terça-feira, 4 de janeiro de 2011



CARTA LXXXV
A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Vai enfim tranquilizar-se, e, sobretudo, fazer-me justiça.
Escute, e não me confunda com as outras mulheres. Cheguei ao fim da minha ventura com Prévan; ao fim! Compreende bem o que isto quer dizer? Agora o Visconde vai julgar qual de nós, eu ou ele, se poderá gabar. A narração não é tão agradável como a ação; por outro lado, não seria justo que, enquanto o Visconde nada mais fez que raciocinar bem ou mal sobre este assunto, extraísse dele tanto prazer como eu, que empreguei tempo e trabalho.
Entretanto, se tem algum grande golpe de audácia a executar, se pretende tentar qualquer empreendimento em que esse rival perigoso lhe faça sombra, pode vir. Ele deixou-lhe o campo livre, pelo menos por algum tempo; talvez mesmo não torne a erguer-se da prostração em que o lancei.
Como o Visconde é feliz em ter-me por amiga! Sou para si uma fada benfazeja! Enquanto vai definhando longe da beleza que o atrai, eu digo uma palavra, e de novo se encontra junto dela. Deseja vingar-se de uma mulher que lhe furta; eu marco o lugar onde deve feri-la, e entrego-a à sua mercê. Por fim, para afastar do combate um concorrente temível, sou ainda eu que o inspiro e o ponho no mais alto lugar. Na verdade, se não passa a vida a agradecer-me, é porque é um ingrato. Mas volto à minha aventura, desde o início.
O encontro, marcado em voz alta, à saída da Ópera, foi ouvido, como eu tinha esperado*. Prévan compareceu; e quando a Marechala lhe disse delicadamente que se sentia feliz por o ver duas vezes seguidas nas suas recepções, ele teve o cuidado de responder que desde a tarde de terça-feira tinha desfeito mil compromissos para poder assim dispor daquela noite. A bom entendedor...
No entanto, como eu desejava ter a certeza se era ou não o
*Ver Carta LXXIV*Ver Carta LXXIV
verdadeiro objetivo daquela lisonjeira solicitude, quis obrigar o novo apaixonado a escolher entre mim e o seu gosto dominante. Declarei que não jogava; de fato, ele encontrou, por seu lado, mil pretextos para não jogar. E o meu primeiro triunfo foi sobre o lansquené.
Tomei a meu cargo o bispo de... para ter com quem conversar; escolhi-o em virtude da sua ligação com o herói do dia, a quem eu queria dar toda a facilidade de me abordar. Ao mesmo tempo, sentia-me à vontade por ter uma testemunha respeitável que, em caso de necessidade, poderia depor sobre o meu comportamento e os meus propósitos. Esta combinação deu resultado.
Depois das conversas vagas do costume, Prévan, tendo-se tornado o guia da conversação, foi tomando diversos tons, para experimentar o que me poderia agradar. Recusei o do sentimento, como não acreditando nele; com o meu aspecto sério, fiz deter a sua jovialidade, que me pareceu demasiado ligeira para um início; baixou de tom, tomando o da amizade discreta; e foi sob esta bandeira vulgar que começamos o nosso recíproco ataque.
Na altura da ceia, o bispo não descia; Prévan ofereceu-me o braço e à mesa tomou naturalmente o lugar a meu lado. É preciso ser justo: soube sustentar com habilidade a nossa conversa particular, parecendo no entanto ocupar-se da conversa geral, da qual aparentemente ocupava o posto central. À sobremesa, falou-se de uma peça nova que na segunda-feira seguinte devia ir à cena no Teatro Francês. Afetei algum pesar por não ter marcado o meu camarote; ele ofereceu-me o seu, que recusei, como é da praxe; ao que ele respondeu muito agradavelmente que eu não tinha ouvido bem; que com certeza não faria o sacrifício do seu camarote a alguém que ele não conhecia, mas que somente me avisava de que a senhora Marechala disporia dele.
Ela prestou-se a este gracejo e eu aceitei.
Quando subimos ao salão, ele pediu, como pode imaginar, um lugar nesse camarote; e como a Marechala, que o trata com muita bondade, lho prometeu se ele tivesse juízo, aproveitou a ocasião para uma daquelas conversações de duplo sentido, para as quais tem um talento que o Visconde já me gabou. De fato, tendo-se posto de joelhos diante da Marechala, como uma criança submissa, dizia ele, sob o pretexto de lhe pedir a opinião e de implorar o seu auxílio, disse ainda muitas coisas lisonjeiras e ternas, as quais me era fácil supor que se dirigiam a mim.
Como havia ainda várias pessoas que não tomavam parte no jogo depois da ceia, a conversa foi mais geral e menos interessante; mas os nossos olhos falaram muito. Os nossos olhos, disse eu; mas deveria dizer os dele, pois os meus tiveram só uma linguagem, que foi a da surpresa. Ele teve ocasião para pensar que eu o admirava e me ocupava excessivamente do efeito prodigioso que causava sobre mim. Julgo que o deixei muito satisfeito; pelo meu lado, eu não estava menos contente.
Na segunda-feira seguinte, fui ao Teatro Francês, como tínhamos combinado. Apesar da sua curiosidade literária, caro Visconde, nada posso dizer-lhe do espetáculo, a não ser que Prévan tem um talento maravilhoso para o galanteio, e que a peça caiu; eis tudo o que lhe posso dizer. Era com pena que eu via findar o serão, que realmente me agradava muito. E para o prolongar, convidei a Marechala a vir cear comigo; o que me forneceu pretexto para propor o mesmo ao amável galanteador, que pediu apenas o tempo para ir, correndo, a casa das Condessas de B..., a fim de se libertar de um compromisso. Este nome reavivou toda a minha cólera; vi claramente que ele ia começar as confidências. Recordei-me dos seus prudentes conselhos e prometi a mim própria... continuar a aventura. Estava certa de que o emendaria de tão perigosa tendência.
Estranho ao meu grupo, que naquela noite era pouco numeroso, ele devia-me as atenções que são de uso neste caso. Por isso, quando fomos cear, ofereceu-me a mão. Eu tive a malícia, ao aceitá-la, de pôr na minha um ligeiro frêmito, e de conservar, enquanto andávamos, os olhos baixos e a respiração alta.
Tinha o aspecto de pressentir a minha derrota e de temer o meu vencedor. Ele notou-o à maravilha; e logo o traidor mudou de tom e de maneira. De galanteador, tornou-se meigo. Os propósitos que me dirigia eram mais ou menos os mesmos: as circunstâncias forçavam-no a isso. Mas o seu olhar, que se tornara menos vivo, era mais acariciador; as inflexões da sua voz, mais doces; o seu sorriso já não era o da finura, mas o da satisfação.
Enfim, nas palavras, em que pouco a pouco se extinguia o fogo de início, o espírito deu lugar à delicadeza. E agora quero perguntar-lhe: faria melhor do que isto?
Pelo meu lado, dei-me ares de pensativa, a tal ponto que, sendo forçado a notá-lo, mo censurou. Tive então a habilidade de me defender desastradamente e de lançar sobre Prévan um olhar rápido, mas tímido e confundido, de propósito para o levar a crer que todo o meu receio era que ele adivinhasse a causa da minha preocupação.
Depois da ceia, aproveitei a ocasião em que a boa Marechala contava uma das histórias que conta sempre, para me recostar na otomana, naquela atitude de abandono que se presta aos sonhos ternos. Não me desagradava que Prévan me visse assim; de fato, ele honrou-me com uma atenção particular. O Visconde imagina decerto que os meus tímidos olhares não ousavam buscar os do meu vencedor; mas, dirigidos para ele da maneira mais humilde, logo me deram a certeza de que eu obtinha o efeito que pretendia produzir. Faltava ainda persuadi-lo de que o mesmo encantamento me penetrava; por isso, quando a Marechala anunciou que ia retirar-se, exclamei numa voz terna e indolente: "Oh! Meu Deus! E eu estava aqui tão bem!" Todavia levantei-me; mas, antes de me separar dela, perguntei-lhe quais os seus projetos para ter um pretexto de lhe dizer os meus e de dar a saber que estaria em minha casa no dia posterior ao seguinte.
Separámo-nos por fim.
Então, pus-me a refletir. Não duvidava que Prévan aproveitasse a espécie de entrevista que eu acabava de lhe marcar; que viesse bastante cedo para me encontrar só, e que me atacasse com vivacidade. Mas estava certa também de que, dada a minha reputação, ele me não trataria com aquela ligeireza que, por pouco hábito que se tenha, se emprega apenas com as mulheres dadas à aventura ou com as que não têm experiência; e tinha a vitória certa se ele pronunciasse a palavra amor, ou sobretudo se tivesse a pretensão de a obter de mim.
É tão cômodo ter de lidar com as pessoas de princípios!
Algumas vezes é um pobre diabo apaixonado que nos desconcerta pela sua timidez, ou nos atordoa com os seus fogosos transportes; é uma febre que, como a outra, dá ardor e calafrios, e algumas vezes varia nos sintomas. Mas adivinha-se tão facilmente quando o plano é traçado de antemão! A chegada, a atitude, o tom, as palavras, tudo isso eu conhecia desde a véspera.
Não lhe descreverei por isso a nossa conversação, que o Visconde adivinha facilmente. Note apenas que, na minha fingida defesa, eu ajudava-o tanto quanto podia; embaraço, para lhe dar tempo a que falasse; razões más, para que pudessem ser combatidas; receio e desconfiança, para provocar os protestos; e da sua parte o perpétuo estribilho; peço-lhe apenas uma palavra; e da minha um silêncio, comunicando-lhe uma expectativa que fazia crescer o seu desejo; e, através de tudo isso, a mão que se toma cem vezes, que se retira sempre e nunca se recusa. Poderia passar-se assim um dia: passamos uma hora mortal. Estaríamos talvez ainda nisso se não ouvíssemos o ruído de uma carruagem entrando no pátio. Esse feliz contratempo tornou, como é natural, as suas instâncias mais vivas; e eu, vendo chegado o momento em que já nada me podia surpreender, depois de me ter preparado para um longo suspiro, concedi a preciosa palavra.
Começaram a ser anunciadas as visitas e pouco depois rodeava-nos numerosa sociedade.
Prévan pediu-me para vir no dia seguinte de manhã e eu consenti; mas, cuidando da minha defesa, ordenei à criada de quarto que durante a visita ficasse no meu quarto de dormir, donde, como sabe, se vê tudo o que se passa no quarto de vestir, e foi neste que o recebi. O diálogo correu livremente, e como ambos tínhamos o mesmo desejo, breve nos pusemos de acordo; mas era preciso desfazer-nos daquele espectador importuno; era aí que eu queria chegar.
Então, pintando-lhe a meu belo prazer o quadro da minha vida interior, persuadi-o facilmente de que não chegaríamos a encontrar um momento de liberdade, que devíamos olhar como uma espécie de milagre aquele de que tínhamos gozado na véspera, e que ainda assim tivera perigos excessivos para que eu me expusesse a eles, pois a todo o instante alguém poderia entrar no salão. Não me esqueci de acrescentar que os hábitos da minha casa estavam assim estabelecidos porque, até ao presente, nunca me tinham contrariado; e insisti ao mesmo tempo na impossibilidade de os mudar, porque seria comprometer-me aos olhos dos meus servidores. Ele simulou entristecer, ficar amuado, dizer-me que era bem frágil o meu amor; e o Visconde adivinha quanto tudo aquilo me comovia! Mas, querendo vibrar o golpe decisivo, chamei as lágrimas em meu socorro.
Foi exatamente o Zaire, vous pleurezl. Julgando dominar-se, e na esperança, afetou estar possuído de todo o amor de Orosmane. Passado o lance teatral, voltamos às combinações. Não podendo ser durante o dia, pensamos escolher uma noite. Mas o meu porteiro tornava-se um obstáculo intransponível e eu fui de opinião que não se podia pensar em suborná-lo.
Ele propôs-me a pequena porta do jardim: mas eu tinha-o previsto e inventei um cão que, manso e silencioso de dia, era um verdadeiro demônio durante a noite. A facilidade com que eu entrava em todos aqueles pormenores era de molde a excitá-lo, o que deu em resultado propor-me o expediente mais ridículo, e foi esse que eu aceitei.
Primeiro falou-me dum criado dele, que era tão discreto como ele próprio: nisto não me enganava Prévan, pois, em tal matéria, patrão e criado valiam o mesmo. Eu daria uma grande ceia em minha casa, à qual ele seria convidado. Chegado o momento, despedir-se-ia, simulando sair só.
O hábil confidente chamaria a carruagem, abriria a porta; e ele, Prévan, em vez de subir, esquivar-se-ia com destreza. O cocheiro não chegaria a dar por nada; deste modo todos julgariam que ele tinha saído, e entretanto, reentrando em minha casa, tratar-se-ia apenas de conhecer o caminho mais curto para o meu quarto. Confesso que a minha primeira dificuldade foi de encontrar, contra tal projeto, razões suficientemente más para que ele tivesse a pretensão de as destruir. Ele respondeu dando-me exemplos; segundo ele, não havia processo mais vulgar. Já várias vezes se servira dele. Era mesmo o de que fazia mais uso, como o menos perigoso.
Subjugada por estas razões irrespondíveis, revelei-lhe, cheia de candura, que havia uma escada secreta que conduzia perto do meu quarto de vestir; eu deixaria ficar a chave na porta e ser-lhe-ia possível entrar e esperar, sem grandes riscos, que as criadas se recolhessem; e, para dar maior verossimilhança ao meu consentimento, exigia que o momento do encontro fosse, sem discussão, de uma submissão perfeita. Era preciso ter juízo, oh! muito juízo! Enfim, eu queria apenas provar-lhe o meu amor, mas não satisfazer o seu.
A saída, esquecia-me dizer-lhe, seria pela pequena porta do jardim; bastava esperar o romper do dia, o cão não daria sinal.
Àquela hora não passava vivalma, os criados estariam no sono mais profundo. Não se admire de tanto raciocínio disparatado; pense na nossa situação recíproca. Que necessidade tínhamos de uma melhor combinação? Ele queria apenas que tudo viesse a saber-se, eu estava certa de que ninguém o saberia. Combinamos para o dia posterior ao seguinte.
Repare o Visconde que era um assunto combinado, e que ninguém tinha ainda visto Prévan na minha companhia. Encontro-o a cear em casa de uma das minhas amigas, ele oferece-me o seu camarote para uma peça nova, eu aceito nele um lugar.
Convido a minha amiga a cear, durante o espetáculo e diante de Prévan; quase não posso dispensar-me de o convidar. Ele aceita e, dois dias depois, faz-me a visita exigida pelas boas normas. É certo que volta a visitar-me no dia seguinte de manhã; mas, além de que as visitas de manhã não contam, só eu podia julgar esta demasiado apressada. De fato, coloco-o no número das pessoas que me estão menos ligadas, com um convite escrito para uma ceia de cerimônia. Posso bem dizer como Annette e, todavia, eis tudo! Chegado o dia fatal, o dia em que eu devia perder a minha virtude e a minha reputação, dei as minhas instruções à fiel Vitória e ela pô-las em execução como vai ver.
Entretanto, chegou a noite. Tinham já entrado muitos convidados, quando anunciaram Prévan. Recebi-o fazendo notar a polidez que havia entre nós. Coloquei-o ao lado da Marechala, como acentuando que era por intermédio dela que nos tínhamos conhecido. A ceia não produziu mais do que um bilhetinho, que o discreto apaixonado encontrou meio de me entregar, e que queimei conforme o meu costume. Anunciava-me que podia contar com ele; e esta palavra essencial era rodeada de todas as palavras parasitas, como amor, felicidade, etc., que nunca faltam a festas desta natureza.
À meia-noite, terminados os jogos, propus uma curta macedônia*.
O meu duplo projeto era favorecer a evasão de Prévan e ao mesmo tempo torná-la notada, o que não podia deixar de acontecer, dada a sua reputação de jogador. Por outro lado, todos viriam a lembrar-se de que eu não tivera pressa de ficar só.
O jogo durou mais do que eu pensara. O diabo tentava-me e eu sucumbia ao desejo de ir consolar o impaciente prisioneiro.
Encaminhava-me para a minha perda, quando refleti que, logo que inteiramente me rendesse, deixaria de ter sobre ele o domínio bastante para o manter vestido com a decência necessária aos meus projetos. Tive a força de resistir. Retrocedi e voltei, bastante aborrecida; *Algumas pessoas ignoram talvez que uma macedônia é um conjunto de vários jogos de azar, entre os quais cada jogador tem o direito de escolher quando lhe pertence dar cartas. É uma das invenções do século.
a retomar o meu lugar naquele jogo que não findava mais. Por fim lá acabou, e todos se foram embora.
Ficando só, chamei as criadas, despi-me muito depressa, e despedi-as.
Está a ver-me, Visconde, vestida ligeiramente, caminhando com passo tímido e circunspeto, e com a mão mal segura abrir a porta ao meu vencedor? Mal que me viu, o relâmpago não seria mais rápido. Que digo eu? Fui vencida, absolutamente vencida, antes de ter podido dizer uma palavra para o deter ou me defender. Ele quis em seguida tomar uma situação mais cômoda e mais adequada às circunstâncias. Amaldiçoava o vestuário que, dizia ele, o afastava de mim, e queria combater-me com armas iguais. Mas a minha extrema timidez opôs-se ao projeto, e as minhas ternas carícias não lhe deram tempo. Ocupou-se de outra coisa.
Os seus direitos eram a dobrar e as suas pretensões voltaram.
Então eu disse-lhe: "Escute: até aqui teve assunto para uma agradável narrativa a fazer às duas Condessas de B... , e a muitas outras; mas eu gostaria de saber como lhes vai contar o fim desta aventura." Ao falar assim, puxei o cordão da campainha com toda a força. Chegara a minha vez e o gesto foi mais rápido do que a sua resposta. Mal tinha ainda balbuciado, quando ouvi Vitória acudir, e chamar os criados que escondera no seu quarto, como eu lhe ordenara. Então, tomando o meu tom de rainha, continuei, elevando a voz: "Saia, senhor, e não torne a aparecer diante de mim." Neste momento, o grupo dos criados entrou.
O pobre Prévan perdeu a cabeça e, julgando ver uma cilada no que era no fundo apenas um gracejo, levou a mão à espada.
Foi o mal que fez, pois um dos meus criados, vigoroso e valente, agarrou-o pelo meio do corpo e derrubou-o. Confesso que senti um terror mortal. Gritei-lhes que parassem e ordenei que lhe deixassem livre a retirada, certificando-se apenas se ele saía da minha casa. Os criados obedeceram, mas entre eles era grande o rumor. Indignavam-se que alguém tivesse faltado ao respeito à sua virtuosa senhora. Todos acompanharam o infeliz cavaleiro, com algazarra e escândalo, como eu desejava. Só Vitória ficou e ocupamo-nos durante esse tempo a reparar a desordem do meu leito.
Os criados tornaram a subir sempre em tumulto; e eu, ainda muito emocionada, perguntei-lhes por que felicidade estavam ainda todos levantados; respondeu-me Vitória, contando que tinha dado de cear a suas das suas amigas, que tinham feito festa no quarto delas, enfim, tudo o que tínhamos combinado.
Agradeci a todos e mandei-os retirar, ordenando a um deles que fosse imediatamente chamar o meu médico. Pareceu-me que estava autorizada a temer o efeito do meu susto mortal; além disso, era um meio seguro de dar curso e celebridade à aventura.
O médico veio de fato, lamentou-me, e ordenou-me repouso.
Depois, ordenei a Vitória que logo de manhã fosse tagarelar com a vizinhança.
Tudo decorreu tão bem que, antes do meio-dia e assim que consenti que abrissem as janelas do meu quarto, já tinha à cabeceira uma das minhas vizinhas, muito devota, para saber a verdade e os pormenores daquela horrível aventura. Fui obrigada a desolar-me com ela, durante uma hora, sobre a corrupção destes tempos. Um momento depois recebi da Marechala o bilhete que junto aqui. Por fim, antes das cinco horas, vi chegar, com grande espanto meu, o senhor*... Vinha, segundo me disse, apresentar-me as suas desculpas, por um oficial do seu regimento ter podido faltar-me ao respeito a tal ponto. Soubera-o quando estava jantando em casa da Marechala e tinha imediatamente mandado ordem a Prévan para que se entregasse à prisão.
Pedi que lhe perdoasse e ele recusou. Pensei então que, para lhe dar a minha cumplicidade, era preciso resignar-me pelo meu lado e afetar uma atitude rígida. Mandei fechar a minha porta e dizer que estava incomodada.
É à minha solidão que o Visconde deve esta longa carta.
Escreverei uma a Madame de Volanges, que com certeza há de fazer leitura pública, e onde verá esta história tal como deve ser contada.
Esquecia-me de dizer que Belleroche está indignado, e quer absolutamente bater-se com Prévan. Pobre rapaz! Felizmente terei tempo de lhe acalmar os nervos. Enquanto espero, vou repousar os meus, que estão fatigados de escrever.
Adeus, Visconde.

25 de Setembro de 17* *, à noite.

Trecho de "As ligações perigosas" de Choderlos de Laclos

5 comentários:

  1. Gente li recentemente esse livro e adorei, acho que todo mundo devia ler! (Desculpem-me o tamanho da postagem,mas essa carta é o máximo!, tinha que colocá-la todas pra fazer sentido)

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  2. Esse livro é um super clássico, Lu! Dá pra entender a dificuldade de economizar! hahahah Muito, muito bom!

    "Os nossos olhos, disse eu; mas deveria dizer os dele, pois os meus tiveram só uma linguagem, que foi a da surpresa. Ele teve ocasião para pensar que eu o admirava e me ocupava excessivamente do efeito prodigioso que causava sobre mim."
    A linguagem do olhar é capaz de tudo! Adorei!

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  3. Não li o livro, mas vi o filme e amei!!Pura crocodilagem nessa historia!!

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  4. Ahh, eu amei essa marquesa! Super dissimulada, calculista, cheia de estratégias e artimanhas pra conseguir o que quer.
    Tenho MUITA vontade de ler esse livro desde o 1º semestre, o Sobral sempre falava dele como exemplo de "romance epistolar" :)

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