quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Medos



"De repente, cessando a reflexão, fitou em mim os olhos de ressaca, e perguntou-me se tinha medo.

-Medo?

-Sim, pergunto se você tem medo.

-Medo de quê?

-Medo de apanhar, de ser preso, de brigar, de andar, de trabalhar...

Não entendi. Se ela tem me dito simplesmente:"Vamos embora!" pode ser eu obedecesse ou não; em todo o caso, entenderia. Mas aquela pergunta assim, vaga e solta, não pude atinar o que era.

-Mas... não entendo. De apanhar?

-Sim.

-Apanhar de quem? Quem é que me dá pancada?

Capitu fez um gesto de impaciência. Os olhos de ressaca não se mexiam e pareciam crescer. Sem saber de mimm e não querendo interrogá-la novamente, entrei a cogitar donde me viriam pancadas,e por quê, e também por que é que seria preso, e quem é que me havia de prender. Valha-me Deus!Vi de imaginação o aljube, uma casa escura e infecta. Também vi a presiganga, o quartel dos Barbonos e a Casa de Correção.Todas essas belas instituições sociais me envolviam no seu mistério, sem que os olhos de ressaca de Capitu me deixassem de crescer para mim, a tal ponto que as fizeram esquecer de todo.

O erro de Capitu foi não deixá-los crescer infinitamente, antes diminuir até as dimensões normais, e dar-lhe o movimento do costume. Capitu tornou ao que era, disse-me que estava brincando, não precisava afligir-me, e, com um gesto cheio de graça. bateu-me na cara, sorrindo, e disse:

-Medroso!

-Eu? Mas...

-Não é nada, Bentinho. Pois quem é que há de dar pancada ou prender você?Desculpe que eu hoje estou meio maluca; quero brincar, e ...

-Não, Capitu; você não está brincando; nesta ocasião, nenhum de nóstem vontade de brincar.

-Tem razão, foi só maluquice; até logo.

-Como até logo?

-Está-me voltando a dor de cabeça; vou botar uma rodela de limão nas fontes.

Fez o que disse, e atou o lenço outra vez na testa. Em seguida, acompanhou-me ao quintal para se despedir de mim; mas ainda aí nos detivemos por alguns minutos, sentados sobre a borda do poço. Ventava, o céu estava coberto. Capitu falou novamente da nossa separação, como de um fato certo e definitivo, por mais que eu, receoso disso mesmo, buscasse agora razões para animá-la. Capitu, quando não falava, riscava no chão, com um pedaço de taquara, narizes e perfis. Desde que se metera a desenhar, era uma de suas diversões; tudo lhe servia de papel e lápis. Como me lembrassem os nossos nomes abertos por ela no muro, quis fazer o mesmo no chão, e pedi-lhe a taquara. Não me ouviu ou não me atendeu."

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