terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Palavra

Imagem: Hugo Enio Braz. Extraída de: hugoeniobraz.blogspot.com.

"Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar.
Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer."

Graciliano Ramos

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Versos Negros (Mas nem tanto)


Ao levantar, muito cuidado, amigo.
Não ponha os pés no chão. Corre perigo
se há nylon no tapete: ele dá câncer.

Pise somente no ar, mas com cautela.
Uma pesquisa sábia nos revela
esta triste verdade: o ar dá câncer.

À hora do café, não seja pato,
pois tanto açúcar como ciclamato
e xícara e colher, sorry, dão câncer.

O banho de chuveiro? Não tomá-lo.
O de imersão, também. Sinto informá-lo
do despacho londrino: água dá câncer.

Não se vista, meu caro ou minha cara.
Um cientista famoso eis que declara:
na roupa, qualquer roupa, dorme o câncer.

A nudez, por igual, não recomendo,
a fim de prevenir um mal tremendo:
sábado se apurou que o nu dá câncer.

Rumo ao batente, agora. Antes, porém,
permita que eu indague: o amigo tem
um carrinho? Que azar. Carro dá câncer.

E colectivo, nem se fala. Em massa,
aumenta a perspectiva de desgraça.
No ónibus, no avião, viaja o câncer.

Invente um novo meio de transporte
para ir ao trabalho, e não à morte...
Mas sabe que o trabalho já dá câncer?

Isso mesmo: afirmou-me com certeza
uma nega com o nome de Teresa
que dar duro é uma fábrica de câncer.

Pare de trabalhar enquanto é tempo!
Mas evite o lazer, o passatempo,
que no jardim da folga nasce o câncer.

Dormir? Talvez. Ou antes, nem pensar.
Em sonho, pelo que ouço murmurar,
é quando mais solerte chega o câncer.

O amor então, é a grande solução?
Amor, fonte da vida... Essa é que não.
Amor, meu Deus, amor é o próprio câncer.

Viva, contudo, sem ficar nervoso,
mas sabendo que é muito perigoso
(lá disse o Rosa) e que viver dá câncer.

Já que você nasceu... Ah, não sabia
deste resumo da sabedoria?
Nascer, mero sinónimo de câncer.

Resta morrer, por precaução? Nem isto.
Veja, no céu, o aviso trimegisto:
no mundo de hoje, até morrer dá câncer.

Viva, portanto, amigo. Viva, viva
de qualquer jeito, na esperança viva
de que o câncer há-de morrer de câncer.

Ou morrerá - melhor - pela coragem
de enfrentarmos o horror desta linguagem
que faz do câncer dor maior que o câncer.

Pois se souber do trágico brinquedo
que é ver câncer em tudo desta vida,
o câncer vai morrer - morrer de medo.


Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

A fuga perfeita



"Eu caio nesse estado por diversas razões. Às vezes é depois de uma briga tipo “Não aguento mais olhar pra sua cara”. Outra vezes, é sintomático do meu estado psicológico, tédio até o último fio de cabelo, minha vida que está bagunçada, e aquele sentimento de medo sempre que me perguntam o que ando fazendo. Como alguém pode colocar todas essas coisas em ordem? Levando tudo em consideração, prefiro ler. É a fuga perfeita”.
Ler, Viver e Amar em Los Angeles, J.Kaufman & K. Mack.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

O Rei do Mar


Muitas velas. Muitos remos.
Âncora é outro falar...
Tempo que navegaremos
não se pode calcular.
Vimos as Plêiades. Vemos
agora a Estrela Polar.
Muitas velas. Muitos remos.
Curta vida. Longo mar.

Por água brava ou serena
deixamos nosso cantar,
vendo a voz como é pequena
sobre o comprimento do ar.
Se alguém ouvir, temos pena:
só cantamos para o mar...

Nem tormenta nem tormento
nos poderia parar.
(Muitas velas. Muitos remos.
Âncora é outro falar...)
Andamos entre água e vento
procurando o Rei do Mar.


Cecília Meireles

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Carta de Graciliano Ramos a Portinari

Rio - 18 de fevereiro -1946

Caríssimo Portinari,

A sua carta chegou muito atrasada, e receio que esta resposta já não o ache fixando na tela a nossa pobre gente da roça. Não há trabalho mais digno, penso eu. Dizem que somos pessimistas e exibimos deformações; contudo as deformações e a miséria existem fora da arte e são cultivadas pelos que nos censuram.

O que às vezes pergunto a mim mesmo, com angústia, Portinari, é isto: se elas desaparecessem, poderíamos continuar a trabalhar? Desejamos realmente que elas desapareçam ou seremos também uns exploradores, tão perversos como os outros, quando expomos desgraças?

Dos quadros que você me mostrou quando almocei no Cosme Velho pela última vez, o que mais me comoveu foi aquela mãe com a criança morta. Saí de sua casa com um pensamento horrível: numa sociedade sem classes e sem miséria seria possível fazer-se aquilo? Numa vida tranquila e feliz que espécie de arte surgiria? Chego a pensar que faríamos cromos, anjinhos cor de rosa, e isto me horroriza.

Felizmente, a dor existirá sempre, a nossa velha amiga, nada a suprimirá. E seríamos ingratos se desejássemos a supressão dela, não lhe parece? Veja como os nossos ricaços em geral são burros.

Julgo naturalmente que seria bom enforcá-los, mas se isto nos trouxesse tranquilidade e felicidade, eu ficaria bem desgostoso, porque não nascemos para tal sensaboria. O meu desejo é que, eliminados os ricos de qualquer modo e os sofrimentos causados por eles, venham novos sofrimentos, pois sem isto não temos arte.

E adeus, meu grande Portinari. Muitos abraços para você e para Maria.


Somewhere

Cena do filme O Mágico de Oz.

Somewhere, over the rainbow,
Skies are blue.
And the dreams that you dare to dream
Really do come true.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Não falemos nada



"-Há coisas que não se dizem.

-Que se não dizem só pela metad; mas, já que disse metade, diga tudo.

Tinha-se sentado numa cadeira ao pé da mesa. Podia estar um tanto confusa, o porte nãoe ra de acusada. Pedi-lhe ainda uma vez que não teimasse.

-Não, Bentinho, ou conte o resto, para que eu me defenda, se você acha que eu tenho defesa, ou peço-lhe desde já a nossa separação:não posso mais!

-A separação é coisa decidida - redargui pegando-lhe na proposta. Era melhor que fizéssemos por meias palavras ou em silêncio; cada um iria com a sua ferida. - Uma vez, porém, que a senhora insiste, aqui vai o que lhe posso dizer, e é tudo.

Não disse tudo; mas pude aludir aos amores de Escobar sem proferir-lhe o nome. Capitu não pôde deixar de rir, de um riso que sinto não poder transcrever aqui; depois, em um tom juntamente irônico e melancólico:

- Pois até os defuntos!Nem os mortos escapam aos seus ciúmes!

Consertou a capinha e ergueu-se. Suspirou, creio que suspirou, enquanto eu, que não podia outra coisa mais que a plena justificação dela, disse-lhe não sei que palavras adequadas a este fim. Capitu olhou pra mim com desdém, e murmurou:

-Sei a razão disto; é a casualidade da semelhança... A vontade de Deus explicará tudo... Ri-se? É natural; apesar do seminário não acredita em Deus; eu creio... Mas não falemos nisto; não nos fica bem dizer mais nada."

Dom Casmurro, Machado de Assis.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Dom Casmurro

Olhos de ressaca



"As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para gente que estava na sala. Redobrou de carícias para a amiga, e quis levá-la: mas o cadáver parece que a retinha também. Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã. "

Dom Casmurro, Machado de Assis.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Sugestão da luxúria e do egoísmo



"Fui, cheguei aos Arcos, entrei na rua de Matacavalos. A casa não era logo ali, mas muito além da dos Inválidos, perto da do Senado. Três ou quatro vezes, quisera interrogar o meu companheiro, sem ousar abrir a boca; mas agora, já nem tinha tal desejo. Ia só andando, aceitando o pior, como um gesto do destino, como uma necessidade da obra humana, e foi então que a Esperança, para combater o Terror, me segredou ao coração, não estas palavras, pois nada articulou parecido com palavras, mas uma ideia que poderia ser traduzida por elas: "Mamãe defunta, acaba o seminário".

Leitor, foi um relâmpago. Tão depressa alumiou a noite, como se esvaiu, e a escuridão fez-se mais cerrada, pelo efeito do remorso que me ficou. Foi uma sugestão da luxúria e do egoísmo. A piedade filial desmaiou um instante, com a perspectiva da liberdade certa, pelo desaparecimento da dívida e do devedor; foi um instante, menos que um instante, o centésimo de um instante, ainda assim o suficiente para complicar a minha aflição com um remorso."

Dom Casmurro, Machado de Assis.

Uma ponta de Iago

"A pergunta era imprudente, na ocasião em que eu cuidava de transferir o embarque. Equivalia a confessar que o motivo principal ou único da minha repulsa ao seminário era Capitu, e fazia crer improvável a viagem. Compreendi isto depois que falei ; quis emendar-me, mas nem soube como, nem ele me deu tempo.
-Tem andado alegre, como sempre; é uma tontinha. Aquilo, enquanto não pegar algum peralta da vizinhnça, que case com ela...

Estou que empalideci; pelo menos, senti correr um frio pelo corpo todo. A notícia de ela vivia alegre, quando eu chorava todas as noites, produziu-me aquele efeito, acompanhado de um bater de coração, tão violento, que ainda agora cuido ouvi-lo. Há alguma exageração nisto; mas o discurso humano é assim mesmo, um composto de partes excessivas e partes diminutas, que se compensam, ajustando-se. Por outro lado, se entendermos que a audiência aqui não é das orelhas, senão da memória, chegaremos à exata verdade. A minha memória ouve ainda agora as pancadas do coração naquele instante.Não se esqueças que era a emoção do primeiro amor."

Dom Casmurro, Machado de Assis.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

A queda

"Foi o caso que, uma segunda-feira, voltando eu para o seminário, vi cair na rua uma senhora. O meu primeiro gesto, em tal caso, devia ser de pena ou de riso; não foi nem uma nem outra coisa, porquanto (e é isto que eu quisera dizer em latim), porquanto a senhora tinha as meias muito lavadas, e não as sujou, levava ligas de seda, e não as perdeu. Várias pessoas acudiram, mas não tiveram tempo de a levantar; ela ergueu-se muito vexada, sacudiu-se, agradeceu, e enfiou pela rua próxima.

-Este gosto de imitar as francesas da rua do Ouvidor- dizia-me José Dias andando e comentando a queda- é evidentemente um erro. As nossas moças devem andar como sempre andaram, com seu vagar e paciência, e não este tique-taque afrancesado...

Eu mal podia ouvi-lo. As meias e as ligas da senhora branqueavam e enroscavam-se diante de mim, e andavam, caíam, erguiam-se e iam-se embora. Quando chegamos à esquina, olhei para a outra rua, e vi, a distância, a nossa desastrada, que ia no mesmo passo, tique-taque,tique-taque...

-Parece que não se machucou- disse eu.

- Tanto melhor para ela, mas é impossível que não tenha arranhado os joelhos; aquela presteza é manha...

Creio que foi manha que ele disse; eu fiquei nos "joelhos, arranhados". Dali em diante, até o seminário, não vi mulher na rua a quem não desejasse uma queda; a algumas adivinhei que traziam as meias esticadas e as ligas justas... Tal haveria que nem levasse meias... Mas eu as via com elas... Ou então... Também é possível..."

Dom Casmurro, Machado de Assis.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Escobar


"Eis aqui outro seminarista. Chamava-se Ezequiel de Sousa Escoba. Era um rapaz esbelto, olhos claros, um pouco fugitivos, como as mãos, os pés, como a fala, como tudo. Quem não estivesse acostumado com ele podia acaso sentir-se mal, não sabendo por onde lhe pegasse. Não fitava de rosto, não falava claro nem seguido; as mãos não apertavam as outras, nem se deixavam apertar delas, porque os dedos, sendo delgados e curtos, quando a gente cuidava tê-los entre os seus, já não tinha nada. O mesmo digo dos pés, que tão depressa estavam aqui como lá. Esta dificuldade em pousar foi o maior obstáculo que achou para tomar os costumes do seminário. O sorriso era instantâneo, mas também ria folgado e largo. Uma coisa não seria tão fugitiva, como o resto, a reflexão; íamos dar com ele, muitas vezes, olhos enfiados em si, cogitando. Respondia-nos sempre que meditava algum ponto espiritual, ou então que recordava a lição da véspera. Quando ele entrou na minha intimidade pedia-me frequentemente explicações e repetições miúdas, e tinha memória para guardá-las todas, até as palavras. Talvez esta faculdade prejudicasse alguma outra.
Era mais velho que eu três anos, filho de um advogado de Curitiba, aparentado com um comerciante do Rio de Janeiro, que servia de correspondente ao pai. Este era homem de fortes sentimentos católicos. Escobar tinha uma irmá, que era um anjo, dizia ele.
-Não é só na beleza que é um anjo, mas também na bondade. Não imagina que boa criatura que ela é. Escreve-me muitas vezes, hei de mostrar-lhes as cartas dela.
De fato eram simples e afetuosas, cheias de carícias e conselhos. Escobar contava-me histórias dela, interessantes, todas as quais vinham dar na bondade e no espírito daquela criatura: tais eram que me fariam capaz de acabar casando com ela se não fosse Capitu. Morreu pouco depois. Eu, seduzido pelas palavras dele, estive quase a contar-lhe logo logo, a minha história. A princípio fui tímido, mas ele fez-se entrado na minha confiança. Aqueles modos fugitivos cessavam quando ele queria, e o meio e o tempo os fizeram mais pousados. Escobar veio abrindo a alma toda, desde a porta da rua até o fundo do quintal. A alma da gente, como sabes, é uma casa assim disposta, não raro com janelas para todos os lados, muita luz e ar puro. Também as há fechadas e escuras, sem janelas ou com poucas e gradeadas, à semelhança de conventos e prisões. Outrossim, capelas e bazares, simples alpendres ou paços suntuosos.
Não sei o que era a minha. Eu não era ainda casmurro, nem dom casmurro; o receio é que me tolhia a franqueza, mas, como as portas não tinham chaves nem fechaduras, bastava empurrá-las, e Escobar empurrou-as e entrou. Cá o achei dentro, cá ficou, até que..."
Dom Casmurro, Machado de Assis.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Eu me doo o tempo todo



Depois tudo passou e Macabéa continuou a gostar de não pensar em nada. Vazia, vazia. Como eu disse, ela não tinha anjo da guarda. Mas se arranjava como podia. Quanto ao mais, ela era quase impessoal. Glória perguntou-lhe:
– Por que é que você me pede tanta aspirina? Não estou reclamando, embora isso custe dinheiro.
– É para eu não me doer.
– Como é que é? Heim? Você se dói?
– Eu me doo o tempo todo.
– Aonde?
– Dentro, não sei explicar.

(Clarice Lispector, A Hora da Estrela)

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Medos



"De repente, cessando a reflexão, fitou em mim os olhos de ressaca, e perguntou-me se tinha medo.

-Medo?

-Sim, pergunto se você tem medo.

-Medo de quê?

-Medo de apanhar, de ser preso, de brigar, de andar, de trabalhar...

Não entendi. Se ela tem me dito simplesmente:"Vamos embora!" pode ser eu obedecesse ou não; em todo o caso, entenderia. Mas aquela pergunta assim, vaga e solta, não pude atinar o que era.

-Mas... não entendo. De apanhar?

-Sim.

-Apanhar de quem? Quem é que me dá pancada?

Capitu fez um gesto de impaciência. Os olhos de ressaca não se mexiam e pareciam crescer. Sem saber de mimm e não querendo interrogá-la novamente, entrei a cogitar donde me viriam pancadas,e por quê, e também por que é que seria preso, e quem é que me havia de prender. Valha-me Deus!Vi de imaginação o aljube, uma casa escura e infecta. Também vi a presiganga, o quartel dos Barbonos e a Casa de Correção.Todas essas belas instituições sociais me envolviam no seu mistério, sem que os olhos de ressaca de Capitu me deixassem de crescer para mim, a tal ponto que as fizeram esquecer de todo.

O erro de Capitu foi não deixá-los crescer infinitamente, antes diminuir até as dimensões normais, e dar-lhe o movimento do costume. Capitu tornou ao que era, disse-me que estava brincando, não precisava afligir-me, e, com um gesto cheio de graça. bateu-me na cara, sorrindo, e disse:

-Medroso!

-Eu? Mas...

-Não é nada, Bentinho. Pois quem é que há de dar pancada ou prender você?Desculpe que eu hoje estou meio maluca; quero brincar, e ...

-Não, Capitu; você não está brincando; nesta ocasião, nenhum de nóstem vontade de brincar.

-Tem razão, foi só maluquice; até logo.

-Como até logo?

-Está-me voltando a dor de cabeça; vou botar uma rodela de limão nas fontes.

Fez o que disse, e atou o lenço outra vez na testa. Em seguida, acompanhou-me ao quintal para se despedir de mim; mas ainda aí nos detivemos por alguns minutos, sentados sobre a borda do poço. Ventava, o céu estava coberto. Capitu falou novamente da nossa separação, como de um fato certo e definitivo, por mais que eu, receoso disso mesmo, buscasse agora razões para animá-la. Capitu, quando não falava, riscava no chão, com um pedaço de taquara, narizes e perfis. Desde que se metera a desenhar, era uma de suas diversões; tudo lhe servia de papel e lápis. Como me lembrassem os nossos nomes abertos por ela no muro, quis fazer o mesmo no chão, e pedi-lhe a taquara. Não me ouviu ou não me atendeu."

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

A vocação



"Padre Cabral estava naquela primeira hora das honras em que as mínimas congratulações valem por odes. Tempo chega em que os dignificados recebem os louvores como um tributo usual, cara morta, sem agradecimentos. O alvoroço da primeira hora é melhor; esse estado da alma que vê na inclinação do arbusto, tocado do vento, um parabém da flora universal, traz sensações mais íntimas e finas que qualquer outro. Cabral ouviu as palavras de Capitu com infinito prazer.

-Obrigado, Capitu, muito obrigado;estimo que você goste também. Papai está bom?E mamãe?A você não se pergunta; essa cara é mesmo de quem vende saúde. E como vamos de rezas?

A todas essas perguntas Capitu ia respondendo prontamente e bem. Trazia um vestidinho melhor e sapatos de sair. Não entrou com a familiaridade de costume, deteve-se um instante à porta da sala, antes de ir beijar a mão a minha mãe e ao padre.Como desse a este, duas vezes em cinco minutos, o título de protonotário, José Dias, para se desforrar da concorrência, fez um pequeno discurso em honra ao coração paternal e auguistíssimo de Pio IX.

-Você é um grande prosa- disse tio Cosme, quando ele acabou.

José Dias sorriu sem vexame. Padre Cabral confirmou os louvores do agregado, sem os seus superlativos; ao que este acrescentou que o Cardeal Mastai evidentemente fora talhado para a tiara desde o princípio dos tempos. E, piscando-me o olho, conclui:

-A vocação é tudo. O estado eclesiástico é perfeitíssimo, contando que o sacerdote venha já destinado do berço. Não havendo vocação, falo de vocação sincera e real, um jovem pode muito bem estudar letras humanas, que também são úteis e honradas.

Padre Cabral retorquia:

- A vocação é muito, mas o poder de Deus é soberano. Um homem pode não ter gosto à Igreja e até persegui-la, e um dia a voz de Deus lhe fala, e ele sai apóstolo; veja São Paulo.

-Não contesto, mas o que eu digo é outra coisa. O que eu digo é que se pode muito bem servir a Deus sem ser padre, cá fora; pode-se ou não se pode?

-Pode-se.

-Pois então?- exclamou José Dias triunfalmente, olhando em volta de si. - Sem vocação é que não há bom padre, e em qualquer profissão liberal se serve a Deus, como todos devemos.

-Perfeitamente, mas vocação não é só do berço que se traz.

-Homem, é a melhor.

-Um moço sem gosto nenhum à vida eclesiástica pode acabar por ser muito bom padre; tudo é que Deus o determine. Não me quero dar por modelo, mas aqui estou eu que nasci com a vocação da medicina; meu padrinho, que era coadjutor de Santa Rita, teimou com meu pai para que me metesse no seminário; meu pai cedeu. Pois, senhor, tomei tal gosto aos estudos e à companhia dos padres, que acabei ordenando-me. Mas, suponha que não acontecia assim, e que eu não mudava de vocação, o que é que acontecia?Tinha estudado no seminário algumas matérias que é bom saberm e são sempre melhor ensinadas naquelas casas.

Prima Justina interveio:

-Como?Então pode-se entrar para o seminário e não sair padre?

Padre Cabral respondeu que sim, que se podia, e voltando-se para mim falou da minha vocação, que era manifesta; os meus brinquedos foram sempre da Igreja, e eu adorava os ofícios divinos. A prova não provava; todas as crianças do meu tempo eram devotas. Cabral acrescentou que o reitor de São José, a quem contara ultimamente a promessa de minha mãe, tinha o meu nascimento por milagre; ele era da mesma opinião. Capitu, cosida às saias de minha mãe, não atendia aos olhos ansiosos que eu lhe mandava; também não parecia escutar a conversação sobre o seminário e suas consequências, e, aliás, decorou o principal, como vim a saber depois. Duas vezes fui à janela, esperando que ela fosse também, e ficássemos à vontade, sozinhos, até acabar o mundo, se acabasse, mas Capitu não apareceu. Não deixou minha mãe, senão para ir embora. Eram ave-marias, despediu-se.

-Vai com ela, Bentinho - disse minha mãe.

-Não precisa, não, Dona Glória - acudiu ela rindo -, eu sei o caminho. Adeus, Sr. protonoário...

-Adeus, Capitu.

Tendo dado um passo no sentido de atravessar a sala, é claro que o meu dever, o meu gosto, todos os impulsos da idade e da ocasião eram atravessá-la de todo, seguir a vizinha corredor a fora, descer à chácara, entrar no quintal, dar-lhe o terceiro beijo e despedir-me. Não me importou a recusa, que cuidei simulada, e enfiei pelo corredor; mas Capitu, que ia depressa, estacou e fez-me sinal que voltasse. Não obedeci; cheguei-me a ela.

-Não venha, não; amanhã falaremos.

-Mas eu queria dizer a você...

-Amanhã.

-Escuta!

-Fica!

Falava baixinho; pegou-me na mão, e pôs o dedo na mão. Uma preta, que veio de dentro acender o lampião do corredor, vendo-nos naquela atitude, quase às escuras, riu de simpatia e murmurrou em tom que ouvíssemos alguma coisa que não entendi bem nem mal. Capitu segredou-me que a escrava desconfiara, e ia talvez contar às outras. Novamente me intimou que ficasse, e retirou-se; eu deixei-me estar parado, pregado, agarrado ao chão."