segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

O corpo e a culpa

Antes do triunfo do cristianismo na Europa não existia o conceito de compaixão ou de amor ao próximo, e ninguém teria imaginado também que o sofrimento físico fosse proveitoso para a alma. A idéia de negar o prazer com o propósito de desenvolver um estado superior de consicência já tinha sido formulada, porém não tinha grande aceitação popular. A filosofia espartana, baseada na severidade e na disciplina, só teve adeptos entre os guerreiros. Epicuro representava melhor a tendência da sua época: a terra e tudo o que ela contém foram criados pelos deuses para uso e gozo dos homens... bem, às vezes das mulheres. Nas culturas grega e romana o prazer era um fim em si mesmo, de forma alguma um vício que depois fosse preciso expiar. As classes altas viviam no ócio, completamente alheias ao sentido de culpa, pois o trabalho não era virtude mas fatalidade, indiferentes à sorte dos menos afortunados e rodeadas de escravos que podiam atormentar à vontade. [...] Durante a Idade Média, a arte, o luxo e a beleza transformaram-se em motivos de suspeita; o deleite passou a ser fonte de culpa e o próprio corpo tornou-se inimigo da alma que abrigava. O sofrimento nesta vida era a forma mais segura de se alcançar eterno regozijo na próxima. [...] É claro que houve exceções, elas sempre existem entre os ricos e os sábios: alguns nobres e prelados da Igreja que nunca abdicaram da boa mesa e das belas mulheres; também viajantes que haviam descoberto as maravilhas do Oriente nas Cruzadas e regressaram com o gosto pelas especiarias exóticas, pelos perfumes, pelas ciências e pelas artes esquecidas desde a época do Império Romano, mas esses refinamentos ficaram relegados a algumas sibaritas das classes dominantes. A grande massa humana vivia na miséria, na ignorância e no medo. O hedonismo dos gregos e romanos, que consideravam o prazer como o fim supremo da existência, foi substituído pela sombria crença de que o mundo é um lugar de expiação, um vale de lágrimas onde as almas têm de se esforçar e sofrer martírios para ganhar um paraíso hipotético.

Trecho do livro Afrodite: contos, receitas e outros afrodisíacos, de Isabel Allende.

4 comentários:

  1. Reconheço que tenho fortes tendências hedonistas... adoro ser feliz!

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  2. Isabel Allende gosta de celebrar a a paixão, o amor, o sexo, a boa comida, a boa bebida!!Seus livros sao apaixonantes!!

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  3. Esse livro parece ser enriqueçedor! Preciso começar a ler Isabel Allende logo!

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  4. Eu preciso despertar minhas tendências hedonistas hehe

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