sexta-feira, 6 de junho de 2014

Allah Hu Akbar! Allah Hu Akbar!*

Malba Tahan (Júlio Cézar de Mello e Souza)




Deus criou a mulher e junto com ela criou a fantasia. Foi assim que uma vez a Verdade desejou conhecer um palácio por dentro e escolheu o mais suntuoso de todos, onde vivia o grande sultão Haroun Al­-Raschid. Vestiu seu corpo apenas com um véu transparente e pouco depois chegou à porta do magnífico palácio. Assim que o guarda apareceu e viu aquela bela mulher sem nenhuma roupa, ficou desconcertado e perguntou quem ela era. E a Verdade respondeu com firmeza:
— Eu sou a Verdade e desejo encontrar-­me com seu senhor, o sultão Haroun Al-­Raschid.
O guarda entrou e foi falar com o grão-­vizir. Inclinando­-se diante dele, disse: 
— Senhor, lá fora está uma mulher pedindo para falar com nosso sultão, mas ela só traz um véu completamente transparente cobrindo seu corpo.
— Quem é essa mulher? — perguntou o grão-­vizir com viva curiosidade.
— Ela disse que se chama Verdade, senhor — respondeu o guarda.
O grão-­vizir arregalou os olhos e quase gaguejou:
— O quê? A Verdade em nosso palácio? De jeito nenhum, isso eu não posso permitir. Imagine o que ia ser de mim e de todos aqui se a Verdade aparecesse diante de nós? Estaríamos todos perdidos, sem exceção. Pode mandar essa mulher embora, imediatamente.
O guarda voltou e transmitiu à Verdade a resposta do seu superior. 
A Verdade teve que ir embora, muito triste.
Acontece que...
Deus criou a mulher e junto com ela criou a teimosia. A Verdade não se deu por vencida e foi procurar roupas para vestir. Cobriu-­se dos pés à cabeça com peles grosseiras, deixando apenas o rosto de fora e foi direto, é claro, para o palácio do sultão Haroun Al-­Raschid.
Quando o chefe da guarda abriu a porta e encontrou aquela mulher tão horrivelmente vestida, perguntou seu nome e o que ela queria. Com voz severa ela respondeu:
— Sou a Acusação e exijo uma audiência com o grande senhor deste palácio.
Lá se foi o guarda falar com o grão-­vizir e, ajoelhando­-se diante dele, disse:
— Senhor, uma estranha mulher envolvida em vestes mal cheirosas deseja falar com nosso sultão.
— Como é que ela se chama? — perguntou o grão­-vizir.
— O nome dela é Acusação, Excelência.
O grão-­vizir começou a tremer, morto de medo:
— Nem pensar. Já imaginou o que seria de mim, de todos aqui, se a Acusação entrasse nesse palácio? Estaríamos todos perdidos, sem exceção. Mande essa mulher embora imediatamente.
Outra vez a Verdade virou as costas e se foi tristemente pelo caminho. Ainda dessa vez ela não se deu por vencida. 
E isso por que...
Deus criou a mulher e junto com ela criou o capricho.
A Verdade buscou pelo mundo as vestes mais lindas que pôde encontrar: veludos e brocados, bordados com fios de todas as cores do arco­-íris. Enfeitou-­se com magníficos colares de pedras preciosas, anéis, brincos e pulseiras do mais fino ouro e perfumou­-se com essência de rosas. Cobriu o rosto com um véu bordado de fios de seda dourados e prateados e voltou, é claro, ao palácio do sultão Haroun Al-­Raschid.
Quando o chefe da guarda viu aquela mulher deslumbrante como a Lua, perguntou quem ela era.
E ela respondeu, com voz doce e melodiosa:
— Eu sou a Fábula e gostaria muito de encontrar­-me, se possível, com o sultão deste palácio.
O chefe da guarda foi correndo falar com o grão-­vizir, até esqueceu de ajoelhar-­se diante dele e foi logo dizendo:
— Senhor, está lá fora uma mulher tão linda, mas tão linda, que mais parece uma rainha. Ela deseja falar com nosso sultão.
Os olhos do grão­-vizir brilharam:
— Como é que ela se chama?
— Se entendi bem, senhor, o nome dela é Fábula.
— O quê? — disse o grão-­vizir, completamente encantado. — A Fábula quer entrar em nosso palácio? Mas que grande notícia! Para que ela seja recebida como merece, ordeno que cem escravas a esperem com presentes magníficos, flores perfumadas, danças e músicas festivas. 
As portas do grande palácio de Bagdá se abriram graciosamente, e por elas finalmente a bela andarilha foi convidada a passar. 
Foi desse modo que a Verdade, vestida de Fábula, conseguiu conhecer um grande palácio e encontrar-­se com Haroun Al­-Raschid, o mais fabuloso sultão de todos os tempos.

*Allah Hu Akbar! Allah Hu Akbar! : expressão árabe que, na tradição oral, anunciava que uma lenda seria contada a partir daquele momento. A tradução é "Deus é o maior!"

terça-feira, 1 de abril de 2014

Me veste

"Eu me dispo da notícia 
e a minha nudez parada 
te denuncia e te espelha
Eu me delato
Tu me relatas
Eu nos acuso 
e confesso por nós
Assim me livro das palavras
Com as quais 
Você me veste."
Texto Fauzi Arap