terça-feira, 17 de agosto de 2010

"A guerra é feita pelas nossas mãos ..."

Lamento do Oficial por seu Cavalo Morto
Cecília Meireles

Nós merecemos a morte, porque somos humanos
e a guerra é feita pelas nossas mãos,
pela nossa cabeça embrulhada em séculos de sombra,
por nosso sangue estranho e instável, pelas ordens
que trazemos por dentro, e ficam sem explicação.

Criamos o fogo, a velocidade, a nova alquimia,
os cálculos do gesto,
embora sabendo que somos irmãos.
Temos até os átomos por cúmplices, e que pecados
de ciência, pelo mar, pelas nuvens, nos astros!
Que delírio sem Deus, nossa imaginação!

E aqui morreste!

Oh, tua morte é a minha, que, enganada, recebes.
Não te queixas. Não pensas. Não sabes.
Indigno, ver parar, pelo meu, teu inofensivo coração.
Animal encantado - melhor que nós todos!
Que tinhas tu com este mundo dos homens?

Aprendias a vida, plácida e pura, e entrelaçada
em carne e sonho, que os teus olhos decifravam...

Rei das planícies verdes, com rios trêmulos de relinchos...

Como vieste morrer por um que mata seus irmãos!

3 comentários:

  1. Me lembrei desse poema, um dos últimos do Romanceiro:

    Romance LXXXIV ou dos Cavalos da Inconfidência

    Eles eram muitos cavalos,
    ao longo dessas grandes serras,
    de crinas abertas ao vento,
    a galope entre águas e pedras.
    Eles eram muitos cavalos,
    donos dos ares e das ervas,
    com tranqüilos olhos macios,
    habituados às densas névoas,
    aos verdes prados ondulosos,
    às encostas de árduas arestas,
    à cor das auroras nas nuvens,
    ao tempo de ipês e quaresmas.

    Eles eram muitos cavalos
    nas margens desses grandes rios
    por onde os escravos cantavam
    músicas cheias de suspiros.
    Eles eram muitos cavalos
    e guardavam no fino ouvido
    o som das catas e dos cantos,
    a voz de amigos e inimigos,
    - calados, ao peso da sela,
    picados de insetos e espinhos,
    desabafando o seu cansaço
    em crepusculares relinchos.


    Eles eram muitos cavalos,
    - rijos, destemidos, velozes -
    entre Mariana e Serro Frio,
    Vila Rica e Rio das Mortes.
    Eles eram muitos cavalos,
    transportando no seu galope
    coronéis, magistrados, poetas,
    furriéis, alferes, sacerdotes.
    E ouviam segredos e intrigas,
    e sonetos, liras e odes:
    testemunhas sem depoimento,
    diante de equívocos enormes.


    Eles eram muitos cavalos,
    entre Mantiqueira e Ouro Branco
    desmanchado o xisto nos cascos,
    ao sol e à chuva, pelos campos,
    levando esperanças, mensagens,
    transmitidas de rancho em rancho.
    Eles eram muitos cavalos,
    entre sonhos e contrabandos,
    alheios às paixões dos donos,
    pousando os mesmos olhos mansos
    nas grotas, repletas de escravos,
    nas igrejas, cheias de santos.


    Eles eram muitos cavalos:
    e uns viram correntes e algemas,
    outros, o sangue sobre a forca,
    outros, o crime e as recompensas.
    Eles eram muitos cavalos:
    e alguns foram postos à venda,
    outros ficaram nos seus pastos,
    e houve uns que, depois da sentença
    levaram o Alferes cortado
    em braços, pernas e cabeça.
    E partiram com sua carga
    na mais dolorosa inocência.


    Eles eram muitos cavalos.
    E morreram por esses montes,
    esses campos, esses abismos,
    tendo servido a tantos homens.
    Eles eram muitos cavalos,
    mas ninguém mais sabe os seus nomes
    sua pelagem, sua origem...
    E iam tão alto, e iam tão longe!
    E por eles se suspirava,
    consultando o imenso horizonte!
    - Morreram seus flancos robustos,
    que pareciam de ouro e bronze.


    Eles eram muitos cavalos.
    E jazem por aí, caídos,
    misturados às bravas serras,
    misturados ao quartzo e ao xisto,
    à frescura aquosa das lapas,
    ao verdor do trevo florido.
    E nunca pensaram na morte.
    E nunca souberam de exílios.
    Eles eram muitos cavalos,
    cumprindo seu duro serviço.
    A cinza de seus cavaleiros
    neles aprendeu tempo e ritmo,
    e a subir aos picos do mundo...
    e a rolar pelos precipícios...

    Cecília Meireles

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  2. Tava faltando um pouco de Cecília por aqui!

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  3. Nossa, adorei esse trecho do Romanceiro, Mel. Achei bem forte e cinematográfico. Ao ler, dá pra vizualizar bem as imagens. Muito bom! Deu até vontade de ler o livro todo!

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