quarta-feira, 29 de junho de 2011

A obra-prima de Jane Austen


Jane Austen era uma autora econômica. Em sua prosa, não há floreios, adjetivos desnecessários, descrições infindas da paisagem inglesa. Ela vai diretamente ao assunto, escancarando as janelas e portas da vida doméstica da Inglaterra do final do século XVIII. E, com alguma boa influência da arte do teatro, apostava no diálogo rápido e incisivo para criar as situações romanescas.
Em Orgulho e Preconceito, são memoráveis os diálogos de sua protagonista, a jovem Elizabeth Bennet, com Mr. Darcy, desde o momento em que os dois se conhecem. Outras passagens também são pura delícia para o leitor, principalmente as conversas entre Elizabeth e o irônico Mr. Bennet, pai dessa heroína autocentrada.
O talento de Austen surge inteiro nas páginas dessa obra do classicismo inglês. Seus protagonistas, Elizabeth Bennet e Fitzwilliam Darcy — como salienta Otto Maria Carpeaux —“estão entre as criaturas mais completas da literatura universal”.
Sempre que o nome de Austen vem à tona, a primeira palavra que surge é amor. Suas personagens lutam pelo amor, contra as regras sociais da época, os casamentos de conveniência, arranjados e negociados em família. Porém, curiosamente, não há escritora mais avessa ao tom meloso do que Austen: ela tem uma história de amor nas mãos, precisa resolvê-la, mas não se vê ao longo de todo o livro nenhum derramamento absurdo de lágrimas, nenhuma paixão arrebatadora. Tudo se mantém sob o controle de uma racionalidade excepcional. “Jane Austen é objetivíssima a respeito do mundo que encontrou e no que toca aos personagens que criou.”, comenta o crítico.
O pano de fundo é o da aristocracia rural, com burgueses e jovens nobres endinheirados, todos passeando e oferecendo jantares, chás e bailes. Austen para compor seu quadro, entra nos espaços domésticos, da casa burguesa aos castelos espaçosos e cheios de obras de arte dos herdeiros da nobreza. Como diz Lúcio Cardoso, a autora estuda minuciosamente “a sociedade daquele tempo, a mediocridade de seus tipos, o ridículo dos hábitos, a vaidade e a tolice de burgueses e nobres que o preconceito separava”.
Com esses e outros elementos, Austen constrói uma obra magistral. Toda uma arquitetura romanesca feita com cuidado, como se a autora inglesa trabalhasse mesmo com uma delicada peça de marfim.

Retirado de: Austen, Jane. Orgulho e Preconceito. Trad. de Lúcio Cardoso. São Paulo: Editora Abril, 2010. (com adaptações)

O inesperado

Eu e a brisa

Ah, se a juventude que esta brisa canta
Ficasse aqui comigo mais um pouco
Eu poderia esquecer a dor
De ser tão só pra ser um sonho

Daí então quem sabe alguém chegasse
Buscando um sonho em forma de desejo
Felicidade então pra nós seria

E, depois que a tarde nos trouxesse a lua,
Se o amor chegasse eu não resistiria
E a madrugada acalentaria a nossa paz

Fica, ó brisa, fica pois talvez quem sabe
O inesperado faça uma surpresa
E traga alguém que queira te escutar
E junto a mim queira ficar

(Composição: Johnny Alf)

Ouçam aqui a maravilhosa interpretação de Caetano Veloso.

terça-feira, 28 de junho de 2011

O orgulho

- O orgulho dele - disse a Srta Lucas - não me ofende tanto quanto o orgulho em geral, porque existe um motivo. Não é de admirar que um rapaz tão distinto, com família, fortuna, tudo a seu favor, tenha de si mesmo uma alta opinião. Se me permitem dizer, ele tem o direito de ser orgulhoso.
- Isso é bem verdade - replicou Elizabeth -, e eu perdoaria facilmente o orgulho dele, se ele não tivesse ferido o meu.
- O orgulho - observou Mary, que se gabava da solidez de suas reflexões - é um defeito bastante comum, creio eu. Por tudo o que tenho lido, estou mesmo convencida de que é bastante comum, de que a natureza humana é muito suscetível a ele, e de que são pouquíssimos os que não alimentam um sentimento de autocomplacência por alguma qualidade, seja real ou imaginária. A vaidade e o orgulho são coisas diferentes, embora as palavras sejam frequentemente usadas como sinônimos. Uma pessoa pode ser orgulhosa sem ser vaidosa. O orgulho se relaciona mais com a opinião que temos de nós mesmos, e a vaidade, com o que desejaríamos que os outros pensassem de nós.

Orgulho e preconceito, Jane Austen.

O mar

Olhei o mar, os milibrilhos do luar me acendendo os olhos. O mar: porquê eu me achegava nele se, até então, suas águas só me ofereciam sofrimento? Talvez que ali, no meio de tão extensas securas, o mar fosse a fonte que trazia e levava todos os meus sonhos.

Trecho de Terra Sonâmbula, de Mia Couto.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

A vida ideal




"Bons amigos, bons livros e uma consciência preguiçosa: eis a vida ideal."


Mark TwainAdicionar imagem

O lugar



"Bibliotecas têm um cheiro especial, atmosfera própria, uma luz particular. Quanto às bibliotecárias, identifico-as pelo olhar. Olhem nos olhos delas, logo verão se gostam do que fazem. Elas têm viço, como se dizia. Levam uma chama nos olhos quando estão entre livros. Circulam pelos corredores entre estantes de modo desenvolto, em passos leves de dança. Por menor que seja a biblioteca pública, elas têm orgulho do que fazem, conhecem o papel que desempenham”.

Ignácio de Loyola Brandão .

quarta-feira, 22 de junho de 2011

O sorriso



"Muita coisa que ontem parecia importante ou significativa amanhã virará pó no filtro da memória. Mas o sorriso (…) ah, esse resistirá a todas as ciladas do tempo”.
Caio Fernando Abreu

terça-feira, 21 de junho de 2011

Ilusões perdidas

Uma frase para álbum

Há ilusões perdidas mas tão lindas que a gente as vê partir como esses balõezinhos de cor que nos escapam das mãos e desaparecem no céu...

Mario Quintana, In: A vaca e o hipogrifo

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Amores novos

Os amores novos, como não ignoram os observadores, são a mais forte coisa que existe no mundo, por isso não se temem de acidentes, sendo eles próprios, os amores, como por excelência são, a máxima representação do acidente, o relâmpago súbito, a sorridente queda, o atropelamento ansioso.

Trecho de A jangada de pedra, de José Saramago.

Jane Austen

Jane Austen é considerada uma das escritoras inglesas mais brilhantes e proeminentes, passados mais de dois séculos de sua morte. Autora de romances como Orgulho e Preconceito, Razão e Sensibilidade, Emma e Persuasão, consagrou-se por seus diálogos inteligentes e afiados e pela ironia presente em seus romances. Seus recursos de linguagem tinham um alvo específico: a sociedade provinciana inglesa do século XVIII.

Nasceu em 16 de dezembro de 1775, em Hampshire, na Inglaterra. Filha de um reverendo, foi a segunda mulher dentre sete irmãos. Quando completou oito anos, foi enviada a um internato – junto de sua irmã Cassandra, sua melhor amiga durante toda a vida – para receber a educação formal. Seu contato com os livros vem do acesso à biblioteca da família, permitido após a volta do colégio interno.

Na adolescência, Austen escrevia comédias, e seu primeiro livro bem acabado foi Lady Susan, escrito em forma epistolar, quando a autora tinha dezenove anos. Em 1797, Austen já havia escrito dois romances, Razão e Sensibilidade (primeiramente, chamado de Elinor and Marianne) e Orgulho e Preconceito (originalmente, First Impressions). Oferecidos pelo pai da inglesa a um editor, os livros foram rejeitados. A publicação dos títulos ocorreu só em 1811 e 1813, respectivamente, assinados com o codinome de “Uma Senhora”.

Morreu em 18 de julho de 1817, aos 42 anos, deixando inacabado o romance Sandition. Atualmente, seu romance Orgulho e Preconceito encontra-se entre os clássicos da literatura mundial. O que poderia ser uma típica história de amor é, nas mãos de uma das escritoras de língua inglesa mais difundidas pelo mundo, um espetáculo de grandes personagens e diálogos sagazes, com um timing perfeito para a ironia.

Fonte: http://www.lpm.com.br (com adaptações)

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Muito carinho meu



"Desejo a você
Fruto do mato
Cheiro de jardim
Namoro no portão
Domingo sem chuva
Segunda sem mau humor
Sábado com seu amor
Filme do Carlitos
Chope com amigos
Crônica de Rubem Braga
Viver sem inimigos
Filme antigo na TV
Ter uma pessoa especial
E que ela goste de você
Música de Tom com letra de Chico
Frango caipira em pensão do interior
Ouvir uma palavra amável
Ter uma surpresa agradável
Ver a Banda passar
Noite de lua Cheia
Rever uma velha amizade
Ter fé em Deus
Não Ter que ouvir a palavra não
Nem nunca, nem jamais e adeus.
Rir como criança
Ouvir canto de passarinho
Sarar de resfriado
Escrever um poema de Amor
Que nunca será rasgado
Formar um par ideal
Tomar banho de cachoeira
Pegar um bronzeado legal
Aprender um nova canção
Esperar alguém na estação
Queijo com goiabada
Pôr-do-Sol na roça
Uma festa
Um violão
Uma seresta
Recordar um amor antigo
Ter um ombro sempre amigo
Bater palmas de alegria
Uma tarde amena
Calçar um velho chinelo
Sentar numa velha poltrona
Tocar violão para alguém
Ouvir a chuva no telhado
Vinho branco
Bolero de Ravel
E muito carinho meu"

Síntese da felicidade, Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 14 de junho de 2011

Peito de homem


Em "Poema de sete faces", que inicia o primeiro livro de Drummond, Alguma poesia (1930), uma estrofe acabou ganhando grande destaque e popularidade com o passar dos anos:

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo
Mais vasto é meu coração.

Em Sentimento do mundo, livro publicado dez anos depois e que marca a maturidade poética do autor, encontramos a negação dessa ideia de coração maior que o mundo no penúltimo poema da obra, que podemos ler a seguir:

Mundo grande

Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.

Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.

Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem... sem que ele estale.

Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma, não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! Vai inundando tudo...
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos – voltarão?

Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)

Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.

Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.

Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.

Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
– Ó vida futura! Nós te criaremos.

Carlos Drummond de Andrade
In: Sentimento do mundo

*ouçam aqui a gravação do próprio Drummond declamando este poema.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Havemos de amanhecer

A noite dissolve os homens

A noite desceu. Que noite!
Já não enxergo meus irmãos.
E nem tão pouco os rumores
que outrora me perturbavam.
A noite desceu. Nas casas,
nas ruas onde se combate,
nos campos desfalecidos,
a noite espalhou o medo
e a total incompreensão.
A noite caiu. Tremenda
sem esperança... Os suspiros
acusam a presença negra
que paralisa os guerreiros.
E o amor não abre caminho
na noite. A noite é mortal,
completa, sem reticências,
a noite dissolve os homens,
diz que é inútil sofrer,
a noite dissolve as pátrias,
apagou os almirantes
cintilantes! nas suas fardas.
A noite anoiteceu tudo...
O mundo não tem remédio...
Os suicidas tinham razão.

Aurora,
entretanto eu te diviso, ainda tímida,
inexperiente das luzes que vais acender
e dos bens que repartirás com todos os homens.
Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,
adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna.
O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,
teus dedos frios, que ainda se não modelaram
mas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório.
Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,
minha carne estremece na certeza de tua vinda.
O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes se enlaçam,
os corpos hirtos adquirem uma fluidez,
uma inocência, um perdão simples e macio...
Havemos de amanhecer. O mundo
se tinge com as tintas da antemanhã
e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
para colorir tuas pálidas faces, aurora.

Carlos Drummond de Andrade
In: Sentimento do mundo.

Os inocentes do Leblon

Os inocentes do Leblon
não viram o navio entrar.
Trouxe bailarinas?
trouxe imigrantes?
trouxe um grama de rádio?
Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram,
mas a areia é quente, e há um óleo suave
que eles passam nas costas, e esquecem.


Carlos Drummond de Andrade

In: Sentimento do Mundo

O poema e seu leitor

Nos poemas de Carlos Drummond, os grandes acontecimentos públicos do século são expressos através duma atormentada, galhofeira ou benévola auto-análise. A esta se acopla uma reflexão poética de ordem pessoal e transferível sobre a vivência do cidadão brasileiro e do intelectual cosmopolita em tempos que podem ser trágicos, dramáticos, nostálgicos, pessimistas ou alegres. Experiência privada e fatos públicos nacionais e estrangeiros, em correlação e sistema de troca entranháveis, compõem a textura das sucessivas coletâneas de poemas publicadas entre 1930 e 1996.
[...]
A proposta de escrever poemas pessoais e originais, e contraditoriamente passíveis de serem transferidos palavra por palavra ao leitor, está tematizada de maneira variada na arte poética de Carlos Drummond. Através do trabalho de arte, o poeta traz o leitor para os dois dedos de prosa na sala de visitas do poema, ou para o bate-papo na esquina do livro. O poema mantém diálogo fecundo com o seu acompanhante, num diapasão de familiaridade que não deve ser confundido com a neutralidade consensual da conversa mole pra boi dormir, tipo cada um no seu canto. O diálogo do poema com seu leitor é descontraído e é tenso, é zombeteiro e é enérgico, é irônico e é sentimental, é confidencial sem ser introvertido.

Silviano Santiago

Mês Drummond

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Mundo sólido

Privilégio do mar

Neste terraço mediocremente confortável,
bebemos cerveja e olhamos o mar.
Sabemos que nada nos acontecerá.

O edifício é sólido e o mundo também.

Sabemos que cada edifício abriga mil corpos
labutando em mil compartimentos iguais.
Às vezes, alguns se inserem fatigados no elevador
e vem cá em cima respirar a brisa do oceano,
o que é privilégio dos edifícios.

O mundo é mesmo de cimento armado.

Certamente, se houvesse um cruzador louco,
fundeado na baía em frente da cidade,
a vida seria incerta... improvável...
Mas nas águas tranquilas só há marinheiros fiéis.
Como a esquadra é cordial!

Podemos beber honradamente nossa cerveja.

Carlos Drummond de Andrade
In: Sentimento do mundo

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Carlos e o Rio

Em Sentimento do mundo, além dos poemas serem predominantemente marcados pelas fortes marcas da guerra que assolava o mundo, as características locais também têm lugar em muitos dos poemas desse livro. Apesar de mineiro, Drummond viveu muitos anos na cidade do Rio de Janeiro, chegando a fazer parte dela de tal modo que hoje há uma estátua sua em Copacabana, no banco em que costumava se sentar. Portanto, são frequentes as referências à cidade maravilhosa em sua obra, como nos poemas abaixo, que carregam nomes de bairros em seus títulos.

Indecisão do Méier

Teus dois cinemas, um ao pé do outro, por que não se afastam
para não criar, todas as noites, o problema da opção
e evitar a humilde perplexidade dos moradores?
Ambos com a melhor artista e a bilheteira mais bela,
que tortura lançam no Méier!


Inocentes do Leblon

Os inocentes do Leblon
não viram o navio entrar.
Trouxe bailarinas?
trouxe imigrantes?
trouxe um grama de rádio?
Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram,
mas a areia é quente, e há um óleo suave
que eles passam nas costas, e esquecem.



Carlos Drummond de Andrade
In: Sentimento do mundo

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Poesia

"Entendo que a poesia é negócio de grande responsabilidade, e não considero honesto rotular-se de poeta quem apenas verseje por dor de cotovelo, falta de dinheiro ou momentânea tomada de contato com as forças líricas do mundo, sem se entregar aos trabalhos cotidianos e secretos da técnica, da leitura, da contemplação e mesmo da ação. Até os poetas se armam, e um poeta desarmado é, mesmo, um ser à mercê de inspirações fáceis, dócil às modas e aos compromissos."



Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 3 de junho de 2011

O tamanho das coisas




"A gente só descobre isso depois de grande(…). Que o tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com as coisas. Há de ser como acontece com o amor”.
Memórias Inventadas, Manoel de Barros.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Medo da eternidade

Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramático contato com a eternidade.

Quando eu era muito pequena ainda não tinha provado chicles e mesmo em Recife falava-se pouco deles. Eu nem sabia bem de que espécie de bala ou bombom se tratava. Mesmo o dinheiro que eu tinha não dava para comprar: com o mesmo dinheiro eu lucraria não sei quantas balas.

Afinal minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para a escola me explicou:

- Como não acaba? - Parei um instante na rua, perplexa.

- Não acaba nunca, e pronto.

- Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de histórias de príncipes e fadas. Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do longo prazer. Examinei-a, quase não podia acreditar no milagre. Eu que, como outras crianças, às vezes tirava da boca uma bala ainda inteira, para chupar depois, só para fazê-la durar mais. E eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparência tão inocente, tornando possível o mundo impossível do qual já começara a me dar conta.

- Com delicadeza, terminei afinal pondo o chicle na boca.

- E agora que é que eu faço? - Perguntei para não errar no ritual que certamente deveira haver.

- Agora chupe o chicle para ir gostando do docinho dele, e só depois que passar o gosto você começa a mastigar. E aí mastiga a vida inteira. A menos que você perca, eu já perdi vários.

- Perder a eternidade? Nunca.

O adocicado do chicle era bonzinho, não podia dizer que era ótimo. E, ainda perplexa, encaminhávamo-nos para a escola.

- Acabou-se o docinho. E agora?

- Agora mastigue para sempre.

Assustei-me, não saberia dizer por quê. Comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita. Na verdade eu não estava gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da idéia de eternidade ou de infinito.

Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me dava aflição. Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar.

Até que não suportei mais, e, atrevessando o portão da escola, dei um jeito de o chicle mastigado cair no chão de areia.

- Olha só o que me aconteceu! - Disse eu em fingidos espanto e tristeza. - Agora não posso mastigar mais! A bala acabou!

- Já lhe disse - repetiu minha irmã - que ela não acaba nunca. Mas a gente às vezes perde. Até de noite a gente pode ir mastigando, mas para não engolir no sono a gente prega o chicle na cama. Não fique triste, um dia lhe dou outro, e esse você não perderá.

Eu estava envergonhada diante da bondade de minha irmã, envergonhada da mentira que pregara dizendo que o chicle caíra na boca por acaso.

Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim.


Clarice Lispector