quarta-feira, 6 de julho de 2011

A terra são braços e abraços




" Aproximado ainda dormiu conosco essa noite. Antes de ele adormecer, aproximei-me do seu leito, decidido a fazer uma confissão:

- Tio, eu acho que a culpa é minha.

-Culpa de quê?

-Fui eu que fiz adoecer Ntunzinho.

A minha culpa era a seguinte: eu tinha feito coro com seu desejo de matarmos nosso velho. A mão redonda de Aproximado pousou na minha cabeça e ele sorriu com bondade:

- Vou lhe contar uma história.

E falou de um certo pai que não sabia dar tamanho ao amor pelo seu filho. Certa vez registrou-se um incêndio no casebre em que viviam. O homem pegou no menino ao colo e se afastou da tragédia, caminhando pela noite fora. Deve ter superado o limite deste mundo pois quando, por fim, decidiu colocá-lo no chão, reparou que já não havia terra. Restava um vazio entre vazios, rompidas nuvens entre desmaiados céus. Para si mesmo, o homem conclui:

- Agora, só no meu colo meu filho encontrará chão.

Nunca esse menino se apercebeu que o imenso território onde depois viveu, cresceu e fez filhos não era senão o regaço do seu velho progenitor. Muitos anos depois, quando abria a sepultura do pai, chamou o seu filho e lhe disse:

- Vê a terra, filho? Parece areia, pedras e torrões. Mas são braços e abraços.

Afaguei a mão do Tio, regressei ao meu leito para, durante toda a noite, não pregar o olho. Vigiava o pesado respirar de Ntunzi. E foi então que notei que ele estava regressando à vida. De súbito, as suas mãos tactearam o escuro à procura de algo. E soltou-se o gemido, quase adivinhado:

-Água!

Acudi, represando a emoção. Aproximado despertou e acendeu uma lanterna. O foco de luz se desviou de nós e foi errando pelo corredor. No instante seguinte, os três adultos entraram no quarto e se precipitaram sobre o leito de Ntunzi. A mão tremente de Silvestre buscou o rosto do filho e viu que não estava febril.

- O rio o salvou - exclamou Zacaria.

O militar se ajoelhou junto ao leito e tomou a mão de Ntunzi. Os outros dois adultos, Aproximado e Silvestre, ficaram de pé, enfrentando-se em silêncio. De rompante, eles se abraçaram. A lanterna tombou e apenas as suas pernas eram visíveis, em nervosos passos para trás e para adiante. Pela primeira vez, Silvestre tratou o cunhado por irmão:

- Desculpe, meu irmão.

- Se esse meu sobrinho morresse, você já não teria mais nenhum outro lugar para viver...

-Você sabe bem quanto eu cuido destes meninos. Os meus filhos são a minha última vida.

- Não é assim que você os ajuda.

Não é segurando nas asas que se ajuda um pássaro a voar. O pássaro voa simplesmente porque o deixam ser pássaro. Foi assim que falou o Tio Aproximado. E depois partiu, engolido pelo escuro."

Antes de nascer o mundo, Mia Couto.

2 comentários:

  1. Programei um ano dedicado ao Mia Couto e já estou no meu terceiro livro!Esse romance é lindo, li esse trecho ontem e precisava dividir essa beleza!!

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  2. Obrigada por compartilhar, Gabi! Puro lirismo esse trecho. Lindo demais.

    "- Agora, só no meu colo meu filho encontrará chão.

    Nunca esse menino se apercebeu que o imenso território onde depois viveu, cresceu e fez filhos não era senão o regaço do seu velho progenitor. Muitos anos depois, quando abria a sepultura do pai, chamou o seu filho e lhe disse:

    - Vê a terra, filho? Parece areia, pedras e torrões. Mas são braços e abraços."

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