segunda-feira, 28 de junho de 2010

Os ombros suportam o mundo



Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossege
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.


Drummond

6 comentários:

  1. Esse poema é tão triste, tão pessimista... é do livro Sentimento do mundo, escrito todo nesse clima.
    "És todo certeza, já não sabes sofrer". Prefiro o incerto, o duvidoso, a surpresa! Me lembrei do trecho de uma música do Lenine:

    Eu gosto é do inacabado
    O imperfeito, o estragado que dançou
    O que dançou...

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  2. Me lembrou Los Hermanos "eu gosto é do estrago".

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  3. alias, vale a pena a letra inteira da música "O velho e o moço" :
    "Deixo tudo assim
    Não me importo em ver a idade em mim,
    Ouço o que convém
    Eu gosto é do gasto.

    Sei do incômodo e ela tem razão
    Quando vem dizer, que eu preciso sim
    De todo o cuidado

    E se eu fosse o primeiro a voltar
    Pra mudar o que eu fiz,
    Quem então agora eu seria?

    Ahh, tanto faz
    Que o que não foi não é
    Eu sei que ainda vou voltar...
    Mas eu quem será?

    Deixo tudo assim,
    Não me acanho em ver
    Vaidade em mim
    Eu digo o que condiz.
    Eu gosto é do estrago.

    Sei do escândalo
    E eles têm razão
    Quando vêm dizer
    Que eu não sei medir
    Nem tempo e nem medo

    E se eu for
    O primeiro a prever
    E poder desistir
    Do que for dar errado?

    Ahhh
    Ora, se não sou eu
    Quem mais vai decidir
    O que é bom pra mim?
    Dispenso a previsão!

    Ah, se o que eu sou
    É também o que eu escolhi ser
    Aceito a condição

    Vou levando assim
    Que o acaso é amigo
    Do meu coração
    Quando fala comigo,
    Quando eu sei ouvir..."

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  4. Nossa! Esse poema é maravilhoso, apesar do pessimismo.

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  5. Eu AMO essa música dos Hermanos!! *_*

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  6. Esse é um dos meus poemas preferidos do Drummond.... e sobre a música, Los Hermanos sempre vale a pena!

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