quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Da individuação ao universal

A referência ao social não deve levar para fora da obra de arte, mas sim levar mais fundo para dentro dela. É isso o que se deve esperar, e até a mais simples reflexão caminha nesse sentido. Pois o teor [Gehalt] de um poema não é a mera expressão de emoções e experiências individuais. Pelo contrário, estas só se tornam artísticas quando, justamente em virtude da especificação que adquirem ao ganhar forma estética, conquistam sua participação no universal. Não que aquilo que o poema lírico exprime tenha de ser imediatamente aquilo que todos vivenciam. Sua universalidade não é uma volonté de tous, não é da mera comunicação daquilo que os outros simplesmente não são capazes de comunicar. Ao contrário, o mergulho no individuado eleva o poema lírico ao universal por tornar manifesto algo de não distorcido, de não captado, de ainda não subsumido, anunciando desse modo, por antecipação, algo de um estado em que nenhum universal ruim, ou seja, no fundo algo particular, acorrente o outro, o universal humano. A composição lírica tem esperança de extrair, da mais irrestrita individuação, o universal. O risco peculiar assumido pela lírica, entretanto, é que seu princípio de individuação não garante nunca que algo necessário e autêntico venha a ser produzido. Ela não tem o poder de evitar por completo o risco de permanecer na contingência de uma existência meramente isolada. [...] Esse pensamento, porém, a interpretação social da lírica, como aliás de todas as obras de arte, não pode portanto ter em mira, sem mediação, a assim chamada posição social ou a inserção social dos interesses das obras ou até de seus autores. Tem de estabelecer, em vez disso, como o todo de uma sociedade, tomada como unidade em si mesma contraditória, aparece na obra de arte; mostrar em que a obra de arte lhe obedece e em que a ultrapassa. O procedimento tem de ser, conforme a linguagem da filosofia, imanente. Conceitos sociais não devem ser trazidos de fora às composições líricas, mas sim devem surgir da rigorosa intuição delas mesmas. [...] Permitam-me que tome como ponto de partida a própria desconfiança dos senhores, que sentem a lírica como oposto à sociedade, como algo absolutamente individual. A afetividade dos senhores faz questão de que isso permaneça assim, de que a expressão lírica, desvencilhada do peso da objetividade, evoque a imagem de uma vida que seja livre da coerção da práxis dominante, da utilidade, da pressão da autoconservação obtusa. Contudo, essa exigência feita à lírica, a exigência da palavra virginal, é em si mesma social. Implica o protesto contra uma situação social que todo indivíduo experimenta como hostil, alienada, fria e opressiva, uma situação que se imprime em negativo na configuração lírica: quanto mais essa situação pesa sobre ela, mais inflexivelmente a configuração resiste, não se curvando a nada de heterônimo e constituindo-se inteiramente segundo suas próprias leis. Seu distanciamento da mera existência torna-se a medida do que há nesta de falso e ruim. Em protesto contra ela, o poema enuncia o sonho de um mundo em que essa situação seria diferente. A idiossincrasia do espírito lírico contra a prepotência das coisas é uma forma de reação à coisificação do mundo, à dominação das mercadorias sobre os homens, que se propagou desde o início da Era Moderna e que, desde a Revolução Industrial, desdobrou-se em força dominante da vida. [...] em cada poema lírico devem ser encontrados, no medium do espírito subjetivo que se volta sobre si mesmo, os sedimentos da relação histórica do sujeito com a objetividade, do indivíduo com a sociedade. Esse processo de sedimentação será tanto mais perfeito quanto menos a composição lírica tematizar a relação entre o eu e a sociedade, quanto mais involuntariamente essa relação for cristalizada, a partir de si mesma, no poema (pp. 66-9 e 72).



ADORNO, Theodor. “Palestra sobre lírica e sociedade”, In: Notas de literatura I. São Paulo: Duas Cidades / Ed. 34, 2003.

4 comentários:

  1. Se alguém tiver paciência de ler tudo, vale a pena, hehehe. Post feito após uma tarde inteira dedicada à dialética!

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  2. conhecido dilema: história x natureza. há trechos aproveitáveis, mas o crítico peca tanto quanto os que crítica pela ênfase radical. Nem só de praxis, nem só de intuição se compõe a literariedade. Talvez um dia superemos essas velhas dicotomias. A parte a esta ponderação, a postagem é interessantíssima. Vale a pena ler.

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  3. Realmente é bem interessante. Acho que o que se pode aproveitar de Adorno,nesse caso, é o fato de os poemas (e por que não toda a produção literária?) são uma volta ao sujeito que se perdeu nesse cenário conturbado da modernidade :)

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  4. Morro de orgulho da minha coleguinha de PIBIC!

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