quarta-feira, 30 de junho de 2010

A poesia da imagem

A minha experiência com a literatura, com a poesia e com as canções que me encantam é sempre perpassada por variados elementos da minha vida prosaica: as paisagens do caminho, os luares que contemplo, as conversas triviais que tenho, os telefonemas que recebo, as músicas que toco no carro enquanto dirijo... e mais uma infinidade de detalhes do cotidiano. Sempre relaciono tudo isso a uma poesia a ser vivida. Cada dia é como uma página, ou um capítulo cheio de citações literais, de clichês, de peripécias, de mesmices... enfim! Há páginas em que me sinto "cheia de flor e passarinho" (Ferreira Gullar) e capítulos em que sou meu "contraveneno" (Lulu Santos). Constante, assim, na inconstância, há dias em que sou só uma imagem de flor e borboleta.Por isso, por essa "multiversatilidade" da maneira de sentir, de ver o mundo, às vezes as imagens que posto no blog dizem mais especificamente o que eu quero dizer do que os próprios poemas.

Proponho, então, uma "brincadeira" para as Literatas e para os visitantes do blog (sintam-se todos à vontade, intimados!, a participar)!Postarei uma imagem e vocês postarão nos comentários poemas, canções, citações etc, que aflorarem a partir dessa imagem!
O que acham? Espero que gostem da ideia e que postem também imagens para que possamos traduzí-las em poesia!

Um abraço a todos com muito carinho!

Lá vai:


supremíssimo


O que há em mim é sobretudo cansaço -
Não disto nem daquilo
Nem sequer de tudo nem de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A sutileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas -
- Essas e o que falta nelas eternamente -;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, a vida...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
íssimo, íssimo, íssimo,
Cansaço...
Álvaro de Campos, 09/10/1934

Filosofia de vida


"Meu destino eu moldei

Qualquer um pode moldar

Deixo o mundo me rumar

Para onde eu quero ir

Dor passada não me dói

E nem curto nostalgia

Eu só quero o que preciso

Pra viver meu dia a dia

Pra que reclamar de algo que não mereço

A minha razão é a fé que me guia

Nenhuma inveja me causa tropeço

Creio em Deus e na Virgem Maria

Encaro sem medo os problemas da vida

Não fico sentado de pernas pro ar

Não há contratempo sem uma saída

Pra quem leva a vida devagar

Meu destino eu moldei

Qualquer um pode moldar

Deixo o mundo me rumar

Para onde eu quero ir

Dor passada não me dói

E nem curto nostalgia

Eu só quero o que preciso

Pra viver meu dia a dia

Que o supérfluo nunca nos falte

Básico para quem tem carestia

Não quero mais do que eu necessito

Pra transmitir minha alegria"


Filosofia de Vida, Martinho da Vila

Dias azuis


Hoje por mais de um segundo
o mundo rodou para trás.
Folhas perdidas no tempo,
num vento que o tempo que não volta mais

Dias azuis,
Noites de paz na cidade.
Dias azuis,
Vento que traz a saudade.

Hoje por quase um segundo
o mundo parou, de rodar.
Foi um perfume no vento
alguém que chegou para encontrar.

Dias azuis,
Noites de paz na cidade.
Dias azuis,
Vento que traz a saudade.


Canção de Daniel Jobim

Guardei


Pra Você Guardei o Amor

Pra você guardei o amor
Que nunca soube dar
O amor que tive e vi sem me deixar
Sentir sem conseguir provar
Sem entregar
E repartir

Pra você guardei o amor
Que sempre quis mostrar
O amor que vive em mim vem visitar
Sorrir, vem colorir solar
Vem esquentar
E permitir

Quem acolher o que ele tem e traz
Quem entender o que ele diz
No giz do gesto o jeito pronto
Do piscar dos cílios
Que o convite do silêncio
Exibe em cada olhar

Guardei
Sem ter porque
Nem por razão
Ou coisa outra qualquer
Além de não saber como fazer
Pra ter um jeito meu de me mostrar

Achei
Vendo em você
E explicação
Nenhuma isso requer
Se o coração bater forte e arder
No fogo o gelo vai queimar

Pra você guardei o amor
Que aprendi vendo meus pais
O amor que tive e recebi
E hoje posso dar livre e feliz
Céu cheiro e ar na cor que arco-íris
Risca ao levitar

Vou nascer de novo
Lápis, edifício, tevere, ponte
Desenhar no seu quadril
Meus lábios beijam signos feito sinos
Trilho a infância, terço o berço
Do seu lar

Guardei
Sem ter porque
Nem por razão
Ou coisa outra qualquer
Além de não saber como fazer
Pra ter um jeito meu de me mostrar

Achei
Vendo em você
E explicação
Nenhuma isso requer
Se o coração bater forte e arder
No fogo o gelo vai queimar

Pra você guardei o amor
Que nunca soube dar
O amor que tive e vi sem me deixar
Sentir sem conseguir provar
Sem entregar
E repartir

Quem acolher o que ele tem e traz
Quem entender o que ele diz
No giz do gesto o jeito pronto
Do piscar dos cílios
Que o convite do silêncio
Exibe em cada olhar

Guardei
Sem ter porque
Nem por razão
Ou coisa outra qualquer
Além de não saber como fazer
Pra ter um jeito meu de me mostrar

Achei
Vendo em você
E explicação
Nenhuma isso requer
Se o coração bater forte e arder
No fogo o gelo vai queimar


Pra você guardei o amor, Nando Reis

terça-feira, 29 de junho de 2010


Senhora Tentação


"Sinto abalada minha calma,

Embriagada minha alma,

Efeitos da tua sedução,

Oh! Minha romântica senhora Tentação,

Não deixes que eu venha a sucumbir,

Neste vendaval de paixão.

Jamais pensei em minha vida,

Sentir tamanha emoção,

Será que o amor por ironia,

Move esta fantasia vestida de obsessão,

A ti confesso que me apaixonei,

Será uma maldição, não sei,

Sinto abalada minha calma,

Embriagada minha alma

,Efeitos da tua sedução,

Oh! Minha romântica senhora Tentação,

Não deixes que eu venha a sucumbir,

Neste vendaval de paixão.

Jamais..."


Senhora Tentação, Cartola

Ana


"Ana sentia-se animada, com vontade de viver. Sabia que por piores que fossem as coisas que estavam por vir, não podiam ser tão horríveis como as que já tinha sofrido. Esse pensamento dava-lhe uma grande coragem. Ali deitada no chão a olhar para as estrelas, ela se sentia agora tomada por uma resignação que chegava quase a ser indiferença. Tinha dentro de si uma espécie de vazio: sabia que nunca mais teria vontade de rir nem de chorar. Queria viver, isso queria, e em grande parte por causa de Pedrinho, que afinal de contas não tinha pedido a ninguém para vir ao mundo. Mas queria viver também de raiva, de birra. A sorte andava sempre virada contra ela. Pois Ana estava agora decidida a contrariar o destino. Ficara louca de pesar no dia em que deixara Sorocaba para vir morar no Continente. Vezes sem conta tinha chorado de tristeza e de saudade naqueles cafundós. Vivia com o medo no coração, sem nenhuma esperança de dias melhores, sem a menor alegria, trabalhando como uma negra, e passando frio e desconforto... Tudo isso por quê? Porque era a sua sina. Mas uma pessoa pode lutar contra a sorte que tem. Pode e deve. E agora ela tinha enterrado o pai e o irmão e ali estava, sem casa, sem amigos, sem ilusões, sem nada, mas teimando em viver. Sim, era pura teimosia. Chamava-se Ana Terra. Tinha herdado do pai o gênio de mula."

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Os ombros suportam o mundo



Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossege
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.


Drummond

Necrológio dos desiludidos do amor

Os desiludidos do amor
estão desfechando tiros no peito.
Do meu quarto ouço a fuzilaria.
As amadas torcem-se de gozo.
Oh quanta matéria para os jornais.

Desiludidos mas fotografados,
escreveram cartas explicativas,
tomaram todas as providências
para o remorso das amadas.
Pum pum pum adeus, enjoada.
Eu vou, tu ficas, mas nos veremos
seja no claro céu ou turvo inferno.

Os médicos estão fazendo a autópsia
dos desiludidos que se mataram.
Que grandes corações eles possuíam.
Vísceras imensas, tripas sentimentais
e um estômago cheio de poesia...

Agora vamos para o cemitério
levar os corpos dos desiludidos
encaixotados competentemente
(paixões de primeira e segunda classe).

Os desiludidos seguem iludidos,
sem coração, sem tripas, sem amor.
Única fortuna, os seus dentes de ouro
não servirão de lastro financeiro
e cobertos de terra perderão o brilho
enquanto as amadas dançarão um samba
bravo, violento, sobre a tumba deles.

Carlos Drummond de Andrade

domingo, 27 de junho de 2010

E segunda-feira ninguém sabe o que será.

Não se mate

Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.

Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.

O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,

vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, praquê.

Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor, no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.

Carlos Drummond de Andrade

Maçã

(Natureza morta com maçãs e laranjas, de Cézanne)

Por um lado te vejo como um seio murcho
Por outro como um ventre de cujo umbigo pende ainda o cordão placentário

És vermelha como o amor divino

Dentro de ti em pequenas pevides
palpita a vida prodigiosa
Infinitamente

E quedas tão simples
Ao lado de um talher
Num quarto pobre de hotel

Petrópolis, 25/02/1938
Manuel Bandeira
P.S.: para melhor compreensão do poema, recomendo a leitura de "Ensaio sobre 'Maçã'", de Davi Arrigucci Júnior. :)

sábado, 26 de junho de 2010

Samba de Breque


Conta meu tio que, depois de uma introdução dentro das regras, o rapaz entrou com um samba de breque que, cantado em voz respeitosamente baixa e ainda úmida de choro, dizia mais ou menos o seguinte:

Tava feliz

Tinha vindo do trabalho
E ainda tinha tomado
Uma privação de sentidos no boteco ao lado
Que bom que estava o carteado...
O dia ganho
E mais um extra pra família
Resolvi ir para casa
E gozar
A paz do lar
-- Não há maior maravilha!
Mal abro a porta
Dou com uma mesa na sala
A minha mulher sem fala
E no ambiente flores mil
E sobre a mesa
Todo vestido de anjinho
O Manduca meu filhinho
Tinha esticado o pernil.

Diz meu tio que, entre horrorizado e comovido com aquela ingênua e macabra celebração do filho morto, ouviu o amigo, a pipocar lágrimas dos olhos fixos no vácuo, rasgar o breque do samba em palhetadas duras:

— O meu filhinho
Já durinho
Geladinho!



Vinicius de Moraes

Trecho do conto "Samba de Breque".

Extraído do livro Para viver um grande amor, de 1980.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Literatas agora no Twitter!


Olá meninas!
Venho comunicar que agora o Clube das Literatas está também no Twitter!
Para as literatas acessarem, usem os mesmos dados do blog!

Agora poderemos ficar 24h conectadas com o Clube em postagens curtas e rápidas!
Anunciem lá quando fizerem novos posts também!

Acessem: https://twitter.com/literatasclube

Corpo a corpo com a linguagem

a poesia de Ferreira Gullar por ele mesmo, trecho do artigo publicado em 1999.




"Não, não há nenhuma poética universal: universal é a poesia, a vida mesma. Universal é Bizuza, cuja voz se apagou com sua garganta desfeita há anos no fundo da terra. Universal é o quintal da casa, cheio de plantas, explodindo verde no dia maranhense, longe de Paris, de Londres, de Moscou. O frango que nasce e morre ali, entre as cercas de varas. O cheiro do galinheiro, a noite que passa arrastando bilhões de astros sobre nossa vida de pouca duração. Universal porque Bizuza, amassando pimenta-do-reino numa cozinha de São Luís, pertence à Vida-Láctea. E a história humana não se desenrola apenas nos campos de batalha e nos gabinetes presidenciais. Ela se desenrola também nos quintais, entre plantas e galinhas, nas ruas de subúrbíos, nas casas de jogo, nos prostíbulos, nos colégios, nas ruínas, nos namoros de esquina. Disso quis eu fazer a minha poesia, dessa matéria humilde e humilhada, dessa vida obscura e injustiçada, porque o canto não pode ser uma traição à vida, e só é justo cantar se o nosso canto arrasta consigo as pessoas e as coisas que não têm voz."

VOZ OFF - ... já sei, vou começar antes da linguagem... é... mas antes da linguagem, o que há é o silêncio... e não se pode dizer o silêncio; quando há silêncio, não há linguagem... Sim, mas eu tenho que começar antes da linguagem, antes de mim, antes de tudo.....E então escrevi:
turvo turvo
a turva
mão do sopro
contra o muro
escuro
menos menos
menos que escuro
menos que mole e duro menos que fosso e muro: me-
nos que furo
escuro
mais que escuro:
claro
como água? como pluma? claro mais que claro claro:
coisa alguma




Trecho do roteiro de Marco Valença: "Gullar Singular".
Baseado em poemas de Ferreira Gullar.

Ainda não levado em cena.

"Quero escrever movimento puro..."

Clarice
veio de um mistério, partiu para outro.

Ficamos sem saber a essência do mistério.
Ou o mistério não era essencial. Essencial era Clarice viajando nele.

Era Clarice bulindo no fundo mais fundo, onde a palavra parece encontrar
sua razão de ser, e retratar o homem.

O que Clarice disse, o que Clarice viveu para nós
em forma de história
em forma de sonho de história
em forma de sonho de sonho de história
(no meio havia uma barata ou um anjo?)
não sabemos repetir nem inventar.
São coisas, são jóias particulares de Clarice,
que usamos de empréstimo, ela é dona de tudo.

Clarice não foi um lugar comum.
Carteira de identidade, retrato.
De Chirico a pintou? Pois sim.
O mais puro retrato de Clarice
só se pode encontrá-lo atrás da nuvem
que o avião cortou, não se percebe mais.

De Clarice guardamos gestos. Gestos,
tentativas de Clarice sair de Clarice
para ser igual a nós todos
em cortesia, cuidados materiais.
Clarice não saiu, mesmo sorrindo.
Dentro dela o que havia de salões, de escadarias,
de tetos fosforescente e longas estepes e
zimbórios e pontes do Recife em brumas envoltas
formava um país, o pais onde Clarice vivia,
só e ardente, construindo fábulas.

Não podíamos reter Clarice em nosso chão
salpicado de compromissos. Os papéis, os
cumprimentos falavam em agora em edições,
possíveis coquetéis à beira do abismo.
Levitando acima do abismo Clarice riscava
um sulco rubro e cinza no ar e fascinava-nos.

Fascinava-nos apenas.
Deixamos para compreendê-la mais tarde.
Mais tarde, um dia...saberemos amar Clarice.

Carlos Drummond de Andrade

Free as a bird

















Free as a bird
It's the next best thing to be
Free as a bird
Home, home and dry
Like a homing bird I fly
As a bird on wings
Whatever happened to the life that we once knew ...
Can we really live without each other?
Where did we lose the touch?
That seemed to mean so much...
It always made me feel so
Free as a bird

The Beatles

Coração de ninguém.

Sonho. Não sei quem sou neste momento.
Durmo sentindo-me. Na hora calma
Meu pensamento esquece o pensamento,
Minha alma não tem alma.

Se existo é um erro eu o saber. Se acordo
Parece que erro. Sinto que não sei.
Nada quero nem tenho nem recordo.
Não tenho ser nem lei.
.
Lapso da consciência entre ilusões,
Fantasmas me limitam e me contêm.
Dorme insciente de alheios corações,
Coração de ninguém.
(06/01/1923)
Fernando Pessoa

quinta-feira, 24 de junho de 2010

E às vezes mal poder respirar...


"Vida não tem adjetivo. É uma mistura em cadinho estranho mas que me dá em última análise em respirar. E às vezes arfar. E às vezes mal poder respirar. É. Mas às vezes há também o profundo hausto de ar que até atinge o fino frio do espírito, preso ao corpo por enquanto."

Um Sopro de Vida. Clarice Lispector.

Um sopro de vida.



Eu quero a verdade que só me é dada através do seu oposto, de sua inverdade. E não aguento o cotidiano. Deve ser por isso que escrevo. Minha vida é um único dia. E é assim que o passado me é presente e futuro. Tudo numa só vertigem. E a doçura é tanta que faz insuportável cócega na alma. Viver é mágico e inteiramente inexplicável. Eu compreendo melhor a morte. Ser cotidiano é um vício. O que é que eu sou? sou um pensamento. Tenho em mim o sopro? tenho? mas quem é esse que tem? quem é que fala por mim? tenho um corpo e um espírito? eu sou um eu? "É exatamente isto, você é um eu", responde-me o mundo terrivelmente. E fico horrorizado. Deus não deve ser pensado jamais senão Ele foge ou eu fujo. Deus deve ser ignorado e sentido. Então Ele age. Pergunto-me: por que Deus pede tanto que seja amado por nós? resposta possível: porque assim nós amamos a nós mesmos e em nos amando, nós nos perdoamos. E como precisamos de perdão. Porque a própria vida já vem mesclada ao erro.


Clarice Lispector

O poeta está vivo

Foto: aqui.


Baby, compre o jornal
E vem ver o sol
Ele continua a brilhar,
Apesar de tanta barbaridade...

Baby, escute o galo cantar
A aurora dos nossos tempos.
Não é hora de chorar!
Amanheceu o pensamento...

O poeta está vivo
Com seus moinhos de vento
A impulsionar
A grande roda da história...

Mas quem tem coragem de ouvir?
Amanheceu o pensamento
Que vai mudar o mundo
Com seus moinhos de vento...

Se você não pode ser forte,
Seja pelo menos humana
Quando o papa e seu rebanho chegar,
Não tenha pena...

Todo mundo é parecido
Quando sente dor,
Mas nú e só ao meio dia,
Só quem está pronto pro amor
...

O poeta não morreu,
Foi ao inferno e voltou.
Conheceu os jardins do Éden
E nos contou...

(Roberto Frejat e Dulce Quental)

Nua


"Olho a cidade ao redor
E nada me interessa
Eu finjo ter calma
A solidão me apressa

Tantos caminhos sem fim
De onde você não vem
Meu coração na curva
Batendo a mais de cem

Eu vou sair nessas horas de confusão
Gritando seu nome entre os carros que vêm e vão

Quem sabe então assim
Você repara em mim

Corro de te esperar
De nunca te esquecer
As estrelas me encontram
Antes de anoitecer

Olho a cidade ao redor
Eu nunca volto atrás
Já não escondo a pressa
Já me escondi demais

Eu vou contar pra todo mundo
Eu vou pichar sua rua
Vou bater na sua porta de noite
Completamente nua

Quem sabe então assim
Você repara em mim"

Nua, Ana Carolina

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Mulheres de Atenas




















Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Vivem pros seus maridos, orgulho e raça de Atenas
Quando amadas, se perfumam
Se banham com leite, se arrumam
Suas melenas
Quando fustigadas, não choram
Se ajoelham, pedem, imploram
Mais duras penas
Cadenas

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Sofrem por seus maridos, poder e força de Atenas
Quando eles embarcam soldados
Elas tecem longos bordados
Mil quarentenas
E quando eles voltam sedentos
Querem arrancar violentos
Carícias plenas
Obscenas

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Despem-se pros maridos, bravos guerreiros de Atenas
Quando eles se entopem de vinho
Costumam buscar o carinho
De outras falenas
Mas no fim da noite, aos pedaços
Quase sempre voltam pros braços
De suas pequenas
Helenas

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Geram pros seus maridos os novos filhos de Atenas
Elas não têm gosto ou vontade
Nem defeito nem qualidade
Têm medo apenas
Não têm sonhos, só têm presságios
O seu homem, mares, naufrágios
Lindas sirenas
Morenas

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Temem pro seus maridos, heróis e amantes de Atenas
As jovens viúvas marcadas
E as gestantes abandonadas
Não fazem cenas
Vestem-se de negro, se encolhem
Se confortam e se recolhem
Às suas novenas
Serenas

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Secam por seus maridos, orgulho e raça de Atenas

Chico Buarque

Me partiu em tantas


"Surgiu como um clarão
Um raio me cortando a escuridão
E veio me puxando pela mão
Por onde não imaginei seguir
Me fez sentir tão bem, como ninguém
E eu fui me enganando sem sentir
E fui abrindo portas sem sair
Sonhando às cegas, sem dormir
Não sei quem é você
O amor em seu carvão
Foi me queimando em brasa no colchão
E me partiu em tantas pelo chão
Me colocou diante de um leão
O amor me consumiu, depois sumiu
E eu até perguntei, mas ninguém viu
E fui fechando o rosto sem sentir
E mesmo atenta, sem me distrair
Não sei quem é você
No espelho da ilusão
Se retocou pra outra traição
Tentou abrir as flores do perdão
Mas bati minha raiva no portão
E não mais me procure sem razão
Me deixe aqui e solta a minha mão
E fui fechando o tempo, sem chover
Fui fechando os meus olhos, pra esquecer
Quem é você?"

Carvão, Ana Carolina

terça-feira, 22 de junho de 2010

Minhas páginas


"Sabia, gosto de você chegar assim, arrancando páginas dentro de mim desde o primeiro dia."

Chico Buarque

segunda-feira, 21 de junho de 2010

O enigma de Clarice



"...a repetição de um enigma é a repetição do enigma. O que És? e a resposta é: ÉS. O que existes? e a resposta é: o que existes. Eu tinha a capacidade da pergunta, mas não tinha a de ouvir a resposta."


do livro: A Paixão Segundo G.H.

O último poema

Assim eu quereria meu último poema

Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

Manuel Bandeira, do livro Libertinagem.

Vida sem luxo


"A lucidez é um luxo que nem todos se podem permitir."
José Saramago

Experimentos e tentativas

Por que é que disseste que os estorninhos se devem ter ido embora, Qualquer pessoa é capaz de perceber a diferença entre adeus e até logo, o que eu vi foi um adeus, Mas porquê, Não sei dizer, porém há uma coincidência, os estorninhos foram-se quando a Joana apareceu, A Joana, É o nome dela, Podias dizer a gaja, a tipa, a miúda, é assim que o pudor masculino fala das mulheres quando dizer-lhes o nome seria demasiado íntimo, Em comparação com a tua sabedoria, a minha ainda vai nas primeiras letras, mas, como acabaste de verificar, eu disse o nome dela naturalmente, prova de que o meu íntimo não tem nada a ver com este caso, Salvo se, afinal, és muito mais maquiavélico do que mostras, fazendo de conta que querer provar o contrário do que de facto pensas ou sentes para que eu julgue que o que sentes ou pensas é precisamente o que só pareces querer provar, não sei se fui claro, Não foste, mas não tem importância, claridade e obscuridade são a mesma sombra e a mesma luz, o escuro é claro, o claro é escuro, e quanto a ser alguém capaz de dizer de facto e exactamente o que sentiu pensa, imploro-te que não acredites, não é porque não se queira, é porque não se pode, Então por que é que as pessoas falam tanto, É só o que podemos fazer, falar, ou nem sequer falar, tudo são experimentos e tentativas, Foram-se os estorninhos, veio Joana, foi-se uma companhia, outra veio, podes-te gabar de seres um homem de sorte, Isso ainda é o que falta ver.
Trecho de A jangada de pedra, de José Saramago.

A Confissão Final

"O anos se passaram, meu caro Manuel Valadares. Hoje tenho quarenta e oito anos e às vezes na minha saudade, eu tenho impressão que continuo criança. Que você a qualquer momento vai me aparecer me trazendo figurinhas de artista de cinema ou mais bolas de gude. Foi você quem me ensinou a ternura da vida, meu Portuga querido. Hoje sou eu que tento distribuir as bolas e as figurinhas, porque a vida sem ternura não é lá grande coisa. Às vezes sou feliz na minha ternura, às vezes me engano, o que é mais comum. Naquele tempo, no tempo de nosso tempo, eu não sabia que muitos anos antes, um Príncipe Idiota, ajoelhado diante de um altar, perguntava aos ícones, com os olhos cheios d'água: “POR QUE CONTAM COISAS ÀS CRIANCINHAS?" A verdade, meu querido Portuga, é que a mim contaram as coisas muito cedo.
Adeus!"

Utabuta,1967
-----------------------------------------------------------
Meu Pé de Laranja Lima, José Mauro de Vasconcelos.

Perto de Clarice


"Suponho que me entender não é uma questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em contato... Ou toca, ou não toca."


Clarice Lispector

Minha nascente é obscura


"Tudo o que aqui escrevo é forjado no meu silêncio e na penumbra. Vejo pouco, ouço quase nada. Mergulho enfim em mim até o nascedouro do espírito que me habita. Minha nascente é obscura. Estou escrevendo porque não sei o que fazer de mim."

Prefácio de Um sopro de vida. Clarice Lispector.


sexta-feira, 18 de junho de 2010

Viver


"Aquilo era a coisa mais bonita do mundo. Pena que eu não pudesse contar pra ela que vira a poesia viver."

Meu pé de Laranja Lima, José Mauro de Vasconcelos

Ternura


"De pedaço em pedaço é que se faz ternura"


Meu pé de Laranja Lima, José Mauro de Vasconcelos

Retrato do poeta quando jovem

Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.

Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brancas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada.

Há um nascer do sol no sítio exacto,
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.

Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.


José Saramago.


Em memória de José Saramago, que falecera hoje pela manhã, aos 87 anos.

Há uma estrela


"Há de surgir
Uma estrela no céu
Cada vez que você sorrir
Há de apagar
Uma estrela no céu
Cada vez que você chorar

O contrário também
Bem que pode acontecer
De uma estrela brilhar
Quando a lágrima cair
Ou então
De uma estrela cadente se jogar
Só pra ver
A flor do seu sorriso se abrir

Hum!
Deus fará
Absurdos
Contanto que a vida
Seja assim
Sim
Um altar
Onde a gente celebre
Tudo o que Ele consentir"

Estrela, Gilberto Gil

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Perto



"- Eu nunca mais quero sair de perto de você, sabe?
- Por quê?
- Porque você é a melhor pessoa do mundo. Ninguém judia de mim quando estou perto de você e sinto um sol de felicidade dentro do meu coração."

Meu pé de Laranja Lima,
José Mauro de Vasconcelos

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Cheiro antes de ver

Agora que sinto amor
Tenho interesse no que cheira.
Nunca antes me interessou que uma flor tivesse cheiro.
Agora sinto o perfume das flores como se visse uma coisa nova.
Sei bem que elas cheiravam, como sei que existia.
São coisas que se sabem por fora.
Mas agora sei com a respiração da parte de trás da cabeça.
Hoje as flores sabem-me bem num paladar que se cheira.
Hoje às vezes acordo e cheiro antes de ver.

Alberto Caeiro.

P.S.: esse é um dos meus poemas preferidos!
P.P.S.: desculpa a ausência do blog, guriaaas!
“Uma semana foi preciso para que eu me recuperasse todo. Não provinha das dores nem das pancadas o meu desânimo. Verdade que em casa começaram a me tratar bem que dava para desconfiar. Mas faltava qualquer coisa. Qualquer coisa importante que me fizesse voltar a ser o mesmo, talvez a acreditar nas pessoas, na bondade delas. (...) A casa foi-se vestindo de silêncio como se a morte tivesse passos de seda. (...) Agora sabia mesmo o que era a dor. Dor não era apanhar de desmaiar. Não era cortar o pé com caco de vidro e levar pontos na farmácia. Dor era aquilo, que doía o coração todinho, que a gente tinha que morrer com ela(...)"
--------------------------------------------------------------------------
Meu Pé de Laranja Lima, José Mauro de Vasconcelos

Clarissa


"Fora, o luar cresce, tênue, inundando a paisagem.Clarissa infla as narinas. Parece-lhe que o luar tem um perfume todo especial. Se ela pudesse pegar o luar, fechá-lo na palma da mão, guardá-lo numa caixinha ou no fundo de uma gaveta para soltá-lo nas noites escuras…"

Clarissa, Érico Veríssimo

Fogo doce


"Ah, e dizer que isto vai acabar, que por si mesmo não pode durar. Não, ela não está se referindo ao fogo, refere-se ao que sente. O que sente nunca dura, o que sente sempre acaba, e pode nunca mais voltar. Encarniça-se então sobre o momento, come-lhe o fogo, e o fogo doce arde, arde, flameja. Então, ela que sabe que tudo vai acabar, pega a mão livre do homem, e ao prendê-la nas suas, ela doce arde, arde, flameja."


Onde Estivestes de Noite?, Clarice Lispector

segunda-feira, 14 de junho de 2010

As rosas não falam


"Bate outra vez

Com esperanças o meu coração

Pois já vai terminando o verão enfim

Volto ao jardim

Com a certeza que devo chorar

Pois bem sei que não queres voltar para mim

Queixo-me às rosas,

mas que bobagem

As rosas não falam

Simplesmente as rosas exalam

O perfume que roubam de ti, ai...

Devias vir

Para ver os meus olhos tristonhos

E, quem sabe,

sonhar os meus sonhos

por fim"
As rosas não falam, Cartola

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Finally Friday

It's finally friday
I'm free again
I got my motor running for a wild weekend
It's finally friday
I'm out of control
Forget the workin' blues
And let the good times roll...

Trecho de Finally Friday, de George Jones.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

José


" - Você vai longe, peralta. Não é à toa que você se chama José. Você será o sol, e as estrelas vão brilhar ao seu redor."
Meu pé de Laranja Lima, José Mauro de Vasconcelos

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Todas as vidas


"Vive dentro de mim
uma cabocla velha de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...
Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso d'água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa, pedra de anil.
Sua coroa verde de São-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa, de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
-Enxerto de terra,
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo ser alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida - a vida mera das obscuras!"
Cora Coralina

Eva Luna


"Minha mãe era uma pessoa silenciosa, capaz de dissimular-se entre os móveis, de perder-se no desenho do tapete, de não fazer o menor ruído, como se não existisse; contudo, na intimidade do quarto que dividíamos, ela se transformava. Começava a falar do passado ou a narrar suas histórias, e então o aposento se enchia de luz, desapareciam as paredes, dando lugar a incríveis paisagens, palácios abarrotados de objetos nunca vistos, países longínquos inventados por ela ou tirados da biblioteca do patrão; colocava a meus pés todos os tesouros do Oriente, a lua e mais ainda. reduzia-me ao tamanho de uma formiga, para eu sentir o universo a partir da minha pequenez, punha-me asas para vê-lo a partir do firmamento, dava-me uma cauda de peixe para conhecer o fundo do mar."

Eva Luna, Isabel Allende

terça-feira, 8 de junho de 2010

Plena


"Que minha solidão me sirva de companhia. Que eu tenha a coragem de me enfrentar.Que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo."

Clarice Lispector

Quer dizer amor


"Cheguei a tempo de te ver acordar
Eu vim correndo a frente do sol
Abri a porta e antes de entrar,
revi a vida inteira
Pensei em tudo que é possível falar
Que sirva apenas para nós dois
Sinais de bem desejos vitais
Pequenos fragmentos de luz
Falar da cor dos temporais
De céu azul das flores de abril
Pensar além do bem do mal
Lembrar de coisas que ninguém viu
O mundo lá sempre a rodar
Em cima dele tudo vale
Quem sabe isso quer dizer amor,
estrada de fazer o sonho acontecer
Pensei no tempo e era tempo demais
E você olhou sorrindo pra mim
Me acenou um beijo de paz
Virou minha cabeça
Eu simplesmente não consigo parar
Lá fora o dia já clareou
Mas se você quiser transformar
O ribeirão em braço de mar
Você vai ter que encontrar
Aonde nasce a fonte do ser
E perceber meu coração
Bater mais forte só por você
O mundo lá sempre a rodar
Em cima dele tudo vale
Quem sabe isso quer dizer amor,
estrada de fazer o sonho acontecer..."

Quem sabe isso quer dizer amor, Milton Nascimento

sábado, 5 de junho de 2010

Desencanto


"Numa manhã, Glória entrou radiante. Eu estava sentado na cama e olhava a vida com uma tristeza de doer.
- Olhe, Zezé.
Em suas mãos existia uma florzinha branca.
- A primeira flor de Minguinho. Logo ele vira uma laranjeira adulta e começa a dar laranjas.
Fiquei alisando a flor branquinha entre os dedos. Não choraria mais por qualquer coisa. Muito embora Minguinho estivesse tentando me dizer adeus com aquela flor; ele partia do mundo dos meus sonhos para o mundo da minha realidade e dor.
[...]
Eu não queria deparar com o desencanto de Minguinho. Luís são sabia que aquela flor branquinha tinha sido o nosso adeus."

Meu Pé de Laranja Lima. José Mauro de Vasconcelos.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Vento noturno


Volúpia do vento noturno,
do vento que vem das montanhas e das ondas,
do vento que espalha no espaço o cheiro das resinas,
a exalação da maresia e do mato virgem,das mangas maduras,
das magnólias e das laranjas,
dos lírios do brejo e das praias úmidas.

Volúpia do vento noturno nas noites tropicais,
quando o brilho das estrelas é fixo, duro,
quando sobe da terra um hálito quente, abafado,
e a folhagem lustrosa lembra o aço polido.

Volúpia do vento morno do verão,
carregado de odores excitantes,
como um corpo de mulher adolescente,
de mulher que espera o momento do amor...

Volúpia do vento noturno em minha terra natal!

Ronald de Carvalho.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Acontece uma maravilha...


"Ele entendeu e riu da minha confusão.
- Vou explicar para você, Zezé. Sabe o que é isso? Isso significa que você está crescendo. E crescendo, essa coisa que você diz que fala e vê chama-se pensamento. O pensamento é que faz aquilo que uma vez eu disse que você teria logo...
- A idade da razão?
- Bom que você se lembre. Então acontece uma maravilha. O pensamento cresce, cresce e toma conta de toda a nossa cabeça e nosso coração. Vive em nossos olhos e em tudo que é pedaço da vida da gente.
- Sei. E o passarinho?
- O passarinho foi feito por Deus para ajudar as criancinhas a descobrirem as coisas. Depois então quando o menino não precisa mais, ele devolve o passarinho a Deus. E Deus coloca ele em outro menininho inteligente como você. Não é bonito?"

Meu pé de laranja lima. José Mauro de Vasconcelos.