segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Conversar é humano

CONVERSAR

Em um poema leio:
Conversar é divino.
Mas os deuses não falam:
fazem, desfazem mundos
enquanto os homens falam.
Os deuses, sem palavras,
jogam jogos terríveis.

O espírito baixa
e desata as línguas
mas não diz palavra:
diz luz. A linguagem
pelo deus acesa,
é uma profecia
de chamas e um desplume
de sílabas queimadas:
cinza sem sentido.

A palavra do homem
é filha da morte.
Falamos porque somos
mortais: as palavras
não são signos, são anos.
Ao dizer o que dizem
os nomes que dizemos
dizem tempo: nos dizem,
somos nomes do tempo.
Conversar é humano.

Octavio Paz

Felicidade

" Na plenitude da felicidade, cada dia é uma vida inteira."
(Goethe)

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

É o que me interessa



Daqui, desse momento;
Do meu olhar, pra fora;
O mundo é só miragem,
A sombra do futuro
A sobra do passado
Assombram a paisagem.
Quem vai virar o jogo
E transformar a perda
Em nossa recompensa?
Quando eu olhar pro lado
Eu quero estar cercado
Só de quem me interessa.
Às vezes, é um instante,
À tarde, faz silêncio,
O vento sopra a meu favor.
Às vezes, eu pressinto e é como uma saudade
De um tempo que ainda não passou.
Me traz o seu sossego,
Atrasa o meu relógio,
Acalma a minha pressa...
Me dá sua palavra,
Sussurra em meu ouvido
Só o que me interessa.
A lógica do vento,
O caos do pensamento,
A paz na solidão,
A órbita do tempo,
A pausa do retrato,
A voz da intuição,
A curva do universo,
A fórmula do acaso,
O alcance da promessa,
O salto do desejo,
O agora e o infinito:
Só o que me interessa.

Lenine
Alguma coisa o despertou muito mais tarde, uma pancada suficientemente forte para fazê-lo se sentar na cama, achando que Ellie podia ter caído ou o berço de Gage desabado. Mas a lua saiu de trás de uma nuvem, inundou o quarto com uma luz branca, fria, e ele viu Victor Pascow de pé no vão da porta. A pancada fora de Pascow abrindo de repente a porta.
Estava ali, a cabeça destroçada atrás da têmpora esquerda. O sangue secara em seu rosto, formando listas avermelhadas como uma pintura indígena. A clavícula se projetava esbranquiçada. Sorria.
Louis olhou em volta. A mulher era um vago contorno sob o acolchoado amarelo e dormia profundamente. Olhou de novo pra Pascow, que estava morto mas, de certa forma, ainda não morrera. Louis, porém, não teve medo. E quase de imediato entendeu por que.
É um sonho, pensou, e só depois dessa conclusão reconfortante percebeu que, afinal, estava dominado pelo medo.
(...)
- Vim como amigo – continuou Pascow – Sua destruição e a destruição de tudo que o senhor ama está muito próxima, doutor.

Trecho do livro 'O Cemitério' de Stephen King

AMOR PRA RECOMEÇAR



Eu te desejo
Não parar tão cedo
Pois toda idade tem Prazer e medo...
E com os que erram
Feio e bastante
Que você consiga Ser tolerante...
Quando você ficar triste Que seja por um dia
E não o ano inteiro
E que você descubra
Que rir é bom
Mas que rir de tudo
É desespero...
Desejo! Que você tenha a quem amar
E quando estiver bem cansado
Ainda, exista amor Prá recomeçar
Prá recomeçar...
Eu te desejo muitos amigos
Mas que em um
Você possa confiar
E que tenha até
Inimigos
Prá você não deixar
De duvidar...
Eu desejo!
Que você ganhe dinheiro
Pois é preciso
Viver também
E que você diga a ele
Pelo menos uma vez
Quem é mesmo
O dono de quem...
Desejo!
Que você tenha a quem amar
E quando estiver bem cansado
Ainda, exista amor
Prá recomeçar...
Eu desejo!
Que você tenha a quem amar
E quando estiver bem cansado
Ainda, exista amor
Prá recomeçar
Prá recomeçar
Prá recomeçar...


Frejat

A responsabilidade


"Se eu me magôo e passo a odiar quem foi insensível comigo, esse problema é meu, não do outro. O outro apenas não correspondeu às minhas expectativas, não me deu o colo que eu achava que merecia, não foi o amigo que eu queria que tivesse sido. Ele foi ele. Eu é que queria que ele tivesse agido diferente. Então eu sou o responsável pelo que sinto."

Lea Waider

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

tempos hipermodernos

arte sem alma
cerveja sem álcool
platéia no palco

café sem cafeína
amantes sem amores
aprendizes professores

santos milionários
heróis salafrários
malditos que nunca
desceram aos infernos
assim são estes tempos
hipermodernos

Zeca Baleiro

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Aqui




"- Porra! – gritou.
Amaranta, que começava a colocar a roupa no báu, pensou que ela tinha sido picada por um escorpião.
- Onde está? – perguntou alarmada.
- O quê?
- O animal! – esclareceu Amaranta.
Ursula pôs o dedo no coração.
- Aqui – disse”

Cem Anos De Solidão, Gabriel Garcia Márquez

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Contentamento


"O mundo do contentamento tem o seu próprio e diferente sol"
José Saramago
"A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca e que, esquivando-nos do sofrimento, perdemos também a felicidade. A dor é inevitável. O sofrimento é opcional."
Carlos Drummond de Andrade

Desassossego


"Quem sou eu para mim? Só uma sensação minha.
O meu coração esvaia-se sem querer, como um balde roto. Pensar? Sentir? Como tudo cansa se é uma coisa definida!”

O Livro do Desassossego, Fernando Pessoa

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Onde tu estás


“A minha vida está aqui, onde tu estás, a minha vida é esta e não há outra vida”.

R. Aguirre
Subiu a escada com Gage, atravessando o calor vespertino do sol de Setembro que se filtrava pela janela. Mas quando atingiu o patamar do andar de cima, foi atingido por tamanha premonição de horror e desgraça que teve de parar, parar com uma impressão de frio. Olhou em volta espantado, não entendendo as sensações que tomavam conta dele. Segurou com tanta força o bebê que quase o machucou, e Gage se mexeu incomodado. Os braços e as costas de Louis estavam totalmente arrepiados.
O que está havendo?, ele se perguntou, confuso e assustado. O coração disparava, o couro cabeludo parecia gélido e subitamente pequeno demais para cobrir o crânio; podia sentir a onda repentina de adrenalina avançando por trás dos olhos. (...) Que diabo é isto? Fantasmas? Meu Deus, parece que alguma coisa realmente roçou em mim neste corredor, uma coisa que eu quase vi.

Trecho de O Cemitério, de Stephen King

A gandaia das ondas




É bonito se ver
Na beira da praia,
A gandaia
Das ondas que o barco balança.
Batendo na areia,
Molhando os cocares
Dos coqueiros,
Como guerreiros na dança.
Ó! Quem não viu, vá ver,
A onda do mar crescer.

Lenine

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

O suspirar do gigante

Escutávamos o marmulhar das ondas, na quebra do horizonte, enquanto esperávamos ver a baleia. Era ali o lugar dela aparecer, quando o sol se ajoelhava na barriga do mundo. De repente, um ruído barulhoso nos arrepiava: era o bichorão começando a chupar a água! Sorvia até o mar todo se vazar. Ouvíamos a baleia mas não lhe víamos. Até que, certa vez, desaguou na praia um desses mamíferos, enormão. Vinha morrer na areia. Respirava aos custos, como se puxasse o mundo nas suas costelas. A baleia moribundava, esgoniada. O povo acorreu para lhe tirar carnes, fatias e fatias de quilos. Ainda não morrera e já seus ossos brilhavam ao sol. Agora, eu via o meu país como uma dessas baleias que vêm agonizar na praia. A morte nem sucedera e já as facas lhe roubavam pedaços, cada um tentando o mais para si. Como se aquele fosse o último animal, derradeira oportunidade de ganhar uma porção. De vez enquanto, me parecia ouvir ainda o suspirar do gigante, engolindo vaga após vaga, fazendo da esperança uma maré vazando. Afinal, nasci num tempo em que o tempo não acontece. A vida, amigos, já não me admite. Estou condenado a uma terra perpétua, como a baleia que esfalece na praia. Se um dia me arriscar num outro lugar, hei-de levar comigo a estrada que não me deixa sair de mim.

Trecho de Terra Sonâmbula, de Mia Couto.

Me lançar


"Para quem quer se soltar invento o cais
Invento mais que a solidão me dá
Invento lua nova a clarear
Invento o amor e sei a dor de me lançar
Eu queria ser feliz
Invento o mar
Invento em mim o sonhador
Para quem quer me seguir eu quero mais
Tenho o caminho do que sempre quis
E um saveiro pronto pra partir
Invento o cais
E sei a vez de me lançar"

Milton Nascimento

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Nascente

A lua não vai alta, mas já tem o aspecto com que mais estimamos olhá-la, um disco luminoso inspirador de versos fáceis e sentimentos facílimos, peneira de seda que vai espoando uma alva farinha sobre a paisagem rendida. Dizemos então, Que lindo luar, e fazemos por esquecer o arrepio de medo que sentimos quando o astro aparece enorme, vermelho, ameaçador, sobre a curva da terra. Após tantos e tantos milénios, a lua nascente continua ainda hoje a surgir como uma ameaça, um sinal de fim, o que nos vale é durar a ansiedade poucos minutos, subiu o astro, tornou-se pequeno e branco, podemos respirar descansados. [...] São momentos em que o mundo sai dos eixos, percebemos que nada está seguro, e se pudéssemos dar voz plena ao que sentimos diríamos, com expressiva ausência de retórica, Foi por um triz.

Trecho de A jangada de pedra, de José Saramago.

Sede


"E eu me pergunto se viver não será essa espécie de ciranda de sentimentos que se sucedem e se sucedem e deixam sempre sede no fim”

Caio Fernando Abreu

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Francamente


"Não, francamente, quando se começa a fazer perguntas, nada resiste. Há uma quantidade de valores que se tomam como estabelecidos. Em nome de quem? No fundo, porquê a liberdade, porquê a igualdade? Qual é a justiça que faz sentido? Porquê preferir os outros a si próprio?”

Os Mandarins, Simone de Beauvoir.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Meus passarinhos e meus ninhos

Les souvenirs touffus et la douce déraison des enfances paysannes, en vain les chercherais-je en moi. Je n'ai jamais gratté la terre ni quêté des nids, je n'ai pas herborisé ni lancé des pierres aux oiseaux. Mais les livres ont eté mes oiseaux et mes nids, mes bêtes domestiques, mon étable et ma campagne...

As densas lembranças e o doce contra-senso das crianças camponesas, em vão os procuraria em mim. Nunca fucei a terra nem procurei ninhos, não colecionei plantas nem joguei pedras nos passarinhos. No entanto, os livros foram meus passarinhos e meus ninhos, meus animais de estimação, meu estábulo e meu campo...

(Jean-Paul Sartre)

Um tempinho


"Um dia desses, eu separo um tempinho e ponho em dia todos os choros que eu não tenho tido tempo de chorar”

Drummond

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

O vento


VENTO FORTE

(Para Mario Quintana)

"O vento aqui não pára.

Nem um segundo,
nem um pouquinho.

Ah, se eu fosse moinho..."


Drummond

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Carta à viuvinha.



"Se passasse há dez anos pela praia da Glória, minha prima, antes que as novas ruas que abriram tivessem dado um ar de cidade às lindas encostas do morro de Santa Teresa, veria de longe sorrir-lhe entre o arvoredo, na quebrada da montanha, uma casinha de quatro janelas com um pequeno jardim na frente. Ao cair da tarde, havia de descobrir na última, das janelas o vulto gracioso de uma menina que aí se conservava imóvel até seis horas, e que, retirando-se ligeiramente, vinha pela portinha do jardim encontrar-se com um moço que subia a ladeira e oferecer-lhe modestamente a fronte, onde ele pousava um beijo de amor tão casto que parecia antes um beijo de pai. Depois, com as mãos entrelaçadas, iam ambos sentar-se a um canto do jardim, onde a sombra era mais espessa, e aí conversavam baixinho um tempo esquecido; ouvia-se apenas o doce murmúrio das vozes, interrompidas por esses momentos de silêncio em que a alma emudece, por não achar no vocábulo humano outra linguagem que melhor a exprima. O arrulhar destes dois corações virgens durava até oito horas da noite, quando uma senhora de certa idade chegava a uma das janelas da casa, já então iluminada, e, debruçando-se um pouco, dizia com a voz doce e afável."


A viuvinha. JOSÉ DE ALENCAR. 

Outra vida


"Temos todos duas vidas:
A verdadeira, que é a que sonhamos na infância,
E que continuamos sonhando, adultos, num substrato de névoa;
A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros,
Que é a prática, a útil,
Aquela em que acabam por nos meter num caixão.

Na outra não há caixões, nem mortes,
Há só ilustrações de infância:
Grandes livros coloridos, para ver mas não ler;
Grandes páginas de cores para recordar mais tarde.
Na outra somos nós,
Na outra vivemos;
Nesta morremos, que é o que viver quer dizer;
Neste momento, pela náusea, vivo na outra…"

Álvaro de Campos

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Escritura



IRMANDADE


Sou homem: duro pouco
e é enorme a noite.
Mas olho para cima:
as estrelas escrevem.
Sem entender compreendo:
Também sou escritura
e neste mesmo instante
alguém me soletra.



Octavio Paz

Moon River

Cena do filme Breakfast at Tiffany's (Bonequinha de Luxo). Audrey Hepburn canta Moon River.
Moon river
Wider than a mile
I'm crossing you
In style, some day
Oh, dream maker
Your heart breaker
Wherever you're going
I'm going your way

Two drifters
Off to see the world
There's such
A lot of world to see
We're after
The same rainbow's end
Waiting around the bend
My huckleberry friend
Moon river
And me

Memória poética


"Parece que existe no cérebro uma zona específica, que poderíamos chamar memória poética, que registra o que nos encantou, o que nos comoveu, o que dá beleza à nossa vida. Desde que Tomas conhecera Tereza, nenhuma outra mulher tinha o direito de deixar a marca, por efêmera que fosse, nessa zona de seu cérebro. Tereza ocupava como déspota sua memória poética e dela varrera todos os traços das outras mulheres. {…} O amor começa por uma metáfora. Ou melhor: o amor começa no momento em que uma mulher se inscreve com uma palavra em nossa memória poética.”

A Insustentável Leveza do Ser, Milan Kundera .

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Certas coisas.



Não existiria som
Se não houvesse o silêncio
Não haveria luz
Se não fosse a escuridão
A vida é mesmo assim,
Dia e noite, não e sim...

Cada voz que canta o amor não diz
Tudo o que quer dizer,
Tudo o que cala fala
Mais alto ao coração.
Silenciosamente eu te falo com paixão...

Eu te amo calado,
Como quem ouve uma sinfonia
De silêncios e de luz.
Mas somos medo e desejo,
Somos feitos de silêncio e som,
Tem certas coisas que eu não sei dizer...

A vida é mesmo assim,
Dia e noite, não e sim...

Eu te amo calado,
Como quem ouve uma sinfonia
De silêncios e de luz,
Mas somos medo e desejo,
Somos feitos de silêncio e som,
Tem certas coisas que eu não sei dizer...
E digo.



Lulu Santos. 



Ouça, na voz de Lenine e Zélia Duncan, aqui.  

"Você também só sabe é mesmo chover!"

Maio, mês das borboletas noivas flutuando em brancos véus. Sua exclamação talvez tivesse sido um prenúncio do que ia acontecer no final da tarde desse mesmo dia: no meio da chuva abundante encontrou (explosão) a primeira espécie de namorado da sua vida, o coração batendo como se ela tivesse englutido um passarinho esvoaçante e preso. O rapaz e ela se olharam por entre a chuva e se reconheceram como dois nordestinos, bichos da mesma espécie que se farejam. Ele a olhara enxugando o rosto molhando com as mãos. E a moça, bastou-lhe vê-lo para torná-lo imediatamente sua goiabada-com-queijo.
Ele...
Ele se aproximou e com voz cantante de nordestino que a emocionou, perguntou-lhe:
– E se me desculpe, senhorinha, posso convidar a passear?
– Sim, respondeu atabalhoadamente com pressa antes que ele mudasse de idéia.
– E, se me permite, qual é mesmo a sua graça?
– Macabéa.
– Maca o quê?
– Béa, foi ela obrigada a completar.
[...]
Da segunda vez em que se encontraram caía uma chuva fininha que ensopava os ossos. Sem nem ao menos se darem as mãos caminhavam na chuva que na cara de Macabéa parecia lágrimas escorrendo.
Da terceira vez em que se encontraram – pois não é que estava chovendo? – o rapaz, irritado e perdendo o leve verniz de finura que o padrasto a custo lhe ensinara, disse-lhe:
– Você também só sabe é mesmo chover!
– Desculpe.
Mas ela já o amava tanto que não sabia mais como se livrar dele, estava em desespero de amor.


Trechos de A hora da estrela, de Clarice Lispector.

O êxtase


"Me nego a viver em um mundo ordinário como uma mulher ordinária a estabelecer relações ordinárias. Necessito o êxtase. Não me adaptarei ao mundo. Me adapto a mim mesma."

Anais Nïn

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Mistério sempre há de pintar por aí

Esotérico

Não adianta nem me abandonar
Porque mistério sempre há de pintar por aí
Pessoas até muito mais vão lhe amar
Até muito mais difíceis que eu pra você
Que eu, que dois, que dez, que dez milhões, todos iguais
Até que nem tanto esotérico assim
Se eu sou algo incompreensível, meu Deus é mais
Mistério sempre há de pintar por aí
Não adianta nem me abandonar (não adianta não)
Nem ficar tão apaixonada, que nada
Que não sabe nadar
Que morre afogada por mim

Gilberto Gil
ouçam aqui

Grandes crimes disfarçados e profundas traições


" 'Às vezes, tocado pela tua acuidade, eu conseguia ver em ti a tua própria angústia. Não a angústia de ser cão que era a tua única forma possível. Mas a angústia de existir de um modo tão perfeito que se tornava uma alegria insuportável: davas então um pulo e vinhas lamber meu rosto com amor inteiramente dado e certo perigo de ódio como se fosse eu quem, pela amizade, te houvesse revelado. Agora estou bem certo de que não fui eu quem teve um cão. Foste tu que tiveste uma pessoa. Mas possuíste uma pessoa tão poderosa que podia escolher: e então te abandonou.
'(...)Há tantas formas de ser culpado e de perder-se para sempre e de se trair e de não se enfrentar. Eu escolhi a de ferir um cão.', pensou o homem. (...) 'Porque eu sabia que esse seria um crime menor e que ninguém vai para o Inferno por abandonar um cão que confiou num homem. Porque eu sabia que esse crime não era punível.'
Sentado na chapada, sua cabeça matemática estava fria e inteligente. Só agora ele parecia compreender, em toda sua gélida plenitude, que fizera com o cão algo realmente impune e para sempre. Pois ainda não haviam inventado castigo para os grandes crimes disfarçados e para as profundas traições."
(Trecho de O crime do professor de Matemática, de Clarice Lispector)

A verdade


"─ Por onde quer que eu comece?
─ Você é o narrador. Só peço que me diga a verdade.
─ Não sei a verdade.
─ A verdade é o que dói. "

O Jogo do Anjo, Carlos Ruiz Zafón in .

Antes do começo

Ruídos confusos, claridade incerta.
Outro dia começa.
Um quarto em penumbra
e dois corpos estendidos.
Em minha fronte me perco
numa planície vazia.
E as horas afiam suas navalhas.
Mas a meu lado tu respiras;
íntima e longínqua
fluis e não te moves.
Inacessível se te penso,
com os olhos te apalpo,
te vejo com as mãos.
Os sonhos nos separam
e o sangue nos reúne:
Somos um rio que pulsa.
Sob tuas pálpebras amadurece
a semente do sol.
O mundo
No entanto, não é real,
o tempo duvida:
Só uma coisa é certa,
o calor da tua pele.
Em tua respiração escuto
as marés do ser,
a sílaba esquecida do Começo.

Octavio Paz

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Have you ever seen the rain?


Someone told me long ago
There's a calm before the storm
I know, it's been comin' for some time

When it's over, so they say
It will rain a sunny day
I know, shinin' down like water

I want to know, have you ever seen the rain?
I want to know, have you ever seen the rain?
Comin' down on a sunny day

Yesterday, and days before
Sun is cold and rain is hard
I know, been that way for all my time

And forever, on it goes
Through the circle, fast and slow
I know, it can't stop, I wonder

I want to know, have you ever seen the rain?
I want to know, have you ever seen the rain?
Comin' down on a glorious day

I want to know, have you ever seen the rain?
I want to know, have you ever seen the rain?
Comin' down on a glorious day

(Creedence Clearwater Revival)

Composição: John Fogerty

*Ouça aqui.

coisas findas

Memória


Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão

Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.


Carlos Drummond de Andrade

Respirar fundo


"Respirou fundo. Morangos, mangas maduras, monóxido de carbono, pólen, jasmins nas varandas dos subúrbios. O vento jogou seus cabelos ruivos sobre a cara. Sacudiu a cabeça para afastá-los e saiu andando lenta em busca de uma rua sem carros, de uma rua com árvores, uma rua em silêncio onde pudesse caminhar devagar e sozinha até em casa. Sem pensar em nada, sem nenhuma amargura, nenhuma vaga saudade, rejeição, rancor ou melancolia. Nada por dentro e por fora além daquele quase-novembro, daquele sábado, daquele vento, daquele céu azul – daquela não-dor, afinal”

Estranhos Estrangeiros, Caio F. Abreu

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

semente oculta

"uma palavra, quando dita, dura mais que o som e os sons que a formaram, fica por aí, invisível e inaudível para poder guardar o seu próprio segredo, uma espécie de semente oculta debaixo da terra, que germina longe dos olhos, até que de repente afasta o torrão e aparece à luz, um talo enrolado, uma folha amarrotada que lentamente se desdobra." (José Saramago)

Perigoso


"Minha cabeça estava confusa com tudo isso: a maneira boba como os adultos agiam entre eles, jamais dizendo o que realmente pensavam, dependendo de suspiros e olhadelas e maneiras reservadas para falar por eles. Era muito perigoso! Devia ser muito fácil interpretar erradamente um suspiro ou um olhar. Eu tinha certeza de que não ia saber fazer tudo direito quando crescesse. Felizmente ainda faltava muito tempo”

Eu sou Alice, Melanie Benjamin

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

o corpo antes da roupa

"lembrando de enfiada que ninguém, pisando, estava impedido de protestar contra quem pisava, mas que era preciso sempre começar por enxergar a própria pata, o corpo antes da roupa, uma sentida descoberta precedendo a comunhão"


Trecho de Um copo de cólera, de Raduan Nassar.

Espreitar

"seria muito interessante, além de educativo, ser uma vez por outra espreitadores de nós próprios, provavelmente não gostaríamos" (José Saramago)

Escutar


" - Já não vejo brancos nem pretos, tudo para mim são mulatos.

Se conformara. Afinal, não é o cego quem mais espreita à janela?Lhe fazia falta, sim, o azul. Porque tinha sido sua primeira cor. Na aldeiazinha onde crescera, o rio tinha sido o céu da sua infância. No fundo, porém, o azul nunca é uma cor exacta. Apenas uma lembrança, em nós, da água que ja fomos.

- Agora, sabe o que eu faço?Venho perto do rio e escuto as ondas: e, de novo, nascem os azuis. Como agora, estou escutar o azul.

Miserinha se levanta. O balanço do barco lhe faz tontear o coração."


Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, Mia Couto.

Uma mulher chamada guitarra

de Vinícius de Moraes

UM DIA, casualmente, eu disse a um amigo que a guitarra, ou violão, era "a música em forma de mulher". A frase o encantou e ele a andou espalhando como se ela constituísse o que os franceses chamam um mot d'esprit. Pesa-me ponderar que ela não quer ser nada disso; é, melhor, a pura verdade dos fatos.
O violão é não só a música (com todas as suas possibilidades orquestrais latentes) em forma de mulher, como, de todos os instrumentos musicais que se inspiram na forma feminina — viola, violino, bandolim, violoncelo, contrabaixo — o único que representa a mulher ideal: nem grande, nem pequena; de pescoço alongado, ombros redondos e suaves, cintura fina e ancas plenas; cultivada, mas sem jactância; relutante em exibir-se, a não ser pela mão daquele a quem ama; atenta e obediente ao seu amado, mas sem perda de caráter e dignidade; e, na intimidade, terna, sábia e apaixonada. Há mulheres-violino, mulheres-violoncelo e até mulheres-contrabaixo.
Mas como recusam-se a estabelecer aquela íntima relação que o violão oferece; como negam-se a se deixar cantar, preferindo tornar-se objeto de solos ou partes orquestrais; como respondem mal ao contato dos dedos para se deixar vibrar, em benefício de agentes excitantes como arcos e palhetas, serão sempre preteridas, no final, pelas mulheres-violão, que um homem pode, sempre que quer, ter carinhosamente em seus braços e com ela passar horas de maravilhoso isolamento, sem necessidade, seja de tê-la em posições pouco cristãs, como acontece com os violoncelos, seja de estar obrigatoriamente de pé diante delas, como se dá com os contrabaixos.
Mesmo uma mulher-bandolim (vale dizer: um bandolim), se não encontrar um Jacob pela frente, está roubada. Sua voz é por demais estrídula para que se a suporte além de meia hora. E é nisso que a guitarra, ou violão (vale dizer: a mulher-violão), leva todas as vantagens. Nas mãos de um Segovia, de um Barrios, de um Sanz de la Mazza, de um Bonfá, de um Baden Powell, pode brilhar tão bem em sociedade quanto um violino nas mãos de um Oistrakh ou um violoncelo nas mãos de um Casals. Enquanto que aqueles instrumentos dificilmente poderão atingir a pungência ou a bossa peculiares que um violão pode ter, quer tocado canhestramente por um Jayme Ovalle ou um Manuel Bandeira, quer "passado na cara" por um João Gilberto ou mesmo o crioulo Zé-com-Fome, da Favela do Esqueleto.
Divino, delicioso instrumento que se casa tão bem com o amor e tudo o que, nos instantes mais belos da natureza, induz ao maravilhoso abandono! E não é à toa que um dos seus mais antigos ascendentes se chama viola d'amore, como a prenunciar o doce fenômeno de tantos corações diariamente feridos pelo melodioso acento de suas cordas... Até na maneira de ser tocado — contra o peito — lembra a mulher que se aninha nos braços do seu amado e, sem dizer-lhe nada, parece suplicar com beijos e carinhos que ele a tome toda, faça-a vibrar no mais fundo de si mesma, e a ame acima de tudo, pois do contrário ela não poderá ser nunca totalmente sua.
Ponha-se num céu alto uma Lua tranqüila. Pede ela um contrabaixo? Nunca! Um violoncelo? Talvez, mas só se por trás dele houvesse um Casals. Um bandolim? Nem por sombra! Um bandolim, com seus tremolos, lhe perturbaria o luminoso êxtase. E o que pede então (direis) uma Lua tranqüila num céu alto? E eu vos responderei; um violão. Pois dentre os instrumentos musicais criados pela mão do homem, só o violão é capaz de ouvir e de entender a Lua.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011



CARTA LXXXV
A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Vai enfim tranquilizar-se, e, sobretudo, fazer-me justiça.
Escute, e não me confunda com as outras mulheres. Cheguei ao fim da minha ventura com Prévan; ao fim! Compreende bem o que isto quer dizer? Agora o Visconde vai julgar qual de nós, eu ou ele, se poderá gabar. A narração não é tão agradável como a ação; por outro lado, não seria justo que, enquanto o Visconde nada mais fez que raciocinar bem ou mal sobre este assunto, extraísse dele tanto prazer como eu, que empreguei tempo e trabalho.
Entretanto, se tem algum grande golpe de audácia a executar, se pretende tentar qualquer empreendimento em que esse rival perigoso lhe faça sombra, pode vir. Ele deixou-lhe o campo livre, pelo menos por algum tempo; talvez mesmo não torne a erguer-se da prostração em que o lancei.
Como o Visconde é feliz em ter-me por amiga! Sou para si uma fada benfazeja! Enquanto vai definhando longe da beleza que o atrai, eu digo uma palavra, e de novo se encontra junto dela. Deseja vingar-se de uma mulher que lhe furta; eu marco o lugar onde deve feri-la, e entrego-a à sua mercê. Por fim, para afastar do combate um concorrente temível, sou ainda eu que o inspiro e o ponho no mais alto lugar. Na verdade, se não passa a vida a agradecer-me, é porque é um ingrato. Mas volto à minha aventura, desde o início.
O encontro, marcado em voz alta, à saída da Ópera, foi ouvido, como eu tinha esperado*. Prévan compareceu; e quando a Marechala lhe disse delicadamente que se sentia feliz por o ver duas vezes seguidas nas suas recepções, ele teve o cuidado de responder que desde a tarde de terça-feira tinha desfeito mil compromissos para poder assim dispor daquela noite. A bom entendedor...
No entanto, como eu desejava ter a certeza se era ou não o
*Ver Carta LXXIV*Ver Carta LXXIV
verdadeiro objetivo daquela lisonjeira solicitude, quis obrigar o novo apaixonado a escolher entre mim e o seu gosto dominante. Declarei que não jogava; de fato, ele encontrou, por seu lado, mil pretextos para não jogar. E o meu primeiro triunfo foi sobre o lansquené.
Tomei a meu cargo o bispo de... para ter com quem conversar; escolhi-o em virtude da sua ligação com o herói do dia, a quem eu queria dar toda a facilidade de me abordar. Ao mesmo tempo, sentia-me à vontade por ter uma testemunha respeitável que, em caso de necessidade, poderia depor sobre o meu comportamento e os meus propósitos. Esta combinação deu resultado.
Depois das conversas vagas do costume, Prévan, tendo-se tornado o guia da conversação, foi tomando diversos tons, para experimentar o que me poderia agradar. Recusei o do sentimento, como não acreditando nele; com o meu aspecto sério, fiz deter a sua jovialidade, que me pareceu demasiado ligeira para um início; baixou de tom, tomando o da amizade discreta; e foi sob esta bandeira vulgar que começamos o nosso recíproco ataque.
Na altura da ceia, o bispo não descia; Prévan ofereceu-me o braço e à mesa tomou naturalmente o lugar a meu lado. É preciso ser justo: soube sustentar com habilidade a nossa conversa particular, parecendo no entanto ocupar-se da conversa geral, da qual aparentemente ocupava o posto central. À sobremesa, falou-se de uma peça nova que na segunda-feira seguinte devia ir à cena no Teatro Francês. Afetei algum pesar por não ter marcado o meu camarote; ele ofereceu-me o seu, que recusei, como é da praxe; ao que ele respondeu muito agradavelmente que eu não tinha ouvido bem; que com certeza não faria o sacrifício do seu camarote a alguém que ele não conhecia, mas que somente me avisava de que a senhora Marechala disporia dele.
Ela prestou-se a este gracejo e eu aceitei.
Quando subimos ao salão, ele pediu, como pode imaginar, um lugar nesse camarote; e como a Marechala, que o trata com muita bondade, lho prometeu se ele tivesse juízo, aproveitou a ocasião para uma daquelas conversações de duplo sentido, para as quais tem um talento que o Visconde já me gabou. De fato, tendo-se posto de joelhos diante da Marechala, como uma criança submissa, dizia ele, sob o pretexto de lhe pedir a opinião e de implorar o seu auxílio, disse ainda muitas coisas lisonjeiras e ternas, as quais me era fácil supor que se dirigiam a mim.
Como havia ainda várias pessoas que não tomavam parte no jogo depois da ceia, a conversa foi mais geral e menos interessante; mas os nossos olhos falaram muito. Os nossos olhos, disse eu; mas deveria dizer os dele, pois os meus tiveram só uma linguagem, que foi a da surpresa. Ele teve ocasião para pensar que eu o admirava e me ocupava excessivamente do efeito prodigioso que causava sobre mim. Julgo que o deixei muito satisfeito; pelo meu lado, eu não estava menos contente.
Na segunda-feira seguinte, fui ao Teatro Francês, como tínhamos combinado. Apesar da sua curiosidade literária, caro Visconde, nada posso dizer-lhe do espetáculo, a não ser que Prévan tem um talento maravilhoso para o galanteio, e que a peça caiu; eis tudo o que lhe posso dizer. Era com pena que eu via findar o serão, que realmente me agradava muito. E para o prolongar, convidei a Marechala a vir cear comigo; o que me forneceu pretexto para propor o mesmo ao amável galanteador, que pediu apenas o tempo para ir, correndo, a casa das Condessas de B..., a fim de se libertar de um compromisso. Este nome reavivou toda a minha cólera; vi claramente que ele ia começar as confidências. Recordei-me dos seus prudentes conselhos e prometi a mim própria... continuar a aventura. Estava certa de que o emendaria de tão perigosa tendência.
Estranho ao meu grupo, que naquela noite era pouco numeroso, ele devia-me as atenções que são de uso neste caso. Por isso, quando fomos cear, ofereceu-me a mão. Eu tive a malícia, ao aceitá-la, de pôr na minha um ligeiro frêmito, e de conservar, enquanto andávamos, os olhos baixos e a respiração alta.
Tinha o aspecto de pressentir a minha derrota e de temer o meu vencedor. Ele notou-o à maravilha; e logo o traidor mudou de tom e de maneira. De galanteador, tornou-se meigo. Os propósitos que me dirigia eram mais ou menos os mesmos: as circunstâncias forçavam-no a isso. Mas o seu olhar, que se tornara menos vivo, era mais acariciador; as inflexões da sua voz, mais doces; o seu sorriso já não era o da finura, mas o da satisfação.
Enfim, nas palavras, em que pouco a pouco se extinguia o fogo de início, o espírito deu lugar à delicadeza. E agora quero perguntar-lhe: faria melhor do que isto?
Pelo meu lado, dei-me ares de pensativa, a tal ponto que, sendo forçado a notá-lo, mo censurou. Tive então a habilidade de me defender desastradamente e de lançar sobre Prévan um olhar rápido, mas tímido e confundido, de propósito para o levar a crer que todo o meu receio era que ele adivinhasse a causa da minha preocupação.
Depois da ceia, aproveitei a ocasião em que a boa Marechala contava uma das histórias que conta sempre, para me recostar na otomana, naquela atitude de abandono que se presta aos sonhos ternos. Não me desagradava que Prévan me visse assim; de fato, ele honrou-me com uma atenção particular. O Visconde imagina decerto que os meus tímidos olhares não ousavam buscar os do meu vencedor; mas, dirigidos para ele da maneira mais humilde, logo me deram a certeza de que eu obtinha o efeito que pretendia produzir. Faltava ainda persuadi-lo de que o mesmo encantamento me penetrava; por isso, quando a Marechala anunciou que ia retirar-se, exclamei numa voz terna e indolente: "Oh! Meu Deus! E eu estava aqui tão bem!" Todavia levantei-me; mas, antes de me separar dela, perguntei-lhe quais os seus projetos para ter um pretexto de lhe dizer os meus e de dar a saber que estaria em minha casa no dia posterior ao seguinte.
Separámo-nos por fim.
Então, pus-me a refletir. Não duvidava que Prévan aproveitasse a espécie de entrevista que eu acabava de lhe marcar; que viesse bastante cedo para me encontrar só, e que me atacasse com vivacidade. Mas estava certa também de que, dada a minha reputação, ele me não trataria com aquela ligeireza que, por pouco hábito que se tenha, se emprega apenas com as mulheres dadas à aventura ou com as que não têm experiência; e tinha a vitória certa se ele pronunciasse a palavra amor, ou sobretudo se tivesse a pretensão de a obter de mim.
É tão cômodo ter de lidar com as pessoas de princípios!
Algumas vezes é um pobre diabo apaixonado que nos desconcerta pela sua timidez, ou nos atordoa com os seus fogosos transportes; é uma febre que, como a outra, dá ardor e calafrios, e algumas vezes varia nos sintomas. Mas adivinha-se tão facilmente quando o plano é traçado de antemão! A chegada, a atitude, o tom, as palavras, tudo isso eu conhecia desde a véspera.
Não lhe descreverei por isso a nossa conversação, que o Visconde adivinha facilmente. Note apenas que, na minha fingida defesa, eu ajudava-o tanto quanto podia; embaraço, para lhe dar tempo a que falasse; razões más, para que pudessem ser combatidas; receio e desconfiança, para provocar os protestos; e da sua parte o perpétuo estribilho; peço-lhe apenas uma palavra; e da minha um silêncio, comunicando-lhe uma expectativa que fazia crescer o seu desejo; e, através de tudo isso, a mão que se toma cem vezes, que se retira sempre e nunca se recusa. Poderia passar-se assim um dia: passamos uma hora mortal. Estaríamos talvez ainda nisso se não ouvíssemos o ruído de uma carruagem entrando no pátio. Esse feliz contratempo tornou, como é natural, as suas instâncias mais vivas; e eu, vendo chegado o momento em que já nada me podia surpreender, depois de me ter preparado para um longo suspiro, concedi a preciosa palavra.
Começaram a ser anunciadas as visitas e pouco depois rodeava-nos numerosa sociedade.
Prévan pediu-me para vir no dia seguinte de manhã e eu consenti; mas, cuidando da minha defesa, ordenei à criada de quarto que durante a visita ficasse no meu quarto de dormir, donde, como sabe, se vê tudo o que se passa no quarto de vestir, e foi neste que o recebi. O diálogo correu livremente, e como ambos tínhamos o mesmo desejo, breve nos pusemos de acordo; mas era preciso desfazer-nos daquele espectador importuno; era aí que eu queria chegar.
Então, pintando-lhe a meu belo prazer o quadro da minha vida interior, persuadi-o facilmente de que não chegaríamos a encontrar um momento de liberdade, que devíamos olhar como uma espécie de milagre aquele de que tínhamos gozado na véspera, e que ainda assim tivera perigos excessivos para que eu me expusesse a eles, pois a todo o instante alguém poderia entrar no salão. Não me esqueci de acrescentar que os hábitos da minha casa estavam assim estabelecidos porque, até ao presente, nunca me tinham contrariado; e insisti ao mesmo tempo na impossibilidade de os mudar, porque seria comprometer-me aos olhos dos meus servidores. Ele simulou entristecer, ficar amuado, dizer-me que era bem frágil o meu amor; e o Visconde adivinha quanto tudo aquilo me comovia! Mas, querendo vibrar o golpe decisivo, chamei as lágrimas em meu socorro.
Foi exatamente o Zaire, vous pleurezl. Julgando dominar-se, e na esperança, afetou estar possuído de todo o amor de Orosmane. Passado o lance teatral, voltamos às combinações. Não podendo ser durante o dia, pensamos escolher uma noite. Mas o meu porteiro tornava-se um obstáculo intransponível e eu fui de opinião que não se podia pensar em suborná-lo.
Ele propôs-me a pequena porta do jardim: mas eu tinha-o previsto e inventei um cão que, manso e silencioso de dia, era um verdadeiro demônio durante a noite. A facilidade com que eu entrava em todos aqueles pormenores era de molde a excitá-lo, o que deu em resultado propor-me o expediente mais ridículo, e foi esse que eu aceitei.
Primeiro falou-me dum criado dele, que era tão discreto como ele próprio: nisto não me enganava Prévan, pois, em tal matéria, patrão e criado valiam o mesmo. Eu daria uma grande ceia em minha casa, à qual ele seria convidado. Chegado o momento, despedir-se-ia, simulando sair só.
O hábil confidente chamaria a carruagem, abriria a porta; e ele, Prévan, em vez de subir, esquivar-se-ia com destreza. O cocheiro não chegaria a dar por nada; deste modo todos julgariam que ele tinha saído, e entretanto, reentrando em minha casa, tratar-se-ia apenas de conhecer o caminho mais curto para o meu quarto. Confesso que a minha primeira dificuldade foi de encontrar, contra tal projeto, razões suficientemente más para que ele tivesse a pretensão de as destruir. Ele respondeu dando-me exemplos; segundo ele, não havia processo mais vulgar. Já várias vezes se servira dele. Era mesmo o de que fazia mais uso, como o menos perigoso.
Subjugada por estas razões irrespondíveis, revelei-lhe, cheia de candura, que havia uma escada secreta que conduzia perto do meu quarto de vestir; eu deixaria ficar a chave na porta e ser-lhe-ia possível entrar e esperar, sem grandes riscos, que as criadas se recolhessem; e, para dar maior verossimilhança ao meu consentimento, exigia que o momento do encontro fosse, sem discussão, de uma submissão perfeita. Era preciso ter juízo, oh! muito juízo! Enfim, eu queria apenas provar-lhe o meu amor, mas não satisfazer o seu.
A saída, esquecia-me dizer-lhe, seria pela pequena porta do jardim; bastava esperar o romper do dia, o cão não daria sinal.
Àquela hora não passava vivalma, os criados estariam no sono mais profundo. Não se admire de tanto raciocínio disparatado; pense na nossa situação recíproca. Que necessidade tínhamos de uma melhor combinação? Ele queria apenas que tudo viesse a saber-se, eu estava certa de que ninguém o saberia. Combinamos para o dia posterior ao seguinte.
Repare o Visconde que era um assunto combinado, e que ninguém tinha ainda visto Prévan na minha companhia. Encontro-o a cear em casa de uma das minhas amigas, ele oferece-me o seu camarote para uma peça nova, eu aceito nele um lugar.
Convido a minha amiga a cear, durante o espetáculo e diante de Prévan; quase não posso dispensar-me de o convidar. Ele aceita e, dois dias depois, faz-me a visita exigida pelas boas normas. É certo que volta a visitar-me no dia seguinte de manhã; mas, além de que as visitas de manhã não contam, só eu podia julgar esta demasiado apressada. De fato, coloco-o no número das pessoas que me estão menos ligadas, com um convite escrito para uma ceia de cerimônia. Posso bem dizer como Annette e, todavia, eis tudo! Chegado o dia fatal, o dia em que eu devia perder a minha virtude e a minha reputação, dei as minhas instruções à fiel Vitória e ela pô-las em execução como vai ver.
Entretanto, chegou a noite. Tinham já entrado muitos convidados, quando anunciaram Prévan. Recebi-o fazendo notar a polidez que havia entre nós. Coloquei-o ao lado da Marechala, como acentuando que era por intermédio dela que nos tínhamos conhecido. A ceia não produziu mais do que um bilhetinho, que o discreto apaixonado encontrou meio de me entregar, e que queimei conforme o meu costume. Anunciava-me que podia contar com ele; e esta palavra essencial era rodeada de todas as palavras parasitas, como amor, felicidade, etc., que nunca faltam a festas desta natureza.
À meia-noite, terminados os jogos, propus uma curta macedônia*.
O meu duplo projeto era favorecer a evasão de Prévan e ao mesmo tempo torná-la notada, o que não podia deixar de acontecer, dada a sua reputação de jogador. Por outro lado, todos viriam a lembrar-se de que eu não tivera pressa de ficar só.
O jogo durou mais do que eu pensara. O diabo tentava-me e eu sucumbia ao desejo de ir consolar o impaciente prisioneiro.
Encaminhava-me para a minha perda, quando refleti que, logo que inteiramente me rendesse, deixaria de ter sobre ele o domínio bastante para o manter vestido com a decência necessária aos meus projetos. Tive a força de resistir. Retrocedi e voltei, bastante aborrecida; *Algumas pessoas ignoram talvez que uma macedônia é um conjunto de vários jogos de azar, entre os quais cada jogador tem o direito de escolher quando lhe pertence dar cartas. É uma das invenções do século.
a retomar o meu lugar naquele jogo que não findava mais. Por fim lá acabou, e todos se foram embora.
Ficando só, chamei as criadas, despi-me muito depressa, e despedi-as.
Está a ver-me, Visconde, vestida ligeiramente, caminhando com passo tímido e circunspeto, e com a mão mal segura abrir a porta ao meu vencedor? Mal que me viu, o relâmpago não seria mais rápido. Que digo eu? Fui vencida, absolutamente vencida, antes de ter podido dizer uma palavra para o deter ou me defender. Ele quis em seguida tomar uma situação mais cômoda e mais adequada às circunstâncias. Amaldiçoava o vestuário que, dizia ele, o afastava de mim, e queria combater-me com armas iguais. Mas a minha extrema timidez opôs-se ao projeto, e as minhas ternas carícias não lhe deram tempo. Ocupou-se de outra coisa.
Os seus direitos eram a dobrar e as suas pretensões voltaram.
Então eu disse-lhe: "Escute: até aqui teve assunto para uma agradável narrativa a fazer às duas Condessas de B... , e a muitas outras; mas eu gostaria de saber como lhes vai contar o fim desta aventura." Ao falar assim, puxei o cordão da campainha com toda a força. Chegara a minha vez e o gesto foi mais rápido do que a sua resposta. Mal tinha ainda balbuciado, quando ouvi Vitória acudir, e chamar os criados que escondera no seu quarto, como eu lhe ordenara. Então, tomando o meu tom de rainha, continuei, elevando a voz: "Saia, senhor, e não torne a aparecer diante de mim." Neste momento, o grupo dos criados entrou.
O pobre Prévan perdeu a cabeça e, julgando ver uma cilada no que era no fundo apenas um gracejo, levou a mão à espada.
Foi o mal que fez, pois um dos meus criados, vigoroso e valente, agarrou-o pelo meio do corpo e derrubou-o. Confesso que senti um terror mortal. Gritei-lhes que parassem e ordenei que lhe deixassem livre a retirada, certificando-se apenas se ele saía da minha casa. Os criados obedeceram, mas entre eles era grande o rumor. Indignavam-se que alguém tivesse faltado ao respeito à sua virtuosa senhora. Todos acompanharam o infeliz cavaleiro, com algazarra e escândalo, como eu desejava. Só Vitória ficou e ocupamo-nos durante esse tempo a reparar a desordem do meu leito.
Os criados tornaram a subir sempre em tumulto; e eu, ainda muito emocionada, perguntei-lhes por que felicidade estavam ainda todos levantados; respondeu-me Vitória, contando que tinha dado de cear a suas das suas amigas, que tinham feito festa no quarto delas, enfim, tudo o que tínhamos combinado.
Agradeci a todos e mandei-os retirar, ordenando a um deles que fosse imediatamente chamar o meu médico. Pareceu-me que estava autorizada a temer o efeito do meu susto mortal; além disso, era um meio seguro de dar curso e celebridade à aventura.
O médico veio de fato, lamentou-me, e ordenou-me repouso.
Depois, ordenei a Vitória que logo de manhã fosse tagarelar com a vizinhança.
Tudo decorreu tão bem que, antes do meio-dia e assim que consenti que abrissem as janelas do meu quarto, já tinha à cabeceira uma das minhas vizinhas, muito devota, para saber a verdade e os pormenores daquela horrível aventura. Fui obrigada a desolar-me com ela, durante uma hora, sobre a corrupção destes tempos. Um momento depois recebi da Marechala o bilhete que junto aqui. Por fim, antes das cinco horas, vi chegar, com grande espanto meu, o senhor*... Vinha, segundo me disse, apresentar-me as suas desculpas, por um oficial do seu regimento ter podido faltar-me ao respeito a tal ponto. Soubera-o quando estava jantando em casa da Marechala e tinha imediatamente mandado ordem a Prévan para que se entregasse à prisão.
Pedi que lhe perdoasse e ele recusou. Pensei então que, para lhe dar a minha cumplicidade, era preciso resignar-me pelo meu lado e afetar uma atitude rígida. Mandei fechar a minha porta e dizer que estava incomodada.
É à minha solidão que o Visconde deve esta longa carta.
Escreverei uma a Madame de Volanges, que com certeza há de fazer leitura pública, e onde verá esta história tal como deve ser contada.
Esquecia-me de dizer que Belleroche está indignado, e quer absolutamente bater-se com Prévan. Pobre rapaz! Felizmente terei tempo de lhe acalmar os nervos. Enquanto espero, vou repousar os meus, que estão fatigados de escrever.
Adeus, Visconde.

25 de Setembro de 17* *, à noite.

Trecho de "As ligações perigosas" de Choderlos de Laclos