segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Dia D


"Ainda que mal
Ainda que mal pergunte,
ainda que mal respondas;
ainda que mal te entenda,
ainda que mal repitas;
ainda que mal insista,
ainda que mal desculpes;
ainda que mal me exprima,
ainda que mal me julgues;
ainda que mal me mostre,
ainda que mal me vejas;
ainda que mal te encare,
ainda que mal te furtes;
ainda que mal te siga,
ainda que mal te voltes;
ainda que mal te ame,
ainda que mal o saibas;
ainda que mal te agarre,
ainda que mal te mates;
ainda assim te pergunto
e me queimando em teu seio,
me salvo e me dano: amor."
Carlos Drummond de Andrade

Lembrança



"E o ar. Dizia que o ar estava com cheiro de lembrança."


Guimarães Rosa.    A menina de lá,  in PRIMEIRAS ESTÓRIAS.

Diversas dores...




"Desabado aquele feito, houve muitas diversas dôres, de todos, dos de casa: um de-repente enorme. A Mãe, o Pai e Tiantônia davam conta de que era a mesma coisa que se cada um deles tivesse morrido por metade. E mais para repassar o coração, de se ver quando a Mãe desfiava o terço, mas em vez de ave-marias podendo só gemer aquilo de - "Menina grande... Menina grande..." - com toda ferocidade. E o Pai alisava com as mãos o tamboretinho em que Nhinhinha se sentava tanto, e em que ele mesmo se sentar não podia, que com o peso de seu corpo de homem o tamboretinho se quebrava"



Trecho de A menina de lá, em Primeiras estórias. João Guimarães Rosa.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Palavras têm canto e plumagem




"Repito mais uma vez: João Guimarães Rosa escreveu um romance, novelas e contos como se fosse poesia. Sabendo que as palavras, além de significado, 'têm canto e plumagem', e que as frases não devem ser gaiolas, mas, sim, espaço, e no espaço, voo. Não quis ser discursivo, persuasivo, lógico, Preferiu ser expressivo, perscrutador e lúdico. Perseguiu uma prosa permanentemente emocionada, uma prosa que fosse uma sequência de versos de verdade - e não apenas pela marcação do ritmo e pela contagem dos pés - , versos construídos com a força dos substantivos e o matrimônio de palavras que, juntas, se desbanalizam, readquirem a pureza semântica e os timbres primitivos, ou se mostram com novos valores que nelas não sabíamos."


Trecho do ensaio  Estas Primeiras Estórias,  de Alberto da Costa e Silva.

A novidade



"No mais, mesmo, da mesmice, sempre vem a novidade. Naquela véspera, eu andava meio relaxo, fraco;eu já declinava para nãoezas?Nos primeiros de novembro. Sou quase de paz, o quanto posso. Desconto, para trás, o em que me tive, da mocidade:desmandos, desordens e despraças."

Primeiras Estórias, João Guimarães Rosa.

Auroras




"Conto o que fui e vi, no levantar do dia. Auroras."


Guimarães Rosa, in GRANDE SERTÃO: VEREDAS. 

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Desconfio




"Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa".



Guimarães Rosa, in GRANDE SERTÃO VEREDAS.



terça-feira, 25 de outubro de 2011

Geni e o Zepelim

De tudo que é nego torto
Do mangue e do cais do porto
Ela já foi namorada
O seu corpo é dos errantes
Dos cegos, dos retirantes
É de quem não tem mais nada
Dá-se assim desde menina
Na garagem, na cantina
Atrás do tanque, no mato
É a rainha dos detentos
Das loucas, dos lazarentos
Dos moleques do internato
E também vai amiúde
Co'os velhinhos sem saúde
E as viúvas sem porvir
Ela é um poço de bondade
E é por isso que a cidade
Vive sempre a repetir
Joga pedra na Geni
Joga pedra na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni


Um dia surgiu, brilhante
Entre as nuvens, flutuante
Um enorme zepelim
Pairou sobre os edifícios
Abriu dois mil orifícios
Com dois mil canhões assim
A cidade apavorada
Se quedou paralisada
Pronta pra virar geléia
Mas do zepelim gigante
Desceu o seu comandante
Dizendo
Mudei de idéia
Quando vi nesta cidade
Tanto horror e iniqüidade
Resolvi tudo explodir
Mas posso evitar o drama
Se aquela formosa dama
Esta noite me servir
Essa dama era Geni
Mas não pode ser Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni

Mas de fato, logo ela
Tão coitada e tão singela
Cativara o forasteiro
O guerreiro tão vistoso
Tão temido e poderoso
Era dela, prisioneiro
Acontece que a donzela
- e isso era segredo dela
Também tinha seus caprichos
E a deitar com homem tão nobre
Tão cheirando a brilho e a cobre
Preferia amar com os bichos
Ao ouvir tal heresia
A cidade em romaria
Foi beijar a sua mão
O prefeito de joelhos
O bispo de olhos vermelhos
E o banqueiro com um milhão
Vai com ele, vai Geni
Vai com ele, vai Geni
Você pode nos salvar
Você vai nos redimir
Você dá pra qualquer um
Bendita Geni

Foram tantos os pedidos
Tão sinceros, tão sentidos
Que ela dominou seu asco
Nessa noite lancinante
Entregou-se a tal amante
Como quem dá-se ao carrasco
Ele fez tanta sujeira
Lambuzou-se a noite inteira
Até ficar saciado
E nem bem amanhecia
Partiu numa nuvem fria
Com seu zepelim prateado
Num suspiro aliviado
Ela se virou de lado
E tentou até sorrir
Mas logo raiou o dia
E a cidade em cantoria
Não deixou ela dormir
Joga pedra na Geni
Joga bosta na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni


Geni e o Zepelim.  Chico Buarque. 

a vida não se perdeu


Vamos, não chores.
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.

Consolo na Praia, Drummond

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

O milmaravilhoso





"E era bom demais, bonito - o milmaravilhoso - a gente voava, num amor, nas palavras"


João Guimarães Rosa. in PRIMEIRAS ESTÓRIAS, "Pirlimpsiquice". 


Compaixão

Quando não há compaixão
Ou mesmo um gesto de ajuda
O que pensar da vida
E daqueles que sabemos que amamos ?

Quem pensa por si mesmo é livre
E ser livre é coisa muito séria
Não se pode fechar os olhos
Não se pode olhar pra trás
Sem se aprender alguma coisa pro futuro

Corri pro esconderijo
Olhei pela janela
O sol é um só
Mas quem sabe são duas manhãs

Não precisa vir
Se não for pra ficar
Pelo menos uma noite
E três semanas

Nada é fácil
Nada é certo
Não façamos do amor
Algo desonesto

Quero ser prudente
E sempre ser correto
Quero ser constante
E sempre tentar ser sincero

E queremos fugir
Mas ficamos sempre sem saber

Seu olhar
Não conta mais histórias
Não brota o fruto e nem a flor

E nem o céu é belo e prateado
E o que eu era eu não sou mais
E não tenho nada pra lembrar

Triste coisa é querer bem
A quem não sabe perdoar
Acho que sempre lhe amarei
Só que não lhe quero mais

Não é desejo, nem é saudade
Sinceramente, nem é verdade

Eu sei porque você fugiu
Mas não consigo entender
Eu sei porque você fugiu
Mas não consigo entender

L'avventura, Legião Urbana

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Agudo



" O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O medo. O medo me miava."

Primeiras Estórias, João Guimarães Rosa.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Raiar


A vida podia às vezes raiar numa verdade extraordinária.


G. Rosa. Primeiras estórias.

O poeta não cita: canta.





"O poeta não cita: canta.Não se traça programas,porque a sua estrada não tem marcos nem destino.Se repete, são idéias e imagens que volvem à tona por poder próprio, pois que entre elas há também uma sobrevivência do mais apto . Não se aliena, como um lunático , das agitações coletivas e contemporâneas, porque arte e vida são planos não superpostos mas interpenetrados, com o ar entranhado nas massas de água, indispensável ao peixe—neste caso ao homem, que vive a vida e que respira arte. Mas tal contribuição para o meio humano será a de um órgão para um organismo: instintiva, sem a consciência de uma intenção, automática , discreta e subterrânea.

Com um fosso fundo ao redor de sua turris ebúrnea, deixa a outros o trabalho de verificarem de quem recebeu informações ou influências e a quem poderá ou não influenciar.
E o incontentamento é o seu clima, porque o artista não passa de um místico retardado , sempre a meia jornada. Falta-lhe o repouso do sétimo dia. Não tem o direito de se voltar para o já-feito , ainda que mais nada tenha por fazer.
A satisfação proporcionada pela obra de arte àquele que a revela é dolorosamente efêmera : relampeja, fugaz, nos momentos de febre inspiradora, quando ele tateia formas novas para exteriorização do seu magma íntimo, do seu mundo interior. Uma tortura crescente, o intervalo de um rapto e um quase arrependimento. Pinta a sua tela , cega-se para ela e passa adiante. Se a surdes de Beethoven tivesse lhe trazido a infecundidade, seria um símbolo. Obra escrita—obra já lida---obra repudiada: trabalhar em comeias opacas e largar o enxame ao seu destino, mera ventura de brisas e de asas.
Tudo isto aqui vem tão somente para exaltar a importância que reconheço ao estimulo que me outorgastes. Grande, inesquecível incentivo. O Magma, aqui dentro, reagiu, tomou vida própria, individualizou-se , libertou-se do seu desamor e se fez criatura autônoma , com quem talvez eu já não esteja muito de acordo ,mas a quem a vossa consagração me força a respeitar. Sou-lhe grato, principalmente, pelo privilégio que me obteve de poder --- sem demasiadas ilusões, mas reverente--- levantar a voz neste recinto, como um menino que depõe o seu brinquedo na superfície translúcida de uma água , para a qual a serenidade não é a estagnação, e cujo brilho da face viva nada rouba à projeção poderosa da profundidade.(...)"



Discurso proferido por João Guimarães Rosa quando do recebimento de um prêmio pela Academia Brasileira de Letras, por seu livro de poemas Magma, publicado em 1936. 
Revista da Academia Brasileira de Letras, anais de 1937, ano 29,vol. 53, p.261-263. 

terça-feira, 18 de outubro de 2011

...súbitos e recônditos...




"Debaixo do chuveiro eu deixava suas mãos escorregarem pelo meu corpo, e suas mãos eram inesgotáveis, e corriam perscrutadoras com muita espuma, e elas iam e vinham incansavelmente, e nossos corpos molhados vez e outra se colavam pr'elas me alcançarem as costas num abraço, e eu achava gostoso todo esse movimento dúbio e sinuoso, me provocando súbitos e recônditos solavancos."


Trecho de Um copo de cólera, de Raduan Nassar. 

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

As coisas





"As coisas assim a gente não perde nem abarca. Cabem é no brilho da noite. Aragem do sagrado. Absolutas estrelas"


João Guimarães Rosa. 

...saudade abandonada...

Noites do sertão, de Tom Alves


"De volta, não queria sair mais ao terreirinho, lá era uma saudade abandonada, um incerto remorso. Nem ele sabia bem. Seu pensamentozinho estava ainda na fase hieroglífica. Mas foi, depois do jantar. E - a nem espetaculosa surpresa - viu-o, suave inesperado: o peru, ali estava! Oh, não. Não era o mesmo. Menor, menos muito. Tinha o coral, a arrecauda, a escova,o grugrulhar grufo, mas faltava em sua penosa elegância o recacho, o englobo, a beleza esticada do primeiro. Sua chegada e presença, em todo o caso, um pouco consolavam. [...] Tudo se amaciava na tristeza. Até o dia; isto era: já o vir da noite. Porém, o subir da noitinha é sempre e sofrido assim., em toda a parte. O silêncio saía de seus guardados. O Menino, timorato, aquietava-se com o próprio quebranto: alguma força, nele, trabalhava por arraigar as raízes, aumentar-lhe a alma."

Trecho do conto As margens da alegria, in Primeiras estórias, de João Guimarães Rosa. 

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Saber-se desperta


Começou a ficar escuro e ela teve ,edo. A chuva caiá sem tréguas e as calçadas brilhavam úmidas à luz das lâmpadas. Passavam pessoas de gaurda-chuva, impermeável, muito apressadas, os rostos cansados. Os automóveis deslizavam pelo asfalto molhado e uma ou outra buzina tocava maciamente.
Quis sentar-se num banco do jardim, porque na verdade não sentia chuva e não se importava com o frio. Só mesmo um pouco de medo, porque ainda não resolvera o caminho a tomar. O banco seria um ponto de repouso. Mas os transeuntes olhavam-na com estranheza e ela prosseguia na marcha.
Estava cansada. Pensava sempre:"Mas que é que vai acontecer agora?"Se ficasse andando. Não era solução. Voltar para casa?Não. Receava que alguma força a empurrasse para o ponto de partida. Tonta como estava, fechou os olhos e imaginou um grande turbilhão saindo do "Lar Elvira", aspirando-a violentamente e recolocando-a junto da janela, o livro na mão, recompondo a cena diária. Assustou-se. Esperou um momento em que ninguém passava para dizer com toda a força:"Você não voltará."Apaziguou-se.
Agora que decidira ir embora tudo renascia. Se não estivesse tão confusa, gostaria infinitamente do que pensara ao cabo de duas horas:"Bem, as coisas ainda existem." Sim, simplesmente extraordinária a descoberta. Há doze anos era casada e três horas de liberdade restituiam-na quase inteira a si mesna: - a primeira coisa a fazer era ver se as coisas ainda existiam.Se representasse num palco essa mesma tragédia, se apalparia, beliscaria para saber-se desperta. O que tinha menos vontade de fazer, porém, era de representar. Não havia, porém, somente alegria e alívio dentro dela. Também um pouco de medo e doze anos.
Trecho de A fuga, Clarice Lispector.

O Caboclo d’Água


No lombo de pedra da cachoeira clara
as águas se ensaboam
antes de saltar.
 
E lá embaixo, piratingas, pacus e dourados
dão pulos de prata, de ouro e de cobre,
querendo voltar, com medo do poço
da quarta volta do rio,
largo, tranqüilo, tão chato e brilhante,
deitado a meio bote
como uma boipeva branca.

Na água parada,
entre as moitas de sarãs e canaranas,
o puraquê tem pensamentos
de dois mil volts.
 
À sombra dos mangues,
que despetalam placas vermelhas,
dois botos zarpam, resfolengando,
com quatro jorros,
a todo vapor.
 
E os jacarés cumpridos, de olhos esbugalhados,
soltam latidos , e vão fugindo,
estabanados, às rabanadas, espadanando,
porque do fundo
do grande remanso, onde ninguém acha o fundo,
vem um rugido , vem um gemido,
tão rouco e feio, que as ariranhas
pegam no choro, como meninos.

O canoeiro
que vem no remo, desprevenido,
ouve o gemido e fica a tremer.
É o caboclo d’água,
todo peludo, todo oleoso,
que vem subindo lá das profundas,
e a mão enorme,preta e palmada,
de garras longas,
pega o rebordo da canoinha
quase a virar.

E o canoeiro, de facão pronto,
fica parado, rezando baixo,
sempre a tremer
 
Crescendo d’água ,lá vem a máscara,
negra e medonha,
de um gorila de olhar humano,
o Caboclo d’água
ameaçador.

E o canoeiro já não tem medo,
porque o Caboclo o olhou de frente,
todo molhado,
com olhos tristonhos,rosto choroso,
quase falando,
quase perguntando
pela ingrata Iara,
que, já faz tempo, se foi embora,
que há tantos anos o abandonou...



João Guimarães Rosa.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

somente com o tempo...




"Tenho aprendido com o tempo coisas que somente com o tempo a gente começa a aprender. Que o encontro amoroso, para ser saudável, não deve implicar subtração: deve ser soma. Que há que se ter metas claras, mas também a sabedoria de não se transformar a vida numa sala de espera. Que a espontaneidade e a admiração são os adubos naturais que fazem as relações florescerem. Que olhar para o nosso medo, conversar com ele, enchê-lo de cuidado amoroso quando ele nos incomoda mais, levá-lo para passear e pegar sol, é um caminho bacana para evitar que ele nos contraia a alma". 



Ana Jácomo.

Primeiras estórias, de Guimarães Rosa




"Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio."



Trecho de A terceira margem do rio, in PRIMEIRAS ESTÓRIAS. João Guimarães Rosa. 

A vida é mãe



"Em todas idas e vindas, obscuramente eu sempre sabia: embora tudo mude, nada muda porque tudo permanece aqui dentro, e fala comigo, e me segura no colo quando eu mesma não consigo sustentar.E depois me solta de novo, para que eu volte a andas pelos meus próprios pés.

A vida é mãe nem sempre carinhosa, mas tem uma vara de condão especial: o mistério com que embrulha todas as coisas, e algumas deixa invisíveis."

Lya Luft

A mística do abraço


Mas o melhor do abraço não é a ideia dos braços facilitarem o encontro dos corpos. O melhor do abraço é a sutileza dele. A mística dele. A poesia. O segredo de literalmente aproximar um coração do outro para conversarem no silêncio que dá descanso à palavra. O silêncio onde tudo é dito sem que nenhuma letra precise se juntar a outra. O melhor do abraço é o charme de fazer com que a eternidade caiba em segundos. A mágica de possibilitar que duas pessoas visitem o céu no mesmo instante.
Ana Jácomo

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Dialética do divino

"Amor é isto: a dialética entre a alegria do encontro e a dor da separação. De alguma forma a gota de chuva aparecerá de novo, o vento permitirá que velejemos de novo, mar afora. Morte e ressureição. Na dialética do amor, a própria dialética do divino. Quem não pode suportar a dor da separação não está preparado para o amor. Porque o amor é algo que não se tem nunca. É evento de graça. Aparece quando quer, e só nos resta ficar à espera. E quando ele volta, a alegria volta com ele. E sentimos então que valeu a pena suportar a dor da ausência, pela alegria do reencontro." Rubem Alves

de vento em vento


"O tempo, de vento em vento, desmanchou o penteado arrumadinho de várias certezas que eu tinha, e algumas vezes, descabelou completamente a minha alma. Mesmo que isso tenha me assustado muito aqui e ali, no somatório de tudo, foi graça, alívio e abertura. A gente não precisa de certezas estáticas. A gente precisa é aprender a manha de saber se reinventar. De se tornar manhã novíssima depois de cada longa noite escura. De duvidar até acreditar com o coração isento das crenças alheias. A gente precisa é saber criar espaço, não importa o tamanho dos apertos. A gente precisa é de um olhar fresco, que não envelheceu, apesar de tudo o que já viu. É de um amor que não enruga, apesar das memórias todas na pele da alma. A gente precisa é deixar de ser sobreviventes para, finalmente, viver. A gente precisa mesmo é aprender a ser feliz a partir do único lugar onde a felicidade pode começar, floris, esparramas seus ramos, compartilhar seus frutos...”

(Ana Jácomo)

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Alguém


"Eu ia andando pela avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui percebendo as coisas. Minha liberdade então se intensificou um pouco mais, se deixar de ser liberdade. Não era tour de propriétaire, nada daquilo era meu, nem eu queria. Mas parece-me que me sentia satisfeita com o que eu via.
Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho, mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe que existe. Soube também que se tudo isso "fosse mesmo" o que eu sentia - e não possivelmente um equívoco de sentimento- que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se deixaria acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-Lhe-ia aceitável a intimidade com que eu fazia carinho. O sentimento era novo para mim, mas muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo, e reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre.
E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia meu mais profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo desmesurado de ratos.
Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os dois fatos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a contiguidade ligava-os. Os dois fatos tinham ilogicamente um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido meu contraponto. E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que dentro de tudo há sangue.Não só não esqueço o sangue de dentro como eu o admito e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim palavra espiritual não tem sentido, e nem palavra terrena tem sentido. Não era preciso ser jogadi na minha cara tão nua um rato. Não naquele instante. Bem poderia ter sido levado em conta o pavor que desde pequena me alucina e me persegue, os ratos já riram de mim, no passado do mundo os ratos já me devoraram com pressa e raiva. Então era assim? eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato?A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto. Andando com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável como só em criança fui decepcionada. Continuei andando, procurava esquecer. Mas só me ocorria a vingança. Mas que vingança poderia eu contra um Deus Todo-Poderoso, contra um Deus que até com um rato esmagado podia me esmagar? Minha vulnerabilidade de criatura só. Na minha vontade de vingança nem ao menos eu podia encará-Lo, pois eu não sabia onde é que Ele mais estava e que eu, olhando com raiva essa coisa, eu O visse? naquela janela? nas pedras do chão? Em mim é que Ele não estava mais. Em mim é que eu não O via mais.
Então a vingança dos fracos então me ocorreu: ah, é assim?pois então não guardarei segredo, e vou contar. Sei que é ignóbil ter entrado na intimidade de Alguém, e depois contar os segredos, mas vou contar - não conte, só por carinho não conte, guarde para você mesma as vergonhas Dele - mas vou contar sim, vou espalhar isso que me aconteceu, dessa vez não vai ficar por isso mesmo, vou contar o que Ele fez, vou estragar Sua reputação.
... mas quem sabe, foi porque o mundo também é rato, e eu tinha pensado que já estava pronta para o mundo também. Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as imcompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a imcompreensão e transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. É porque sou muito possessiva e então me foi perguntado com alguma ironia se eu também não queria o rato para mim. É porque só poder sei mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão. Sei que nunca poderei pegar num rato sem morrer da minha pior morte. Então, pois, que eu use o magnificant que entoa às cegas sobre o que não se sabe nem vê. E que eu use o formalismo que me afasta. Porque o formalismo não tem ferido a minha simplicidade, e sim o meu orgulho, pois é pelo orgulho de ter nascido que me sinto tão íntima do mundo, mas este mundo que eu ainda extraí de mim um grito mudo. Porque o rato existe tanto quanto eu, e talvez nem eu nem o raro sejamos para ser vistos por nós mesmos,a distância nos iguala. Talvez eu tenha que aceitar antes de mais nada esta minha natureza que quer a morte de um rato. Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes, eu me acho de amor inocente. Talvez eu não possa olhar o rato enquanto não olhar sem lividez esta minha alma que é apenas contida. Talvez tenha que chamar de "mundo" esse meu modo de ser um pouco tudo. Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar que "Deus" é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar. Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escandalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com um terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo maior de minha vida não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe."
Perdoando Deus, Clarice Lispector

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Os numerosos filhos alheios

Na capital, o terremoto surpreendeu a Nana em sua cama, e, apesar de ali ele ter sido menos sentido do que no Sul, o susto matou-a assim mesmo. O casarão da esquina estalou como uma noz, abriram-se gretas nas paredes, e o grande lustre de pingentes de cristal da sala de jantar caiu com um clamor de mil sinos,, fazendo-se em caquinhos. Fora isso, a única coisa grave foi a morte da Nana. Quando passou o terror do primeiro momento, os empregados deram-se conta de que a anciã não fugira para a rua com os demais. Entraram para resgatá-la e a encontraram em sua cama, os olhos fora das órbitas e o pouco cabelo que lhe restava eriçado de pavor. No caos daqueles dias, não puderam fazer-lhe um enterro digno, como ela teria esperado, sendo obrigados a enterrá-la às pressas, sem discursos nem lágrimas. Nenhum dos numerosos filhos alheios que ela criara com tanto amor assistiu a seu funeral.


Isabel Allende, A Casa dos Espíritos.

A mesma simpatia com que tratava todo mundo.



Sentia o desejo insatisfeito fervendo-lhe nas entranhas, um fogo impossível de apagar, uma sede de Clara que nunca, nem mesmo nas noites mais fogosas e prolongadas, conseguia saciar. Dormia extenuado, com o coração a ponto de explodir dentro do peito, mas até em seus sonhos tinha consciência de que a mulher que repousava a seu lado não estava de fato ali, mas numa dimensão desconhecida que ele jamais conseguiria alcançar. Às vezes perdia a paciência e sacudia Clara, furioso, gritando-lhe os piores insultos, mas terminava chorando em seu colo e pedindo perdão por sua brutalidade. Clara compreendia, mas não podia aliviá-lo. O amor desmedido de Esteban Trueba por Clara foi sem dúvida o sentimento mais poderoso da sua vida, superando até a raiva e o orgulho, e, meio século depois, continuaria a invocá-lo com o mesmo estremecimento e a mesma urgência. Em seu leito de ancião ele a chamaria até o fim de seus dias.


Isabel Allende, A Casa dos Espíritos.

Clara


A adolescência de Clara foi suave na grande casa de três pátios de seus pais, mimada pelos irmãos mais velhos, por Severo, que a preferia entre os filhos, por Nívea e pela Nana, que alternava suas sinistras excursões disfarçada de cuco com os cuidados mais ternos. Quase todos os irmãos tinham casado ou partido, alguns em viagem, outros para trabalhar no interior, e a grande casa, que abrigara uma família numerosa, estava quase vazia, com muitos quartos fechados. A menina ocupava o tempo que lhe deixavam os preceptores lendo, movendo os objetos mais variados sem tocá-los, flanando com Barrabás, praticando jogos de adivinhação e aprendendo a tecer, a única de todas as artes domésticas que conseguiu dominar. Desde aquela Quinta-Feira Santa em que o padre Restrepo a acusou de endemoninhada, pairava uma sombra sobre sua cabeça que o amor de seus pais e a discrição de seus irmãos conseguiram controlar; a fama de seus estranhos dotes, contudo, circulou a meia voz nas reuniões das senhoras. Nívea observou que ninguém convidava sua filha, e até seus próprios primos evitavam. Procurou compensar a falta de amigos com sua dedicação total e obteve tanto êxito, que Clara cresceu alegremente e nos anos seguintes recordaria sua infância como um período iluminado de sua existência, apesar de sua solidão e de seu mutismo. Durante a vida inteira guardaria na memória as tardes partilhadas com sua mãe na salinha de costura, onde, sentada à máquina, Nívea fazia roupa para os pobres e lhe contava histórias e casos familiares. Mostrava-lhe os daguerreótipos da parede e relatava o passado.
(...)
A relação com sua mãe era alegre e íntima, e Nívea, apesar de ter tido 15 filhos, tratava-a como se ela fosse a única, estabelecendo um vínculo tão forte, que se prolongou pelas gerações posteriores como uma tradição familiar.




Isabel Allende, A Casa dos Espíritos.

Descobrimento

A íntima poesia da vida é a poesia dos homens que lutam, a poesia das relações inter-humanas, das experiências e ações reais dos homens. Sem essa íntima poesia não pode haver epopéia autêntica, não pode ser elaborada nenhuma composição épica apta a despertar interesses humanos, a fortalecê-los e avivá-los. A epopéia - e, naturalmente, também a arte do romance - consiste no descobrimento dos traços atuais e significativos da práxis social.
"Narrar ou descrever?", Georg Lukács.

Raiz


"Ser radical significa tomar as coisas pela raiz. Mas para o homem a raiz é o homem mesmo."
Karl Marx

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Regras



"Voltei-me para ela; Capitu tinha os olhos no chão. Ergueu-os logo, devagar, e ficamos a olhar um para o outro… Confissão de crianças, tu valias bem duas ou três páginas, mas quero ser poupado. Em verdade, não falamos nada; o muro falou por nós. Não nos movemos, as mãos é que se estenderam pouco a pouco, todas as quatro, pegando-se, apertando-se, fundindo-se. Não marquei a hora exata daquele gesto. Devia tê-la marcado; sinto falta de uma nota escrita naquela mesma noite, e que eu poria aqui com os erros de ortografia que trouxesse, mas não traria nenhum, tal era a diferença entre o estudante e o adolescente. Conhecia as regras do escrever, sem suspeitar as do amar”.
Dom Casmurro, Machado de Assis.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

O pássaro cativo


Armas, num galho de árvore, o alçapão
E, em breve, uma avezinha descuidada,
Batendo as asas cai na escravidão.
Dás-lhe então, por esplêndida morada,
Gaiola dourada;

Dás-lhe alpiste, e água fresca, e ovos e tudo.
Por que é que, tendo tudo, há de ficar
O passarinho mudo,
Arrepiado e triste sem cantar?
É que, criança, os pássaros não falam..
Só gorjeando a sua dor exalam,
Sem que os homens os possam entender;
Se os pássaros falassem,
Talvez os teus ouvidos escutassem
Este cativo pássaro dizer:

"Não quero o teu alpiste!
Gosto mais do alimento que procuro
Na mata livre em que voar me viste;
Tenho água fresca num recanto escuro.
Da selva em que nasci;
Da mata entre os verdores,
Tenho frutos e flores
Sem precisar de ti!

Não quero a tua esplêndida gaiola!
Pois nenhuma riqueza me consola,
De haver perdido aquilo que perdi...
Prefiro o ninho humilde construído

De folhas secas, plácido, escondido.
Solta-me ao vento e ao sol!
Com que direito à escravidão me obrigas?
Quero saudar as pombas do arrebol!
Quero, ao cair da tarde,
Entoar minhas tristíssimas cantigas!
Por que me prendes? Solta-me, covarde!
Deus me deu por gaiola a imensidade!
Não me roubes a minha liberdade...
Quero voar! Voar!"

Estas cousas o pássaro diria,
Se pudesse falar,
E a tua alma, criança, tremeria,
Vendo tanta aflição,
E a tua mão tremendo lhe abriria
A porta da prisão...
Olavo Bilac

sábado, 1 de outubro de 2011

Diários de viagem



De todos os irmãos del Valle, Clara era a que tinha mais disposição e interesse em ouvir os contos do seu tio. Podia repetir um por um, sabia de cor várias palavras de dialetos índios estrangeiros, conhecia seus costumes e descreveria com facilidade a maneira como atravessavam pedaços de madeira nos lábios e nos lóbulos das orelhas, bem como seus ritos de iniciação, e dominava os nomes das serpentes mais venenosas e de seus antídotos. Seu tio era tão eloquente, que a menina sentia na própria carne a dolorosa mordida das víboras, via o réptil deslizar sobre o tapete, entre os pés do aparador de jacarandá, e escutava os gritos das guacamayas (Ave da família dos papagaios. Arara. (N. T.)) atravessando as cortinas do salão. Repetia sem hesitação o trajeto de Lope de Aguirre em busca do Eldorado, os nomes impronunciáveis da flora e da fauna vistas ou inventadas por seu prodigioso tio, sabia que os lamas tibetanos tomam chá salgado com gordura de iaque e era capaz de descrever detalhadamente as opulentas nativas da Polinésia, os arrozais da China ou as planícies brancas dos países do Norte, onde o gelo eterno mata os animais e os homens que se distraem, petrificando-os em poucos minutos. Marcos tinha vários diários de viagem, em que registrava seus itinerários e impressões, e uma coleção de mapas e livros de contos, de aventuras e até de fadas, que guardava em seus baús no depósito dos fundos do terceíro pátio da casa. Dali, saíram para povoar os sonhos de seus descendentes até serem equivocadamente queimados, meio século depois, numa infame fogueira.




Isabel Allende, A Casa dos Espíritos.