sexta-feira, 9 de julho de 2010

Clarice no deserto.




"A leitura de Clarice é devassadora – e não é por outro motivo que muitos falam em bruxaria, ou possessão. É uma leitura que atormenta, porque pega o leitor ali onde ele se encontra mais frágil: em sua fé desamparada naquilo que lê.

Parece inevitável, embora seja um grande engano, pensar em narradores mais intimistas quando se fala da influência de Clarice. Será mesmo Clarice uma escritora intimista? Em A hora da estrela ela se desdobra em um “escritor”, Rodrigo S. M., para discutir sua posição, suas dúvidas, suas inquietações em relação à literatura. Mas isso é bem diferente de falar de si, ou de se confessar. O problema é que Clarice, para escrever, ela se colocava à borda de um abismo: desde esse extremo, ela divisa um mundo que se abre, diante dela, como um grande enigma.

Não há intimismo nisso - há, muito mais, um sair de si. Ainda que ela se visse sempre (e essa é sua danação de escritora) presa a si e às próprias palavras. Seu estilo é arrebentar com a marca dos estilos; sua marca, se é que podemos falar de uma (como nas confecções e nos carimbos), está na explosão da própria marca.

Clarice escrevia para ultrapassar as fronteiras do literário; escrevia, como ela mesma dizia, “por necessidade atroz”, e não porque desejasse seguir uma carreira, ou se consagrar. Sendo assim, seus descendentes, se é que eles existem, deveriam ser escritores capazes de dar o mesmo salto no escuro. De se lançar no abismo da escrita, dispostos não a fazer isso ou aquilo, não a cumprir tarefas, ou a seguir roteiros de consagração, ou mesmo a imitá-la. Mas, ao contrário, a se desprender de si mesmos e se libertar do que são.

[...] Clarice é uma escritora que nos leva para o deserto. Como o filósofo Jean-Jacques Rousseau em suas célebres Meditações de um caminhante solitário, ela poderia dizer: “Eis-me aqui pois, sozinho na terra, sem nenhum irmão, companheiro, amigo ou companhia além de eu mesmo”. E ainda, imitando Rousseau, se perguntar: “Mas eu, desligado de todos eles, quem sou eu?” Clarice Lispector, quem sabe, é só um personagem criado por Clarice Lispector. Uma hipótese assustadora, que exacerba mais ainda sua solidão."

Trecho do ensaio Clarice no deserto, de José Castello.

5 comentários:

  1. "ela se colocava à borda de um abismo: desde esse extremo, ela divisa um mundo que se abre, diante dela, como um grande enigma"
    Gente, gostei muito! Dani, vc sabe se tem esse ensaio completo disponível na internet?

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  2. Tem sim, Mel e ele é bem pequeno: http://www.claricelispector.com.br/artigos_joseCastelo.aspx
    Eu uso muito o site oficial dele, pois tenho medo de informações não confiáveis!

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  3. "A leitura de Clarice é devassadora – e não é por outro motivo que muitos falam em bruxaria, ou possessão. É uma leitura que atormenta, porque pega o leitor ali onde ele se encontra mais frágil: em sua fé desamparada naquilo que lê"
    Não tem como não se encantar, se emocionar e pensar sobre a vida ao ler Clarice. Estamos todas apaixonadas, já repararam? Clarice faz isso com as pessoas!

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  4. De fato, é uma leitura que atormenta, pq faz a gente pensar sobre tantas coisas da vida... é incrível!

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