sexta-feira, 8 de julho de 2011

Demasiada alma



"- Queimadura de alma!

Nosso velho pai tinha a sua explicação para os achaques: demasiada alma. Doença que se apanha na cidade, concluia. E resmungava, dedo em riste:

- Foi onde seu irmão apanhou essa porcaria. Foi lá, na maldita cidade.

A terapêutica era simples e eficaz. De cada vez que Ntunzi sofresse de convulsões, meu pai assentava-lhe os dois joelhos sobre o peito e, usando os dedos como gumes de faca, aplicava sobre a garganta uma pressão crescente. Parecia que o ia asfixiar mas, de repente, meu irmão vazava como um balão furado, os ares fluindo pelos lábios que emitiam um ruído parecido com o relinchar da jumenta Jezibela. Quando Ntunzi já estava vazio, meu pai se inclinava até lhe roçar o rosto, e sussurrava, solene:

- Este é o sopro da vida.

Aspirava uma generosa golfada de ar e soprava forte sobre a boca de Ntunzi. E quando o filho já estrebuchava, ele concluía triunfante:

- Eu é que vos pari."

Antes de nascer o mundo, Mia Couto.

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