quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Um tédio muito distinto

Pois não é que quis descansar as costas por um dia? Sabia que se falasse isso ao chefe ele não acreditaria que lhe doíam as costelas. Então valeu-se de uma mentira que convence mais que a verdade: disse ao chefe que no dia seguinte não poderia trabalhar porque arrancar um dente era muito perigoso. E a mentira pegou. Às vezes só a mentira salva. Então, no dia seguinte, quando as quatro Marias cansadas foram trabalhar, ela teve pela primeira vez na vida uma coisa a mais preciosa: a solidão. Tinha um quarto só para ela. Mal acreditava que usufruía o espaço. E nem uma palavra era ouvida. Então dançou num ato de absoluta coragem, pois a tia não a entenderia. Dançava e rodopiava porque ao estar sozinha se tornava: l-i-v-r-e! Usufruía de tudo, da arduamente conseguida solidão, do rádio de pilha tocando o mais alto possível, da vastidão do quarto sem as Marias. Arrumou, como pedido de favor, um pouco de café solúvel com a dona dos quartos, e, ainda como favor, pediu-lhe água fervendo, tomou tudo se lambendo e diante do espelho para nada perder de si mesma. Encontrar-se consigo própria era um bem que ela até então não conhecia. Acho que nunca fui tão contente na vida, pensou. Não devia nada a ninguém e ninguém lhe devia nada. Até deu-se ao luxo de ter tédio - um tédio até muito distinto.

Trecho de A hora da estrela, de Clarice Lispector.

5 comentários:

  1. É tão bom sentir essa liberdade que a privacidade nos dá... Ahhh, Clarice é divina até para descrever o tédio!

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  2. Gente, esse livro é fascinante, né? Quero muito ler de novo!

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  3. Incrível como da primeira vez que li este livro, aos 15 anos, não gostei nada nada... Mas na releitura feita na faculdade fiquei APAIXONADA!

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  4. Eu resolvi dar uma olhadinha nele pra selecionar uns trechos pro blog e quase que reli o livro todinho! Na época que a gente leu eu fiquei fissurada nele, meu livro tá todo cheio de anotações das aulas do Hermenegildo. Apesar de pequeno, A hora da estrela toca em questões muito profundas...

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