quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Saber-se desperta


Começou a ficar escuro e ela teve ,edo. A chuva caiá sem tréguas e as calçadas brilhavam úmidas à luz das lâmpadas. Passavam pessoas de gaurda-chuva, impermeável, muito apressadas, os rostos cansados. Os automóveis deslizavam pelo asfalto molhado e uma ou outra buzina tocava maciamente.
Quis sentar-se num banco do jardim, porque na verdade não sentia chuva e não se importava com o frio. Só mesmo um pouco de medo, porque ainda não resolvera o caminho a tomar. O banco seria um ponto de repouso. Mas os transeuntes olhavam-na com estranheza e ela prosseguia na marcha.
Estava cansada. Pensava sempre:"Mas que é que vai acontecer agora?"Se ficasse andando. Não era solução. Voltar para casa?Não. Receava que alguma força a empurrasse para o ponto de partida. Tonta como estava, fechou os olhos e imaginou um grande turbilhão saindo do "Lar Elvira", aspirando-a violentamente e recolocando-a junto da janela, o livro na mão, recompondo a cena diária. Assustou-se. Esperou um momento em que ninguém passava para dizer com toda a força:"Você não voltará."Apaziguou-se.
Agora que decidira ir embora tudo renascia. Se não estivesse tão confusa, gostaria infinitamente do que pensara ao cabo de duas horas:"Bem, as coisas ainda existem." Sim, simplesmente extraordinária a descoberta. Há doze anos era casada e três horas de liberdade restituiam-na quase inteira a si mesna: - a primeira coisa a fazer era ver se as coisas ainda existiam.Se representasse num palco essa mesma tragédia, se apalparia, beliscaria para saber-se desperta. O que tinha menos vontade de fazer, porém, era de representar. Não havia, porém, somente alegria e alívio dentro dela. Também um pouco de medo e doze anos.
Trecho de A fuga, Clarice Lispector.

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