quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

A vocação



"Padre Cabral estava naquela primeira hora das honras em que as mínimas congratulações valem por odes. Tempo chega em que os dignificados recebem os louvores como um tributo usual, cara morta, sem agradecimentos. O alvoroço da primeira hora é melhor; esse estado da alma que vê na inclinação do arbusto, tocado do vento, um parabém da flora universal, traz sensações mais íntimas e finas que qualquer outro. Cabral ouviu as palavras de Capitu com infinito prazer.

-Obrigado, Capitu, muito obrigado;estimo que você goste também. Papai está bom?E mamãe?A você não se pergunta; essa cara é mesmo de quem vende saúde. E como vamos de rezas?

A todas essas perguntas Capitu ia respondendo prontamente e bem. Trazia um vestidinho melhor e sapatos de sair. Não entrou com a familiaridade de costume, deteve-se um instante à porta da sala, antes de ir beijar a mão a minha mãe e ao padre.Como desse a este, duas vezes em cinco minutos, o título de protonotário, José Dias, para se desforrar da concorrência, fez um pequeno discurso em honra ao coração paternal e auguistíssimo de Pio IX.

-Você é um grande prosa- disse tio Cosme, quando ele acabou.

José Dias sorriu sem vexame. Padre Cabral confirmou os louvores do agregado, sem os seus superlativos; ao que este acrescentou que o Cardeal Mastai evidentemente fora talhado para a tiara desde o princípio dos tempos. E, piscando-me o olho, conclui:

-A vocação é tudo. O estado eclesiástico é perfeitíssimo, contando que o sacerdote venha já destinado do berço. Não havendo vocação, falo de vocação sincera e real, um jovem pode muito bem estudar letras humanas, que também são úteis e honradas.

Padre Cabral retorquia:

- A vocação é muito, mas o poder de Deus é soberano. Um homem pode não ter gosto à Igreja e até persegui-la, e um dia a voz de Deus lhe fala, e ele sai apóstolo; veja São Paulo.

-Não contesto, mas o que eu digo é outra coisa. O que eu digo é que se pode muito bem servir a Deus sem ser padre, cá fora; pode-se ou não se pode?

-Pode-se.

-Pois então?- exclamou José Dias triunfalmente, olhando em volta de si. - Sem vocação é que não há bom padre, e em qualquer profissão liberal se serve a Deus, como todos devemos.

-Perfeitamente, mas vocação não é só do berço que se traz.

-Homem, é a melhor.

-Um moço sem gosto nenhum à vida eclesiástica pode acabar por ser muito bom padre; tudo é que Deus o determine. Não me quero dar por modelo, mas aqui estou eu que nasci com a vocação da medicina; meu padrinho, que era coadjutor de Santa Rita, teimou com meu pai para que me metesse no seminário; meu pai cedeu. Pois, senhor, tomei tal gosto aos estudos e à companhia dos padres, que acabei ordenando-me. Mas, suponha que não acontecia assim, e que eu não mudava de vocação, o que é que acontecia?Tinha estudado no seminário algumas matérias que é bom saberm e são sempre melhor ensinadas naquelas casas.

Prima Justina interveio:

-Como?Então pode-se entrar para o seminário e não sair padre?

Padre Cabral respondeu que sim, que se podia, e voltando-se para mim falou da minha vocação, que era manifesta; os meus brinquedos foram sempre da Igreja, e eu adorava os ofícios divinos. A prova não provava; todas as crianças do meu tempo eram devotas. Cabral acrescentou que o reitor de São José, a quem contara ultimamente a promessa de minha mãe, tinha o meu nascimento por milagre; ele era da mesma opinião. Capitu, cosida às saias de minha mãe, não atendia aos olhos ansiosos que eu lhe mandava; também não parecia escutar a conversação sobre o seminário e suas consequências, e, aliás, decorou o principal, como vim a saber depois. Duas vezes fui à janela, esperando que ela fosse também, e ficássemos à vontade, sozinhos, até acabar o mundo, se acabasse, mas Capitu não apareceu. Não deixou minha mãe, senão para ir embora. Eram ave-marias, despediu-se.

-Vai com ela, Bentinho - disse minha mãe.

-Não precisa, não, Dona Glória - acudiu ela rindo -, eu sei o caminho. Adeus, Sr. protonoário...

-Adeus, Capitu.

Tendo dado um passo no sentido de atravessar a sala, é claro que o meu dever, o meu gosto, todos os impulsos da idade e da ocasião eram atravessá-la de todo, seguir a vizinha corredor a fora, descer à chácara, entrar no quintal, dar-lhe o terceiro beijo e despedir-me. Não me importou a recusa, que cuidei simulada, e enfiei pelo corredor; mas Capitu, que ia depressa, estacou e fez-me sinal que voltasse. Não obedeci; cheguei-me a ela.

-Não venha, não; amanhã falaremos.

-Mas eu queria dizer a você...

-Amanhã.

-Escuta!

-Fica!

Falava baixinho; pegou-me na mão, e pôs o dedo na mão. Uma preta, que veio de dentro acender o lampião do corredor, vendo-nos naquela atitude, quase às escuras, riu de simpatia e murmurrou em tom que ouvíssemos alguma coisa que não entendi bem nem mal. Capitu segredou-me que a escrava desconfiara, e ia talvez contar às outras. Novamente me intimou que ficasse, e retirou-se; eu deixei-me estar parado, pregado, agarrado ao chão."

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