninguém. Não temos que ter essa ou aquela velocidade. Apenas pedalar. No nosso ritmo.



Ana Jácomo

A vida é tênue, tênue

Canção do berço

O amor não tem importância.
No tempo de você, criança,
uma simples gota de óleo
povoará o mundo por inoculação,
e o espasmo
(longo demais para ser feliz)
não mais dissolverá as nossas carnes.

Mas também a carne não tem importância.
E doer, gozar, o próprio cântico afinal é indiferente.
Quinhentos mil chineses mortos, trezentos corpos de namorados sobre a via férrea
e o trem que passa, como um discurso, irreparável:
tudo acontece, menina,
e não é importante, menina,
e nada fica nos teus olhos.

Também a vida é sem importância.
Os homens não me repetem
nem me prolongo até eles.
A vida é tênue, tênue.
O grito mais alto ainda é suspiro,
os oceanos calaram-se há muito.
Em tua boca, menina,
ficou o gosto do leite?
ficará o gosto de álcool?

Os beijos não são importantes.
No teu tempo nem haverá beijos.
Os lábios serão metálicos,
civil, e mais nada, será o amor
dos indivíduos perdidos na massa
e só uma estrela
guardará o reflexo
do mundo esvaído
(aliás sem importância).

Carlos Drummond de Andrade
In: Sentimento do mundo

terça-feira, 24 de maio de 2011

Para ti


Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo

Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre

Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida.

Mia Couto

Gentileza

Morro da Babilônia

À noite, do morro
descem vozes que criam o terror
(terror urbano, cinquenta por cento de cinema,
e o resto que veio de Luanda ou se perdeu na língua geral).
Quando houve revolução, os soldados se espalharam no morro,
o quartel pegou fogo, eles não voltaram.
Alguns, chumbados, morreram.
O morro ficou mais encantado.

Mas as vozes do morro
não são propriamente lúgubres.
Há mesmo um cavaquinho bem afinado
que domina os ruídos da pedra e da folhagem
e desce até nós, modesto e recreativo,
como uma gentileza do morro.

Carlos Drummond de Andrade
In: Sentimento do mundo

Sentir demais



"Duas palavras gigantescas: Sinto muito”.



A Menina que Roubava Livros, Markus Zusak.

sábado, 21 de maio de 2011

Um homem comum

Operário no mar

Na rua passa um operário. Como vai firme! Não tem blusa. No conto, no drama, no discurso político, a dor do operário está na blusa azul, de pano grosso, nas mãos grossas, nos pés enormes, nos desconfortos enormes. Esse é um homem comum, apenas mais escuro que os outros, e com uma significação estranha no corpo, que carrega desígnios e segredos. Para onde vai ele, pisando assim tão firme? Não sei. A fábrica ficou lá atrás. Adiante é só o campo, com algumas árvores, o grande anúncio de gasolina americana e os fios, os fios, os fios. O operário não lhe sobra tempo de perceber que eles levam e trazem mensagens, que contam da Rússia, do Araguaia, dos Estados Unidos. Não ouve, na Câmara dos Deputados, o líder oposicionista vociferando. Caminha no campo e apenas repara que ali corre água, que mais adiante faz calor. Para onde vai o operário? Teria vergonha de chamá-lo meu irmão. Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca. E me despreza... Ou talvez seja eu próprio que me despreze a seus olhos. Tenho vergonha e vontade de encará-lo: uma fascinação quase me obriga a pular a janela, a cair em frente dele, sustar-lhe a marcha, pelo menos implorar-lhe que suste a marcha. Agora está caminhando no mar. Eu pensava que isso fosse privilégio de alguns santos e de navios. Mas não há nenhuma santidade no operário, e não vejo rodas nem hélices no seu corpo, aparentemente banal. Sinto que o mar se acovardou e deixou-o passar. Onde estão nossos exércitos que não impediram o milagre? Mas agora vejo que o operário está cansado e que se molhou, não muito, mas se molhou, e peixes escorrem de suas mãos. Vejo-o que se volta e me dirige um sorriso úmido. A palidez e confusão do seu rosto são a própria tarde que se decompõe. Daqui a um minuto será noite e estaremos irremediavelmente separados pelas circunstâncias atmosféricas, eu em terra firme, ele no meio do mar. Único e precário agente de ligação entre nós, seu sorriso cada vez mais frio atravessa as grandes massas líquidas, choca-se contra as formações salinas, as fortalezas da costa, as medusas, atravessa tudo e vem beijar-me o rosto, trazer-me uma esperança de compreensão. Sim, quem sabe se um dia o compreenderei?

Carlos Drummond de Andrade
In: Sentimento do mundo

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Mecânicos

Tristeza do império

Os conselheiros angustiados
ante o colo ebúrneo
das donzelas opulentas
que ao piano abemolavam
“Su-bo a cam-pi-na se-re-na
pa-ra li-vre sus-pi-rar”,
esqueciam a guerra do Paraguai,
o enfado bolorento de São Cristóvão,
a dor cada vez mais forte dos negros,
e sorvendo mecânicos
uma pitada de rapé,
sonhavam a futura libertação dos instintos
e ninhos de amor a serem instalados nos arranha-céus de Copacabana, com
[rádio e telefone automático.


Carlos Drummond de Andrade
In: Sentimento do mundo

Solo de clarineta



A falta de Érico Veríssimo

Falta alguma coisa no Brasil
depois da noite de sexta-feira.
Falta aquele homem no escritório
a tirar da máquina elétrica
o destino dos seres,
a explicação antiga da terra.

Falta uma tristeza de menino bom
caminhando entre adultos
na esperança da justiça
que tarda – como tarda!
a clarear o mundo.

Falta um boné, aquele jeito manso,
aquela ternura contida, óleo
a derramar-se lentamente.
Falta o casal passeando no trigal.

Falta um solo de clarineta.

Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Um vapor

Canção da Moça-Fantasma de Belo Horizonte

Eu sou a Moça-Fantasma
que espera na Rua do Chumbo
o carro da madrugada.
Eu sou branca e longa e fria,
a minha carne é um suspiro
na madrugada da serra.
Eu sou a Moça-Fantasma.
O meu nome era Maria,
Maria-Que-Morreu-Antes.

Sou a vossa namorada
que morreu de apendicite,
no desastre de automóvel
ou suicidou-se na praia
e seus cabelos ficaram
longos na vossa lembrança.
Eu nunca fui deste mundo:
Se beijava, minha boca
dizia de outros planetas
em que os amantes se queimam
num fogo casto e se tornam
estrelas, sem ironia.

Morri sem ter tido tempo
de ser vossa, como as outras.
Não me conformo com isso,
e quando as polícias dormem
em mim e foira de mim,
meu espectro itinerante
desce a Serra do Curral,
vai olhando as casas novas,
ronda as hortas amorosas
(Rua Cláudio Manuel da Costa),
pára no Abrigo Ceará,
nao há abrigo. Um perfume
que não conheço me invade:
é o cheiro do vosso sono
quente, doce, enrodilhado
nos braços das espanholas.
Oh! deixai-me dormir convosco.

E vai, como não encontro
nenhum dos meus namorados,
que as francesas conquistaram,
e que beberam todo o uísque
existente no Brasil
(agora dormem embriagados),
espreito os Carros que passam
com choferes que não suspeitam
de minha brancura e fogem.
Os tímidos guardas-civis,
coitados! um quis me prender.
Abri-lhe os braços... Incrédulo,
me apalpou. Não tinha carne
e por cima do vestido
e por baixo do vestido
era a mesma ausência branca,
um só desespero branco...
Podeis ver: o que era corpo
foi comido pelo gato.

As moças que ainda estão vivas
(hão de morrer, ficai certos)
têm medo que eu apareça
e lhes puxe a perna... Engano.
Eu fui moça, serei moça
deserta, per omnia saecula.
Não quero saber de moças.
Mas os moços me perturbam.
Não sei como libertar-me.

Se o fantasma não sofresse,
se eles ainda me gostassem
e o espiritismo consentisse,
mas eu sei que é proibido,
vós sois carne, eu sou vapor.
Um vapor que se dissolve
quando o sol rompe na Serra.

Agora estou consolada,
disse tudo que queria,
subirei àquela nuvem,
serei lâmina gelada,
cintilarei sobre os homens.
Meu reflexo na piscina
da Avenida Paraúna
(estrelas não se compreendem),
ninguém o compreenderá.

Carlos Drummond de Andrade
In: Sentimento do mundo.

Estar em mim



AUSÊNCIA

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.


Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 17 de maio de 2011

É preciso

Poema da necessidade

É preciso casar João,
é preciso suportar Antônio,
é preciso odiar Melquíades
é preciso substituir nós todos.

É preciso salvar o país,
é preciso crer em Deus,
é preciso pagar as dívidas,
é preciso comprar um rádio,
é preciso esquecer fulana.

É preciso estudar volapuque,
é preciso estar sempre bêbado,
é preciso ler Baudelaire,
é preciso colher as flores
de que rezam velhos autores.

É preciso viver com os homens
é preciso não assassiná-los,
é preciso ter mãos pálidas
e anunciar O FIM DO MUNDO.

Carlos Drummond de Andrade
In: Sentimento do mundo

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Nova amplitude

No livro Sentimento do mundo, a mão, que simboliza a consciência, aparece de início como algo que se completa, se estende para o semelhante e deseja redimi-lo. Como o poeta traz o outro no próprio ser carregado de tradições mortas, a redenção do outro seria como a redenção dele próprio, justificado por essa adesão a algo exterior que ultrapassa a sua humanidade limitada. A poesia consistiria em trazer em si os problemas do mundo, manifestando-os numa espécie de ação pelo testemunho, ou de testemunho como forma de ação através da poesia, que compensa momentaneamente as fixações individualistas do "eu todo retorcido".
[...] O poeta reage a esta série de constatações que alimentam a tomada de consciência de Sentimento do mundo, recusando os temas do lirismo tradicional e dispondo-se a partilhar, pelo espírito, da fabricação prodigiosa de um mundo novo anunciado pelos acontecimentos, que descreve em poemas admiráveis, utilizando símbolos como as mãos dadas, a aurora, a flor urbana, os matizes de vermelho, o sangue redentor, o operário que anda sobre o mar, manifestando uma era de prodígios.
Assim, pode rever a escala da personalidade em relação ao mundo; e desta verificação resulta acréscimo de compreensão do eu e do mundo, inclusive da relação entre ambos, o que dará nova amplitude à sua poesia.

Trecho do ensaio "Inquietudes na poesia de Drummond", de Antonio Candido.

Duas mãos

Sentimento do mundo

Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer

esse amanhecer
mais noite que a noite.

Carlos Drummond de Andrade
In: Sentimento do mundo

Mulher feita



PEDAÇOS DE MIM



Eu sou feito de
Sonhos interrompidos
detalhes despercebidos
amores mal resolvidos

Sou feito de
Choros sem ter razão
pessoas no coração
atos por impulsão

Sinto falta de
Lugares que não conheci
experiências que não vivi
momentos que já esqueci

Eu sou
Amor e carinho constante
distraída até o bastante
não paro por instante


Tive noites mal dormidas
perdi pessoas muito queridas
cumpri coisas não-prometidas

Muitas vezes eu
Desisti sem mesmo tentar
pensei em fugir,para não enfrentar
sorri para não chorar

Eu sinto pelas
Coisas que não mudei
amizades que não cultivei
aqueles que eu julguei
coisas que eu falei

Tenho saudade
De pessoas que fui conhecendo
lembranças que fui esquecendo
amigos que acabei perdendo
Mas continuo vivendo e aprendendo.

Martha Medeiros

O saber secreto



"Meu pai acreditava que os livros, encadernando a escrita e o saber, traziam prestígio; tambem os amava, porque também escrevia, sobretudo quadras, rimas cruzadas. Eu tremia diante dele porque, sei-o agora, seu destino, com sua voz, estava fechado. O que não impedia que, com os desvelos de minha mãe e Maria Amélia como compensação, ele tivesse sido o meu maior educador. Educava-me na solidão, por interpostas presenças, com sobressalto e desejo. Desejo de brincar, que depois transferi para brincar na leitura dos livros e suas imagens, desejo de amá-lo em quem o substituía no saber. Saber secreto que eu devia acordar, povoar, para o qual eu deveria encontrar equivalente em todos os instantes ao longo do meu dia."

Um arco singular, Livro de Horas II, Maria Gabriela Llansol.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Proteção



"Às 8h15 da manhã de 6 de agosto, Morimoto não estava muito mais longe da bomba que Akiko Takakura. Como Akiko, ele não se lembrava de nenhum som acompanhando o clarão. A mansão de vários andares, reforçada por telhas, tremeu e se achatou ao redor do senhor Morimoto e de seus dois primos; mas a combinação de telhas e três camadas de grossas vigas de madeira acima deles atenuou as explosões de raios gama para pelo menos um décimo. Os cômodos da mansão, cheios de estantes de livros do chão ao teto, atenuaram ainda mais os raios e absorveram as ondas de compressão. De certa forma, os três primos foram protegidos pela cultura”.

O Último Trem de Hiroshima, Charles Pellegrino

quinta-feira, 12 de maio de 2011

Escrever sempre me secou as lágrimas. Se eu não sofresse não escreveria.
Um arco singular, Livro de horas II, Maria Gabriela Llansol.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

O sincero




"O bonito me encanta, mas o sincero, ah! esse me fascina."
Clarice Lispector

Ressuscitar


"Serei agora minha mãe sentada à mesa, por necessidade de a ressuscitar junto de mim. Ressuscitar, no sentido de trazer, para novamente dar à luz, no que isso significa de proximidade dos corpos. Sentir o calor, tombar na carne, beber o leite, ver pela primeira vez sem necessidade de julgar ou de mover-me, ser levado. Sobretudo, estar à espera de ouvir a palavra que se retém, e que constituirá a própria língua. E esta, foi decidido naquele momento, que seria a língua portuguesa e não outra."

Trecho de Um arco singular: Livro de Horas II, de Maria Gabriela Llansol.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Há, é verdade.

Há sobre mim tanto desconhecido que continuadamente me apaixona vencer esse mar, relembrar o nome de algumas ilhas, dizendo: Ah, é verdade. Há, é verdade. Assim, para lá do conhecimento memorizável, trazido e fixado no consciente, tudo é possível.

Trecho de Um arco singular, Livro de horas II, de Maria Gabriela Llansol.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Juntos e distantes

27 de Novembro de 1977, domingo

Volto ao dia 26, sábado, dia em que celebrei o meu aniversário - 24 de Novembro. A. e eu tínhamos combinado uma conversa para o almoço. Nem absolutamente necessária, nem absolutamente desnecessária. Ele perguntou-me:
- De que julgas que quero falar?
Eu respondi:
- Da nossa independência.
E, como por encanto, nada mais se disse. Mas, mais tarde, como tivéssemos que esperar uma hora pelo autocarro em Tirlemont, decidimos ir passeando pela parte comercial, que, numa só rua sem trânsito automóvel, lembra vagamente Maastricht.
Os cafés, largamente envidraçados à flamenga, atraem-me com a aparência de estufa e casa. Embora já tivéssemos bebido água, chá, café, entrámos. Sentia-me como me sinto por vezes nas viagens - autónoma e livre, responsável pelo mínimo cabelo da minha cabeça. E sem que eu saiba quem o disse, dissemos que seria uma nova etapa vivermos cada um sozinho, homem só, mulher só, encontrando-nos como amantes nos fins-de-semana. Amantes de corpo, amantes de escrita, amantes de caminhos juntos e distantes. Eu viveria em Louvain-la-Neuve. Não, em Lovaina, onde o meio não é tão restrito, nem a gente tão conhecida.
Foi também o dia em que comprei a blusa de lã azul, e o avental preto às pintas. No espelho vejo que criei uma nova imagem. Mulher franzina, muito simplesmente vestida de lã e algodão. Vaga móvel, que se torna grave com muita juventude.
E _______
trabalho e escrevo. Na minha mocidade poderia ter aprendido a coser, fazer vestidos. Não aprendi. Escrever era talvez preferível. No plano de outra ordenação das coisas, seria talvez o mesmo.

Trecho de Um arco singular, Livro de horas II, de Maria Gabriela Llansol.

Bom senso e senso de medida



"Quando o amor é grande demais torna-se inútil: já não é mais aplicável, e nem a pessoa amada tem a capacidade de receber tanto. Fico perplexa como uma criança ao notar que mesmo no amor tem-se que ter bom senso e senso de medida. Ah, a vida dos sentimentos é extremamente burguesa”.
Aprendendo a Viver, Clarice Lispector

domingo, 8 de maio de 2011

Pra te esclarecer


(Tom Zé)

Tô bem de baixo pra poder subir
Tô bem de cima pra poder cair
Tô dividindo pra poder sobrar
Desperdiçando pra poder faltar
Devagarinho pra poder caber
Bem de leve pra não perdoar
Tô estudando pra saber ignorar
Eu tô aqui comendo para vomitar

Eu tô te explicando
Pra te confundir
Eu tô te confundindo
Pra te esclarecer
Tô iluminado
Pra poder cegar
Tô ficando cego
Pra poder guiar

Suavemente pra poder rasgar
Olho fechado pra te ver melhor
Com alegria pra poder chorar
Desesperado pra ter paciência
Carinhoso pra poder ferir
Lentamente pra não atrasar
Atrás da vida pra poder morrer
Eu tô me despedindo pra poder voltar

Ouçam aqui.

Para sempre

Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.

Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça, é eternidade.
Por que Deus se lembra
- mistério profundo -
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.

Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Normose










Normose

"Quanto mais a vida se torna truculenta, mais necessidade temos de buscar paz de espírito, o que explica o interesse crescente por crenças como o budismo e práticas como a ioga, que, cada uma a seu modo, procuram trazer a pessoa de volta para seu eixo interno, para um estado de relaxamento e de encontro com a felicidade através das coisas mais simples.

Lendo uma entrevista do professor Hermógenes, 86 anos, considerado o fundador da ioga no Brasil, ouvi uma palavra inventada por ele que me pareceu muito procedente: ele disse que o ser humano está sofrendo de normose, a doença de ser normal. Todo mundo quer se encaixar num padrão. Só que o padrão propagado não é exatamente fácil de alcançar. O sujeito “normal” é magro, alegre, belo, sociável e bem-sucedido. Quem não se “normaliza” acaba adoecendo. A angústia de não ser o que os outros esperam de nós gera bulimias, depressões, síndromes do pânico e outras manifestações de não-enquadramento. A pergunta a ser feita é: quem espera o que de nós? Quem são esses ditadores de comportamento a quem estamos outorgando tanto poder sobre nossas vidas?

Eles não existem. Nenhum João, Zé ou Ana bate à sua porta exigindo que você seja assim ou assado. Quem nos exige é uma coletividade abstrata, que ganha “presença” através de modelos de comportamento amplamente divulgados. Só que não existe lei que obrigue você a ser do mesmo jeito que todos, seja lá quem for todos. Melhor se preocupar em ser você mesmo.

A normose não é brincadeira. Ela estimula a inveja, a autodepreciação e a ânsia de querer o que não se precisa. Você precisa de quantos pares de sapato? Comparecer em quantas festas por mês? Pesar quantos quilos até o verão chegar?

Não é necessário fazer curso de nada para aprender a se desapegar de exigências fictícias. Um pouco de auto-estima basta. Pense nas pessoas que você mais admira: não são as que seguem todas as regras bovinamente, e sim aquelas que desenvolveram personalidade própria e arcaram com os riscos de viver uma vida a seu modo. Criaram o seu “normal” e jogaram fora a fórmula, não patentearam, não passaram adiante. O normal de cada um tem que ser original. Não adianta querer tomar para si as ilusões e desejos dos outros. É fraude. E uma vida fraudulenta faz sofrer demais.

Eu não sou filiada, seguidora, fiel ou discípula de nenhuma religião ou crença, mas simpatizo cada vez mais com quem nos ajuda a remover obstáculos mentais e emocionais, e a viver de forma mais íntegra, simples e sincera. Por isso divulgo o alerta: a normose está doutrinando erradamente muitos homens e mulheres que poderiam, se quisessem, ser bem mais autênticos e felizes."






Martha Medeiros

Cada livro tem seu lugar




"Aparentemente, cada livro tinha seu lugar. Mas, nos lugares onde na casa das outras pessoas havia papel de parede, quadros ou simplesmente um pedaço de parede nua, na casa de Elinor havia estantes abarrotadas de livros”.

Coração de Tinta, Cornelia Funke.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

A angústia das pequenas coisas ridículas

Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Álvaro de Campos

Pupila

Loucos e Santos
Oscar Wilde

Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante. A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos.
Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo. Deles não quero resposta, quero meu avesso.
Que me tragam dúvidas e angústias e aguentem o que há de pior em mim.
Para isso, só sendo louco. Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.
Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta. Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria. Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.
Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. Não quero amigos adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice! Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa.
Tenho amigos para saber quem eu sou. Pois os vendo loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril.

Vejam aqui a sensacional interpretação desse texto por Antonio Abujamra.

Cada dia mais rica



“Dor não tem nada haver com amargura.
Acho que tudo que acontece
é feito pra gente aprender cada vez mais,
é pra ensinar a gente a viver. Desdobrável.
Cada dia mais rica de humanidade.”

Adélia Prado

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Não volte nunca mais pra mim

Do fundo do meu coração
Roberto Carlos

Eu, cada vez que vi você chegar,
Me fazer sorrir e me deixar
Decidido, eu disse 'nunca mais'
Mas, novamente estúpido, provei
Desse doce amargo, quando eu sei
Cada volta sua o que me faz

Vi todo o meu orgulho em sua mão
Deslizar, se espatifar no chão
Vi o meu amor tratado assim
Mas basta agora o que você me fez
Acabe com essa droga de uma vez
Não volte nunca mais pra mim

Eu, toda vez que vi você voltar
Eu pensei que fosse pra ficar
E, mais uma vez, falei que 'sim'
Mas, já depois de tanta solidão,
Do fundo do meu coração
Não volte nunca mais pra mim

Se você me perguntar se ainda é seu
Todo o meu amor
Eu sei que eu, certamente, vou dizer que 'sim'
Mas, já depois de tanta solidão,
Do fundo do meu coração
Não volte nunca mais pra mim


*Para conferir a linda interpretação de Adriana Calcanhotto, clique aqui.



O tempo muito me ensinou




Ofertas de Aninha

Eu sou aquela mulher
a quem o tempo
muito ensinou.
Ensinou a amar a vida.
Não desistir da luta.
Recomeçar na derrota.
Renunciar a palavras e pensamentos negativos.
Acreditar nos valores humanos.
Ser otimista.

Creio numa força imanente
que vai ligando a família humana
numa corrente luminosa
de fraternidade universal.
Creio na superação dos erros
e angustias do presente.

Acredito nos moços
Exalto sua confiança,
generosidade e idealismo.
Creio nos milagres da ciência
e na descoberta de uma profilaxia
futura dos erros e violências
do presente.

Aprendi que mais vale lutar
do que recolher dinheiro fácil.
Antes acreditar do que duvidar.








Cora Coralina

terça-feira, 3 de maio de 2011

Todas as fontes

Que importa?...
Florbela Espanca

Eu era a desdenhosa, a indiferente.
Nunca sentira em mim o coração
Bater em violências de paixão,
Como bate no peito à outra gente.

Agora, olhas-me tu altivamente,
Sem sombra de desejo ou de emoção,
Enquanto as asas loiras da ilusão
Abrem dentro de mim ao sol nascente.

Minh'alma, a pedra, transformou-se em fonte;
Como nascida em carinhoso monte,
Toda ela é riso, e é frescura e graça!

Nela refresca a boca um só instante...
Que importa?... se o cansado viandante
Bebe em todas as fontes... quando passas?...

Acaso


"As vezes o acaso fica preguiçoso. Quando isso acontece, é necessário o acaso provocado."

Chico Buarque

Sonhos


Tudo era apenas uma brincadeira
E foi crescendo, crescendo, me absorvendo
E de repente eu me vi assim completamente seu
Vi a minha força amarrada no seu passo
Vi que sem você não tem caminho,
eu não me acho
Vi um grande amor gritar dentro de mim como
eu sonhei um dia
Quando o meu mundo era mais mundo
E todo mundo admitia
Uma mudança muito estranha
Mais pureza, mais carinho, mais calma,
mais alegria
No meu jeito de me dar
Quando a canção se fez mais clara e mais sentida
Quando a poesia realmente fez folia em minha vida
Você veio me falar dessa paixão inesperada
Por outra pessoa
Mas não tem revolta, não
Eu só quero que você se encontre
Ter saudade até que é bom
É melhor que caminhar vazio
A esperança é um dom
Que eu tenho em mim
Eu tenho sim
Não tem desespero não
Você me ensinou milhões de coisas
Tenho um sonho em minhas mãos
Amanhã será um novo dia
Certamente eu vou ser mais feliz


Caetano Veloso

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Minhas peles


'Quem sou eu?' Às vezes me comparo com as cobras, não por serpentário ou venenoso, mas tão-só porque eu e elas mudamos de pele de vez em quando. Usei muitas peles nessa minha vida já longa, e é delas que vou falar.

A primeira de minhas peles que vale a pena ser recordada é a do filho da professora primária, Mestra Fininha, de uma cidadezinha do centro do Brasil.

Outra saudosa pele minha foi a de etnólogo indigenista. Vestido nela, vivi dez anos nas aldeias indígenas do Pantanal e da Amazônia.

Não os salvei e esta é a dor que mais me dói. Apenas consolam algumas poucas conquistas, como a criação do Parque Indígena do Xingu e do Museu do Índio, no Rio de Janeiro.

Pele que encarnei e encarno ainda, com orgulho, é a de educador, função que exerço há quatro décadas. Essa, de fato, foi minha ocupação principal desde que deixei etnologia de campo.

Eu investia contra o analfabetismo ou pela reforma da universidade com mais ímpeto de paixão que sabedoria pedagógica. Não me dei mal. Acabei ministro de educação de meu país e fundador e primeiro reitor da Universidade de Brasília.

Outra pele que ostentei e ostento ainda é a de político. Sempre fui, em toda a minha vida adulta, um cidadão ciente de mim mesmo como um ser dotado de direitos e investido de deveres. Sobretudo o dever de intervir nesse mundo para melhorá-lo.

Com a pele de político militante fui duas vezes ministro de Estado, mas me ocupei fundamentalmente foi na luta por reformas sociais, que ampliassem as bases da sociedade e da economia, a fim de criar uma prosperidade generalizável a toda a população.

Fracassando nessa luta pelas reformas, me vi exilado por muitos anos e vivi em diversos países. Minha pele de proscrito foi mais leve do que poderia supor.

Meu ofício naqueles anos foi de professor de antropologia e, principalmente, reformador de universidades. Disto vivi.

No exílio, devolvido a mim, me fiz romancista, cumprindo uma vocação precoce que me vem da juventude.

Só no meu exílio, nos seus longos vagares, tive ocasião e desejo de novamente romancear.

De volta do exílio, retomei minhas peles todas. Hoje estou no Brasil lutando pelas minhas velhas causas: salvação dos índios, educação popular, a universidade necessária, o desenvolvimento nacional a democracia, a liberdade. No plano político, fui eleito vice-governador do Rio de Janeiro e depois senador da República.

Essas são as peles que tenho para exibir. Em todas e em cada uma delas me exerci sempre igual a mim, mas também variando sempre.


Texto de Darcy Ribeiro publicado em 1995 no livro de sua autoria O Brasil como Problema.
Fonte: Fundação Darcy Ribeiro

Combustível para essa travessia




"Desejo que desejes alguma mudança,
Uma mudança que seja necessária e que ela não te pese na alma,
Mudanças são temidas, mas não há outro combustível para essa travessia."

Martha Medeiros

Pedido




Vi Bábara, uma noite, olhando fixamente o céu. Quando descobri que dirigia os olhos para a lua, larguei o garoto no chão e subi depressa até o lugar em que ela se encontrava. Procurei, com os melhores dos argumentos, desviar-lhe a atenção. Em seguida, percebendo a inutilidade das minhas palavras, tentei puxá-la pelos braços, também não adiantou. O seu corpo era pesado demais para que eu conseguisse arrastá-lo.

Desorientado, sem saber como proceder, encostei-me à amurada. Não lhe vira antes tão grave o rosto, tão fixo o olhar. Aquele seria o derradeiro pedido. Esperei que o fizesse. Ninguém mais a conteria.

Mas, ao cabo de alguns minutos, respirei aliviado. Não pediu a lua, porém uma minúscula estrela, quase invisível a seu lado. Fui buscá-la.


Trecho do conto Bárbara, de Murilo Rubião.