quarta-feira, 26 de junho de 2013

Dois irmãos

Por volta de 1914, Galib inaugurou o restaurante Biblos no térreo da casa. O almoço era servido às onze, comida simples, mas com sabor raro. Ele mesmo, o viúvo Galib, cozinhava, ajudava a servir e cultivava a horta, cobrindo-a com um véu de tule para evitar o sol abrasador. No Mercado Municipal, escolhia uma pescada, um tucunaré ou um matrinxã, recheava-o com farofa e azeitonas, assava-o no forno de lenha e servia-o com molho de gergelim. Entrava na sala do restaurante com a bandeja equilibrada na palma da mão esquerda; a outra mão enlaçava a cintura de sua filha Zana. Iam de mesa em mesa e Zana oferecia guaraná, água gasosa, vinho. O pai conversava em português com os clientes do restaurante: mascateiros, comandantes de embarcação, regatões, trabalhadores do Manaus Harbour. Desde a inauguração, o Biblos foi um ponto de encontro de imigrantes libaneses, sírios e judeus marroquinos que moravam na praça Nossa Senhora dos Remédios e nos quarteirões que a rodeavam. Falavam português misturado com árabe, francês e espanhol, e dessa algaravia surgiam histórias que se cruzavam, vidas em trânsito, um vaivém de vozes que contavam um pouco de tudo: um naufrágio, a febre negra num povoado do rio Purus, uma trapaça, um incesto, lembranças remotas e o mais recente: uma dor ainda viva, uma paixão ainda acesa, a perda coberta de luto, a esperança de que os caloteiros saldassem as dívidas. Comiam, bebiam, fumavam, e as vozes prolongavam o ritual, adiando a sesta.

Trecho da obra Dois irmãos, de Milton Hatoum.

terça-feira, 18 de junho de 2013

O Casamento

  “— O casamento embucetou! — Anuncia Maria Petisco, saltando do táxi na porta de entrada da casa de Almério. Deixara Tereza nos braços de mestre Gereba. Não tinha naufragado, não estava morto? Que morto nem meio morto, vivo e bem vivo, um pedaço de homem de se lamber os beiços, rolete de cana caiana, Tereza mais sortuda. Quando o Balboa naufragara, fazia mais de três meses que ele e Toquinho, outro baiano, haviam desengajado, iniciando a volta para casa. Na maciota, vendo mundo. Acabara de chegar e o compadre Caetano Gunzá lhe contara os acontecidos todos. O amigo Almério desculpasse mas o casamento parecia bastante comprometido.

No primeiro momento, Almério sofreu séria decepção, profundo abalo, não há como esconder; afinal, com papéis prontos e festa paga, não era para menos. Mas a curiosidade de velho leitor de folhetins, de ouvinte fanático de novelas de rádio, habituado a encarnar-se nos melodramáticos heróis, superou o desaponto, e ele pediu detalhes. Acreditem: em menos de meia hora já se entusiasmava com o relato. Maria Petisco se adiantara para dar a notícia aos convidados, chegando quase junto com o juiz e o padre. O magistrado logo se retirou; dom Timóteo, porém, permaneceu à espera de Almério, talvez o pobre necessitasse de consolo.

— E o que se vai fazer com tanto manjar? — Quis saber o velho Miguel Santana, que almoçara leve reservando espaço e apetite para a comilança.

— Ai, meu Deus, a festa não vai mais haver! — Gemeu a negra Domingas, preparada para sambar a noite inteira.

Na sala ia entrando Almério das Neves acompanhado de Anália, ouviu a queixa, abanou os braços, não lhe cabia culpa. Meu povo, disse ele, o casamento deu com os burros n’água. Para mim foi triste mas para Tereza foi alegre. O noivo que ela pensou que estava morto chegou do mar a tempo. Pior seria se chegasse depois. Aí, sim, de qualquer jeito era ruim. Encarnava o apaixonado generoso, capaz de sacrificar-se sem um lamento pela felicidade da bem-amada e do rival afortunado.

— Já que é assim, vamos festejar — Propôs Caymmi, homem de bom conselho.

Almério olhou a sala cheia, gente sobrando pelos corredores, as mesas postas, grandiosas, as garrafas no gelo e o jazz-band. Um sorriso lhe nasceu nos lábios, expulsando da face plácida do ex-noivo a última sombra de desaponto. Heróico e abnegado, elevou a voz para ser ouvido por todos os presentes, a Bahia inteira:

— Não há o casamento mas nem por isso a festa deixa de se realizar. Vamos estourar a champanha do doutor Nelson!

— Isso, sim, que é falar direito. — Aprovou Miguel Santana dirigindo-se para a sala de jantar.

A festa do casamento de Tereza Batista, apesar do casamento não ter acontecido, atravessou a noite, animadíssima. Comeram quanto havia, beberam a bebida toda, regabofe como hoje só na Bahia ainda se faz e olhe lá! A não ser para beber um copo de cerveja e beliscar de cada prato um pouco, o jazz não parou de tocar e a dança terminou na rua, de manhã, atrás do Trio Elétrico. No meio da noite, Almério um tanto alto, e Anália — essa não nasceu para mulher-dama — fizeram-se par constante e ela lhe confessou ser doida por criança. Ora, já se viu, até parece coisa de romance!

Vela enfunada, o saveiro corta o mar da Bahia. A brisa sopra, noite alta, leve sobre o golfo. Tereza Batista, respingada de água, sabendo a sal, odor de maresia, os negros cabelos soltos ao vento, ressuscitada, aleluia! Achega-se ao peito de Januário Gereba. Ao leme, mestre Janu pesa as qualidades da embarcação à venda: se for boa de travessia, compro e pago à vista, compadre Gunzá pôs meu dinheiro no Banco a render juros, compadre mais porreta. Que nome vamos lhe dar, me diga? Antes de escolher o nome do saveiro, Tereza fala:

— Sabe que eu matei um homem? Era ruim demais, só merecia a morte mas até hoje carrego ele nas costas.

Januário guarda o cachimbo de barro:

— Oxente, vamos descarregar ele aqui mesmo, de uma vez para sempre. Era ruim, vai com os cações, raça de peixe desgraçada. Assim, tu fica livre dele.

Sorri na noite escura, em seu sorriso o sol renasce. Um já se foi, porém tem mais, Janu.

— Um homem morreu dentro de mim, na hora mesmo. Não sei se para os outros ele foi bom ou mau, para mim o melhor homem do mundo, marido e pai. Levo a morte dele nas entranhas.

— Se morreu naquela hora, então está no paraíso, foi direto. Quem morre assim é protegido de Deus. Largue o corpo do justo com as arraias, se livre da morte dele, mas guarde tudo de bom que ele lhe deu.

O mar se abriu e se fechou, Tereza suspira aliviada. Gereba pergunta:

— Tem mais algum? Se tem, a gente aproveita e joga no mar. Por aqui perto descarreguei a minha falecida.

Tereza lembrou-se daquele que não chegara a ser, arrancado de seu ventre antes da hora do nascimento. Pôs a mão sobre a de mestre Januário Gereba, Janu do bem-querer, fazendo-o mover o leme, mudar o rumo do saveiro, dirigindo-o para pequena enseada entre bambus na margem do golfo, escondido remanso. Estendese Tereza na popa do saveiro:

— Venha e me faça um filho, Janu.

— Sou bom nisso como quê.

Ali, na barra da manhã, rio e mar.”

TEREZA BATISTA CANSADA DE GUERRA
JORGE AMADO