quinta-feira, 31 de março de 2011

Olhos fechados


3 de abril de 1977, domingo

Não sei. Mas, neste momento, sei tudo o que não sei sem saber nomear. Olho, de olhos fechados, e sem memória; entrei numa comunicação deslumbrante e sem destino, revela-se-me uma tão profunda acuidade de lembrança, que em todo o lado estive
com toda a equidade.
Estive e estarei
sem viver o presente,
que é apenas miragem
e ilusão do tempo.
Minha emoção de cólera
se desfez em lágrimas
e ruga da boca.
Tua humildade me levanta,
e escolhe
entre tambores
e clamores de guerra,
nossas plantas também quotidianas.

Trecho de Um arco singular, Livro de horas II, de Maria Gabriela Llansol.

Básico


"Só preciso de alguns abraços queridos, a companhia suave, bate-papos que me façam sorrir, algum nível de embriaguez e a sincronicidade." Caio F. Abreu

Bom presságio


" Ônus


A esperança me chama,

e eu salto a bordo

como se fosse a primeira viagem.

Se não conheço os mapas,

escolho o imprevisto:

qualquer sinal é um bom presságio.


Seja como for, eu vou,

pois quase sempre acredito:

ando de olhos fechados

feito cirança brincando de cgea.

Mais de uma vez saio ferida

ou quase afogada,

mas não desisto.


A dor eventual é o preço da vida:

passagem, seguro e pedágio."


Para não dizer adeus, Lya Luft.

quarta-feira, 30 de março de 2011

flores amarelas e medrosas


Congresso Internacional do Medo

Carlos Drummond de Andrade


Provisoriamente não cantaremos o amor,

que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

terça-feira, 29 de março de 2011

Você


Você que tanto tempo faz

Você que eu não conheço mais

Você que um dia eu amei demais

Você que ontem me sufocou

De amor e de felicidade

Hoje, me sufoca de saudade

Você que já não diz pra mim

As coisas que eu preciso ouvir

Você que até hoje eu não esqueci

Você que eu tento me enganar

Dizendo que tudo passou

Na realidade, aqui em mim você ficou

Você que eu não encontro mais

Os beijos que já não lhe dou

Fui tanto pra você

E hoje nada sou

- Roberto Carlos

Desassossego


"Tantas vezes, tantas, como agora, me tem pesado sentir que sinto – sentir como angústia só por ser sentir, a inquietação de estar aqui, a saudade de outra coisa que se não conheceu, o poente de todas as emoções… Ah, quem me salvará de existir? Não é a morte que quero, nem a vida: é aquela outra coisa que brilha no fundo da ânsia…” O Livro do Desassossego, Fernado Pessoa

segunda-feira, 28 de março de 2011

Para Kikinha


Mesmo quando as vidas aparentam se afastar, o sentimento da gente pode ignorar a palavra despedida, tantas vezes apenas um faz-de-conta de tentativa de ida que, apesar de anunciar, não sabe mais como ir embora. Quando o encontro é bom e tem lume não tem porta de saída: é pra sempre, de um jeito ou de outros, no coração.


Ana Jácomo

sexta-feira, 25 de março de 2011

Quero mais


" Rosto com dois perfis


Renuncio às palvaras

e às explicações.

Ando pelos contornos,

onde todos os significados

são sutis, são mortais.


Não quero perder o momento belo

Quero vivê-lo mais,

com a intensidade que exige a vida:

desgarramento e fulguração.


Então me corto ao meio e me solto

de mim:

a que se prende e a que voa,

a que vive e a que se inventa.

Duplo coração:

a que se contempla e a que nunca

se entende,

a que viaja sem saber se chega

- mas não desiste jamais."


Para não dizer adeus, Lya Luft

quinta-feira, 24 de março de 2011

Enfermidades do espírito


A solidão e o tédio são as duas mais graves doenças de nossa época. Podem levar o homem ao desespero e ao suicídio. (Quem foi mesmo que escreveu que é o tédio que leva as nações à guerra?) São enfermidades do espírito a que estão sujeitas principalmente as pessoas sem fé. Porque não pode sentir-se só quem conta com Deus, a mais poderosa e confortadora presença do Universo. Não pode sucumbir ao tédio quem sabe apreciar em toda a sua riqueza, beleza e mistério o mundo e a vida que o Criador lhe deu.
.
Trecho de Do Diário de Sílvia, de Érico Veríssimo

Doce


"Então, que seja doce. Repito todas as manhãs, ao abrir as janelas para deixar entrar o sol ou o cinza dos dias, bem assim, que seja doce. Quando há sol, e esse sol bate na minha cara amassada do sono ou da insônia, contemplando as partículas de poeira soltas no ar, feito um pequeno universo; repito sete vezes para dar sorte: que seja doce que seja doce que seja doce e assim por diante. Mas, se alguém me perguntasse o que deverá ser doce, talvez não saiba responder. Tudo é tão vago como se fosse nada.”

Caio Fernando Abreu

quarta-feira, 23 de março de 2011

Serás o meu amor

Dueto

Chico Buarque


Consta nos astros, nos signos, nos búzios
Eu li num anúncio, eu vi no espelho, tá lá no evangelho, garantem os orixás
Serás o meu amor, serás a minha paz
Consta nos autos, nas bulas, nos dogmas
Eu fiz uma tese, eu li num tratado, está computado nos dados oficiais
Serás o meu amor, serás a minha paz


Mas se a ciência provar o contrário, e se o calendário nos contrariar
Mas se o destino insistir em nos separar
Danem-se os astros, os autos, os signos, os dogmas
Os búzios, as bulas, anúncios, tratados, ciganas, projetos
Profetas, sinopses, espelhos, conselhos
Se dane o evangelho e todos os orixás
Serás o meu amor, serás, amor, a minha paz


Consta na pauta, no Karma, na carne, passou na novela
Está no seguro, pixaram no muro, mandei fazer um cartaz
Serás o meu amor, serás a minha paz
Consta nos mapas, nos lábios, nos lápis
Consta nos Ovnis, no Pravda, na Vodca


Ouça aqui na voz de Chico e Nara Leão e aqui na voz de Chico e Paula Toller.

Perder e ganhar


" Perder, ganhar

Com as perdas só um jeito:

perdê-las.

Com os ganhos,

o proveito é saborear cada um

como uma fruta boa da estação



A vida, como um pensamento,

corre à frente dos relógios.

O ritmo das águas indica o roteiro

e me oferece um papel:

abrir o coração como uma vela

ao vento, ou pagar sempre a conta

já vencida."


Pra não dizer adeus, Lya Luft.

Um pouco de silêncio


"Nesta trepidante cultura nossa, da agitação e do barulho, gostar de sossego é uma excentricidade. Sob pressão do ter de parecer, ter de participar, ter de adquirir, ter de qualquer coisa, assumimos uma infinidade de obrigações. Muitas desnecessárias, outras impossíveis, algumas que não combinam conosco nem nos interessam.

Acuados pelo relógio, pelos compromissos, pela opinião alheia, disparamos sem rumo- ou em trilhas determinadas- feito hâmsteres que se alimentam de sua própria agitação.

O silêncio nos assusta por retumbar no vazio dentro de nós. Quando nada se move nem faz barulho, notamos as frestas pelas quais nos espiam coisas incômodas e mal resolvidas, ou se enxerga outro ângulo de nós mesmos. Nos damos conta de que não somos apenas figurinhas atarantadas correndo entre casa, trabalho e bar, praia ou campo.

Silêncio faz pensar, remexe águas paradas, trazendo à tona sabe Deus que desconserto nosso. Com medo de ver quem - ou o que - somos, adia-se o defrontamento com nossa alma sem máscaras.

Mas, se a gente aprende a gostar um pouco de sossego, descobre - em si e no outro - regiões nem imaginadas, questões fascinantes e não necessariamente ruins.

Então, por favor, me dêem isso: um pouco de silêncio bom para que eu escute o vento nas folhas, a chuva nas lajes, e tudo o que fala muito além das palavras de todos os textos e da música de todos os sentimentos."


Pensar é transgredir, Lya Luft.

terça-feira, 22 de março de 2011

Deleite


"Eu exercito o silêncio; que os versos de minhas leituras e orações encham-me de deleite. E quando o prazer de compreendê-los silencia minha língua, então, como num sonho, entro num estado em que meus sentidos e pensamentos ficam concentrados. Quando, então, com o prolongamento desse silêncio, o tumulto das lembranças acalma-se em meu coração, ondas incessantes de satisfação são-me enviadas por pensamentos interiores, superando expectativas, elevando-se subitamente para deleitar meu coração."
.
Frase de Santo Isaac, extraída do capítulo "Leitores Silenciosos". In: Uma História da Leitura, de Alberto Manguel.

A noite de ontem

4 de Abril de 1977, segunda, madrugada

Há quanto tempo não fazia amor? Cem dias, ano e meio, três anos?
A Lua, a mão é uma _______

Sento-me um pouco antes do fim do dia em frente da vela. Foi um dia inquieto em que o meu corpo parecia deitado ao vento. Por exemplo, ao querer acender a vela, apaguei o fósforo antes que tivesse irrompido a chama. Queria continuar a escrever A Restante Vida com a imensa felicidade de ontem, mas pequenos nadas me retiveram. Pensei no dia anterior, na noite do meu quarto em que perguntava, fazendo amor (que termos empregar?): "há quanto tempo não fazia eu amor?" E respondia a mim mesma: - "Cem dias, meio ano, ano e meio?" De qualquer modo, parecíamos outros. A. disse-me mais tarde que eram nossos corpos astrais que faziam amor, e eu creio que assim é, que assim seja. À hora do almoço veio alguém, e eu senti-me estranha e admirada. Por que não podia tomar-me quem vinha também por uma planta, um animal, uma outra qualquer coisa, além do meu próprio ser humano? É essa impossibilidade da maior parte das pessoas que, às vezes, me traz um grande mal-estar quando estou entre as pessoas. Eu sou múltipla, por isso desejo também tanto estar sozinha, ou seja, com meus restantes companheiros vivos.
Mas, voltando ao amor de ontem à noite, fazia Lua cheia e eu via-a, alto, para lá das cortinas e da janela. Olhei-a durante algum tempo, e pressentia que uma imensa liberdade de destino principiava a ser-me dada, porque nós todos nesta casa a tínhamos conseguido.
Desejo mortalmente continuar A Restante Vida. Mortalmente, porque se não continuar parece-me que morro. Mas agora vou jantar em frente da vela, aspirando à paz e à transparência da noite.
Da noite de ontem, recordo sobretudo o movimento circular da mão sobre o meu peito. O homem e a mulher tinham desaparecido, traçavam na minha pele um sinal de voo.


Trecho de Um Arco Singular, Livro de Horas II, de Maria Gabriela Llansol.

Tempo bom


"Um marinheiro me contou
Que a boa brisa lhe soprou
Que vem aí bom tempo
O pescador me confirmou
Que o passarinho lhe cantou
Que vem aí bom tempo

Do duro toda semana
Senão pergunte à Joana
Que não me deixa mentir
Mas, finalmente é domingo
Naturalmente, me vingo
Eu vou me espalhar por aí

No compasso do samba
Eu disfarço o cansaço
Joana debaixo do braço
Carregadinha de amor
Vou que vou
Pela estrada que dá numa praia dourada
Que dá num tal de fazer nada
Como a natureza mandou
Vou
Satisfeito, a alegria batendo no peito
O radinho contando direito
A vitória do meu tricolor
Vou que vou
Lá no alto
O sol quente me leva num salto
Pro lado contrário do asfalto
Pro lado contrário da dor

Um marinheiro me contou
Que a boa brisa lhe soprou
Que vem aí bom tempo
Um pescador me confirmou
Que um passarinho lhe cantou
Que vem aí bom tempo
Ando cansado da lida
Preocupada, corrida, surrada, batida
Dos dias meus
Mas uma vez na vida
Eu vou viver a vida
Que eu pedi a Deus"

Bom tempo, Chico Buarque.

Parar pra pensar


" Não lembro em que momento percebi que viver deveria ser uma permanente reinvenção de nós mesmos - para não morrermos soterrados na poeira da banalidade embora pareça que ainda estamos vivos.

Mas compreendi, num lampejo: então é isso, então é assim. Apesar dos medos, convém não ser demais fútil nem demais acomodada. Algumas vezes é preciso pegar o touro pelos chifres, mergulhar para depois ver o que acontece: porque a vida não tem de ser sorvida como uma taça que se esvazia, mas como o jarro que se renova a cada gole bebido.

Para reiventar-se é preciso pensar: isso aprendi muito cedo.

Apalpar, no nevoeiro de quem somos, algo que pareça uma essência: isso, mais ou menos, sou eu. Isso é o que eu queria ser, acredito ser, quero me tornar ou já fui. Muita inquietação por baixo das águas do cotidiano. Mais cômodo seria ficar com o travesseiro sobre a cabeça e adotar o lema reconfortante: ' Parar pra pensar, nem pensar ! '.


Pensar é transgredir, Lya Luft.

segunda-feira, 21 de março de 2011

16 de Maio de 1998


"Observar é o primeiro modo de escrever; o primeiro entre outros igualmente principais. Mas o que eu não quis ver – não escrevi."

Maria Gabriela Llansol

frágil e transparente


26 de Fevereiro de 1977, sábado

Admitamos que estou terrivelmente inquieta. Multiplico as coisas à minha volta para me securizar. Em vão. Tudo é excessivamente frágil e transparente. Alguém partindo de mim ajoelha sobre um véu diáfano colocado num solo sem solo, ou no ar, e espera. Tento ver mais longe, ou seja, num momento posterior, mas figura não se move, como se o tempo tivesse acabado; a figura inclina-se sobre o véu diáfano, toca com a cabeça o que está debaixo dela, o seu corpo repousa com a forma de um anel. Uma serpente aproxima-se, como o duplo desse corpo parado e investe sobre ele, mas apenas atinge o espaço circular vazio. A figura levanta-se, então, e cresce com aspecto de círio, de obelisco, ou chama. Uma voz pronuncia o seu nome, nome agudo que os meus ouvidos não atingem. Ao espaço em que agora habita o nada, a serpente regressa e ouve o nome. O som torna-se grinalda por cima da sua cabeça. Ataca com a língua voraz, mas as flores de Prunus Triloba Plena flutuam,
e recolhem-se
no lugar seguro da próxima Primavera.


Trecho do livro Um Arco Singular, Livro de Horas II, de Maria Gabriela Llansol.

Perfeito, nem pensar.


" Então, relacionamento perfeito, nem pensar.

Mas uma ligação de cumplicidade e ternura, de sensualidade e mistério, ah, essa eu acho que pode existir. Como todos os contratos (não falo dos de papel mas de corpo, coração e mente), esse precisa ser renovado de vez em quando: a gente tira o contrato da gaveta da alma, e discute. Briga talvez, chora, reclama, mas ainda ama, ainda deseja. Ainda quer o abraço, o passo no corredor, o corpo na cama, o olhar atento por cima da xícara de café... quer até a desorganização e a ruptura, para depois de novo o que é bom reconstruir.

Que seja vital: isso me parece uma boa parceria. Que seja dinâmica, seja lá o que isso significa em cada caso. Pelo menos, não acomodada; mas muito aconchegante.

Que seja sensual e amiga, essa ligação: se nao gosto do outro como ser humano, com seus defeitos, sua generosidade e egoísmo, força e fragilidade, se não o quereria como amigo... como então, mesmo com o tempero do desejo, posso me relacionar com ele para uma vida a dois?

O tema é quase infinito: pois cada caso é um caso, como cada casal é um casal, e cada fase da vida do indivíduo ou dos dois é diferente.

O bom é quando essa transformação se faz para maior cumplicidade, e não mais distanciamento.

Que um relacionamento não seja prisão; que não seja enfermaria nem muleta; mas que seja vida, crescimento (turbulências eventuais incluídas).

Que seja libertação e ajuda mútua; não fiscalização e condenação, a senteñça pronunciada numa frase gélida ou num olhar acusador, ar de reprovação ou lamúria explícita.

Que seja cumplicidade, porque a vida já é difícil sem afetos. O som dos passos no corredor pode ser um conforto inacreditável, o corpo ao lado da cama uma âncora para a alma aflita. O entendimento recíproco é um oásis no isolamento desta novssa vida pressionada por tempo, dinheiro, regras, mil solicitações de família, trabalho, grupo social, realidade do mundo.

Que seja presença e companhia, o relacionamento bom: pois a solidão é um campo demasiado vasto para ser atravessado a sós."


Pensar é transgredir, Lya Luft.

ímpar



"o número ímpar estabelece que há partes que não têm parte ; o que não é um obstáculo a que essas fracções - as que não se reuniram num todo -, sejam provavelmente aquelas que não se deram à eternidade..."






Marcador original com a caligrafia de Maria Gabriela Llansol retirado de seus manuscritos.

domingo, 20 de março de 2011

inter-humano



"_____ o desejo que chamam inter-humano é sobre mim um vulcão de energia doce _____"

"Eis aqui a escrava do texto que me invade, e que nada tem a ver com o texto impresso ou escrito. Entre mim e o outro, repito, não quero que haja aventuras sentimentais. Excluída esta poeira do meu olho, confio absolutamente no que hei-de ver."

Maria Gabriela Llansol

sexta-feira, 18 de março de 2011

Loucura


Mas bem sabemos que nem o muito amor resiste intacto à sua própria loucura, que fará tendo de viver com a alheia. José Saramago

Varandas


" Mas pensar não é apenas a ameaça de enfrentar a alma no espelho: é sair para as varandas de si mesmo e olhar em torno, e quem sabe finalmente respirar.

Compreender: somos inquilinos de algo bem maior do que nosso pequeno segredo individual. É o poderoso ciclo da existência. Nele todos os desastres e toda a beleza têm significado como fases de um processo.

Se nos escondermos num canto escuro abafando nossos questionamentos, não escutaremos o rumor do vento nas árvores do mundo. Nem compreendermos que o prato das inevitáveis perdas pode pesar menos do que os possíveis ganhos.

Os ganhos ou danos dependem da perspectiva e possibilidades de quem vai tecendo a sua história. O mundo em si não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui identidade, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem.

Viver, como talvez morrer, é recriar-se: a vida não está aí apenas para ser suportada nem vivida, mas elaborada. Eventualmente, reprogramada. Conscientemente executada. Muitas vezes, ousada."


Pensar é transgredir, Lya Luft.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Palavras mudas

Era um guerreiro, aquele meu amor, como o nome que lhe dera seu pai, Gambo, que quer dizer guerreiro. Ele sussurrava seu nome proibido quando estávamos sozinhos, Gambo, e essa palavra, ressoava em minhas veias. Custou a ele muitas surras responder ao nome que lhe deram aqui e ocultar o seu verdadeiro. Gambo, disse-me, tocando no peito, na primeiva vez que nos amamos. Gambo, Gambo, repetiu, até que me atrevi a dizê-lo. Então, ele falava em sua língua e eu respondia na minha. Levou algum tempo para aprender o créole e me ensinar um pouco do seu idioma, o mesmo que minha mãe não conseguira me ensinar; mas desde o começo não precisamos falar. O amor tem palavras mudas, mais transparentes do que o rio.


Trecho de A ilha sob o mar, de Isabel Allende.

Na lua, na rua, na nasa, em casa

Comigo
Zeca Baleiro

Você vai comigo aonde eu for
Você vai bem, se vem comigo
Serei teu amigo e teu bem
Fica bem, mas fica só comigo

Quando o sol se vai a lua amarela
Fica colada no céu cheio de estrela
Se essa lua fosse minha
Ninguém chegava perto dela
A não ser eu e você
Ah, eu pagava pra ver
Nós dois no cavalo de Ogum
Nós juntos parecendo um
Na lua, na rua, na nasa, em casa
Brasa da boca de um dragão

Ouçam aqui.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Angico


" 4 de dezembro



Entardecer no Angico. Estou parada, sozinha, na frente da casa da estância, olhando para o poente. O sol parece uma grande laranja temporã, cujo sumo escorre pelas faces da tarde. O ar cheira a guaco queimado. Um silêncio de paina crepuscular envolve todas as coisas. A terra parece anestesiada. Raras estrelas começam a apontar no firmamento, mais adivinhadas do que propriamente visíveis. Sinto um langor de corpo e espírito. decerto é a tardinha que me contagia com sua doce febre. Tenho a impressão de estar suspensa no ar... E de que alguma coisa vai acontecer. Cerro os olhos e fico esperando o recado de Deus."



Do diário de Sílvia, Érico Verissimo.



Gurias, espero vocês para dividir comigo o amor intenso que tenho por esse livro. Nosso encontro é sabado, dia 19 de março, na minha casa, às 13h. Espero vocês no meu Angico!

Confissões


"18 de fevereiro ( ainda no Angico)



Por que escrevo todas essas coisas que ninguém, mas ninguém mesmo, deverá nem poderá ler a não ser as outras Sílvias? Aqui no Angico trago este diário escondido numa cômoda antiga, da qual só eu tenho a chave. No Sobrado este livro fia guardado no fundo de outra cômoda, dentro de uma caixa cuja chave por sua vez trago presa ao pescoço por uma corrente, como um capulário. Se Jango chegasse a ler estas confissões, eu estaria perdida. A ideia me assusta e ao mesmo tempo me fascina. Ficar completamente perdida não ser o começo da salvação? Tenho uma amiga torturada por problemas conjugais que me confessou ter secretamente guardado um vidro de seconal. Diz ela: ' Quando a situação ficar insuportável, engulo vinte e cinco comprimidos da droga e está tudo resolvido'. Não creio que ela jamais tente o suicídio. Mas a ideia de ter a chave da porta da liberdade deve-lhe ser esquisitamente agradável. Suicidar-se para ela seria um meio de vingar-se do marido, que lhe atormenta a vida.

Até que ponto escrevo este diário num desafio ao meu marido, num obscuro desejo de quem um dia ele descubra e leia, e a coisa toda se precipite sem que eu tenha a responsabilidade completa pelo desfecho? Até que ponto este diário é o meu veneno?

Mas eu já nao escrevi que Deus é o motivo principal destas páginas?"



Do diário de Sílvia, Érico Veríssimo.

terça-feira, 15 de março de 2011

Fui ser feliz

"Estou me afastando de tudo que me atrasa, me engana, me segura e me retém. Fui ser feliz, e não volto!"

- Caio Fernando Abreu

Suprema liberdade


" 28 de julho

Nova carta de Floriano, da Califórnia. É pueril, absurdo, mas aguardo essas cartas num alvoroço de namorada. E também numa espécie de susto. Acho que Jango não aprova essa correspondência, apesar de ele não ter dito nada claramente. Noto que fica contrariado toda vez que chega um envelope debruado de azul e vermelho endereçado a mim. Faço questão de mostrar-lhe as cartas, para que ele veja que elas nao contém nada de 'mau'. Ele as lê por alto, com impaciência, e habitualmente diz: ' Vocês literatos!'.

Floriano continua um agnóstico, mas repete que sente a 'nostalgia de uma religião que nunca teve'. Curioso, não conheço ninguém mais preparado que ele para aceitar Deus. Acho que tem na sua alma um belo nicho vazio, à espera duma imagem. Talvez pense que entregar-se a Deus seja um compromisso demasiado sério para quem como ele tanto deseja ser livre. Mal sabe o meu querido amigo que a aceitação de Deus é a suprema liberdade."


Do diário de Sílvia, Érico Veríssimo.

Lábios de mel

Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira.
O favo do jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado.
Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu onde campeava sua guerreira tribo da grande nação tabajara, o pé grácil e nu, mal roçando alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas.
Um dia, ao pino do sol, ela repousava em um claro da floresta. Banhava-lhe o corpo a sombra da oiticica, mais fresca do que o orvalho da noite. Os ramos da acácia silvestre esparziam flores sobre os úmidos cabelos Escondidos na folhagem os pássaros ameigavam o canto.
Iracema saiu do banho; o aljôfar d'água ainda a roreja, como à doce mangaba que corou em manhã de chuva [...].
Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol não deslumbra; sua vista perturba-se.
Diante dela e todo a contemplá-la, está um guerreiro estranho, se é guerreiro e não algum mau espírito da floresta. Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar; nos olhos o azul triste das águas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo.
Foi rápido, como o olhar, o gesto de Iracema. A flecha embebida no arco partiu Gotas de sangue borbulham na face do desconhecido.
De primeiro ímpeto, a mão lesta caiu sobre a cruz da espada, mas logo sorriu. O moço guerreiro aprendeu na religião de sua mãe, onde a mulher é símbolo de ternura e amor. Sofreu mais d'alma que da ferida.
O sentimento que ele pôs nos olhos e no rosto, não o sei eu. Porém a virgem lançou de si o arco e a uiraçaba, e correu para o guerreiro, sentida da mágoa que causara.
A mão que rápida ferira, estancou mais rápida e compassiva o sangue que gotejava. Depois Iracema quebrou a flecha homicida: deu a haste ao desconhecido, guardando consigo a ponta farpada.
O guerreiro falou:
— Quebras comigo a flecha da paz?
— Quem te ensinou, guerreiro branco, a linguagem de meus irmãos? Donde vieste a estas matas, que nunca viram outro guerreiro como tu?
— Venho de bem longe, filha das florestas. Venho das terras que teus irmãos já possuíram, e hoje têm os meus.
— Bem-vindo seja o estrangeiro aos campos dos tabajaras, senhores das aldeias, e à cabana de Araquém, pai de Iracema.

Trecho de Iracema, de José de Alencar.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Trouxeste a chave?

A procura da poesia

Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.


Carlos Drummond de Andrade, do livro A rosa do povo.

Um quarto de século


" 2 de março ( no Angico)

Acordei antes do raiar do sol. Jango já tinha saído para o campo. Levantei-me e fui olhar o nascer do dia. Que espetáculo!!Os galos encarregaram-se do acompanhamento musical. Quando o sol apontou no horizonte, sua primeira luz se refletiu nas folhas do coqueiro torto, no alto da coxilha onde estão as sepulturas do velho Licurgo e do velho Fandango.

Como é que vou descrever o cheiro das manhãs do campo?Só me ocorre compará-lo com o dum bebê. Algo de fresco e úmido, recendente a leite e à vida que começa. Não posso deixar de sentir que o cheiro da grama é verde. A névoa parece ter um aroma próprio, bem como a terra molhada de orvalho.

Quem me pegou esse vício de sentir o mundo pelo olfato foi Floriano. Não conheço ninguém mais sensível que ele a cheiros. Quando um resfriado lhe tira o sentido olfativo, costuma dizer que a vida perdeu para ele uma dimensão importante.

No céu pálido, algumas estrelinhas opiniáticas insistiam em fingir que ainda não tinham percebido que já era dia. O sol a princípio tinha o ar dum covalescente, mas depois ganhou força, se fez homem e as campinas entregaram-se a e ele em amoroso abandono.

Pensei no dia da Criação. Cerrei os olhos e imaginei que o hálito de Deus me bafejava o rosto. Tudo isso e mais a sensação de fraqueza que me vinha de ter o estômago vazio, me puseram tremuras no corpo.

Ao pé da mangueira, bebi um copo de leite que trazia ainda o calor dos úberes da vaca. Em casa a Dinda me esperava com um café e bolinhos de coalhada. Encontrei junto da minha xícara um pacote envolto em papel de seda. Li o cartão que o acompanhava. Dizia apenas:Feliz aniversário, minha querida. Beijos do Jango. Ele não esqueceu, pensei com satisfação. Comecei a chorar como uma colegial. Dinda naturalmente não viu minhas lágrimas. Apertou-me as mãos rapidamente e me disse: ' Parabéns'. As ostras mortas dos olhos fitaram-se em mim. Levantei-me e beijei o rosto da velha, que resmungou:' Ué!Que bicho le mordeu?'.

Boa pergunta. Que bicho teria me mordido?Pode-se comparar a fé a um bicho?Talvez. Um pássaro...Mas não tenho medo de ser bicada por ele. Pelo contrário, não quero pegá-lo, prendê-lo numa gaiola. Mas trata-se dum animal arisco. É por isso que nestes últimos tempos ando caminhando na ponta dos pés e falando baixo, para não espantá-lo.

Lá fora está um dia de ouro e esmeralda. A imagem pode ser vulgar, mas é a melhor que encontro. Ouro, esmeralda e porcelana azul.

Resolvi que Deus não pode deixar de existir. Porque eu preciso d'Ele. Porque o mundo precisa d'Ele. Duas boas razões, não é mesmo?

Já sei o que vou fazer daqui a pouco: procurar um lugar onde haja paz e sombra para meditar. O Capão da Jacutinga, por exemplo. Bom para um encontro com Deus. Espero que Ele não falte.

Olho para a folhinha, na parede. Não é mesmo engraçado? Estou completando hoje um quarto de século de existência."


Do diário de Sílvia, Érico Veríssimo.

Sutil


"20 de maio

Passei a tarde no Sutil com os velhos. Como os invejo!Levam a vida que pediram a Deus. Sem compromissos mundanos, sem ambições, e possivelmente sem temores. Decerto aguardam a morte tranquilamente, como quem espera a visita duma velha comadre. Amam o pedaço de tarra onde vivem, cercados de árvores, flores e bichos...Sem telefone, sem rádio, em suma, sem essas máquinas que o velho tanto detesta. A guerra não chega a tocá-los. Babalo segue o noticiário dos jornais com certa curiosidade, mas noto que não acredita na metade das coisas que lê. Um dia me disse: 'É impossível que exista no mundo tanta gente louca e malvada'.

Durante a visita pensei frequentemente em Floriano, por muitas razões, mas especialmente por causa da luz da tarde. Meu amigo sempre dá um jeito de meter nas suas histórias o outono, sua estação favorita. Enquanto eu caminhava ao lado do velho Aderbal pelo Sutil, frequentemente era vos de F. que eu ouvia. 'Que luz macia!A paisagem parece estar dentro dum enorme topázio amarelo. A gente vê ou sente que há também uns toques de violeta na tarde, mas não sabe exatamente onde estão.' Babalo me mostrou uma grande paineira, no alto duma coxilha, tranquila no ar parado, pesada de flores rosadas. O velho percebeu o meu enlevo e disse: 'Sabe o nome dessa árvore?Bibiana Terra'. Mostrou-me depois um jequitibá alto e ereto:'Esta é a velha Maria Valéria'. Levou-me a ver um ipê ainda novo:'Esta é a Sílvia'. Olhou-me bem nos olhos e acrescentou:'Venha na primavera para ver como você fica bonita, toda cheia de flores amarelas'.

Mas a mais bela de todas as coisas era a própria figura do velho Aderbal, com suas grandes mãos vegetais mas ao mesmo tempo tão humanas, sua pele tostada irmã da terra, e aqueles olhos que, de tanto olharem os largos horizontes da querência, pareciam cheios de distâncias, saudades e histórias. A gente custa a acreditar que Aderbal Quadros tenha sido o estancieiro mais rico da região Serrana. Dizem que perdeu tudo que possuía por falta de competência administrativa misturada com falta de sorte e excesso de confiança no próximo. A meu ver, quem explica melhor o fenômeno é o Floriano.' O velho nunca se sentiu bem como homem de grandes posses. Sempre achou o luco indecente e a distribuição de terras injusta. Tinha a vocação da pobreza. Foi ele mesmo que, talvez inconscientemente, trabalhou para a própria ruína.'

Quando voltávamos para a casa, um crepúsculo grave pintava de vermelho e púrpura o horizonte. A tarde parecia afogar-se em vinho. O velho Babalo caminhava ao meu lado, mas calado, compreendendo decerto o que aquele momento significava para mim. O ar era um cristal quase frio. Eu sentia o silêncio não só com os ouvidos mas também com os olhos, o tato e o olfato, porque o silêncio tinha um corpo, uma cor, uma temperatura, um perfume...

- Como vai essa tal de guerra? - perguntou o velho quando já entrávamos na casa.

Contei-lhe que a ofensiva russa em Krakov continuava vitoriosa. Ele sacudiu a cabeça lentamente. D.Laurentina me presenteou com um cesto cheio de bolinhos de milho. Quando se despediu de mim, deu-me a ponta dos dedos. Seu Aderbal me beijou a testa. Bento me esperava no automóvel, à frente da casa. Voltei para o Sobrado com a alma limpa. Floriano costuma dizer que existem dias de duas, três e até quatro dimensões. Nos de duas, quase morremos de tédio. Nos de três, amamos a vida, vislumbramos o seu sentido, fizemos e criamos coisas...Nos de quatro... bom, os de quatro são pura magia. Passamos a fazer parte da paisagem, quase atingimos a unidade com o cosmos.

Tive hoje um dia quase quadridimensional. Que Deus abençoe esses dois velhos. E não Se esqueça muito de mim."


Do diário de Sílvia, Érico Veríssimo.

sábado, 12 de março de 2011

Vertigem

8 de março - 1941

Gostamos de nos imaginar bons e generosos. Mas se nos debruçássemos sobre o poço de nossos sentimentos e desejos mais secretos, esse túnel vertical onde se escondem nossas maldades, mesquinhezas, egoísmos e misérias - estou certa de que não reconheceríamos a nossa própria face refletida na água do fundo.
De vez em quando faço a experiência e sinto vertigens. Estou agora debruçada nas bordas do meu poço, fazendo uma sondagem no tempo.

Trecho de Do diário de Sílvia, de Erico Verissimo.

sexta-feira, 11 de março de 2011

O ninho - que querem - é entre asas e alturas

"O ninho - que erguem - é néxil, pléxil, difícil. Já de segredo começaram: com um bicadinho de barro, a lama mais doce, a mais terna. De barro, dos lados, à vária vez, ajuntam outros arrebiques. À muita fábrica, que se forma de ticos, estilhas gravetos, em curtas proporções; e argueiros, crinas, cabelos, fibrilas de musgos, e hábeis ciscos, discernidas lãs, painas - por estofo. Com o cravar, urdir, feltrar, enlaçar, entear, empastar; de sua simples saliva canora, e unir, com argúcia e gume, com - um atilho de amor - suas todas artes. Após, ao fim, na afofagem, forrá-lo com a própria e algo-doída penugem - do peito, a que é mais quente do coração. O ninho - que querem - é entre asas e altura. Como um pássaro voa trans abismos. A mais, num esperanceio: o grácil, o sutil, o pênsil."

Trecho de Uns Inhos Engenheiros. In: "Ave, Palavra", de Guimarães Rosa

Floriano


" 1º de novembro

Floriano escreveu a Jango dizendo que virá fazer-nos uma rápida visita em fins deste mês, antes de partir para os Estados Unidos. A ideia de que ele vai encontrar-se com sua americana desperta em mim um leve e tolo ciúme, do qual me envergonho. Afinal de contas, Floriano é um homem livre. Faço o possível para esquecer certas coisas, mas é inútil. Relembro uma tarde do verão passado em que, num dos raros momentos em que a Dinda afroxou sua vigilância sobre nós, Floriano me contou de sua aventura com essa estrangeira. Eu não lhe havia perguntado coisíssima alguma. Falávamos na guerra e nas possibilidades de os Estados Unidos entrarem no conflito... De repente Floriano desatou a língua e, com essa coragem meio cega que às vezes os tímidos têm, me narrou a história com a americana em todos os seus pormenores, inclusive os de alcova. Eu gostaria de ter visto minha cara no espelho naquele momento. Acho que corei. A coisa me tomou de surpresa. Não me foi fácil encarar F. enquanto ele falava. Ao cabo de alguns minutos, me refiz do choque e acho que me portei como uma mulher adulta e evoluída. É quase inacreditável que uma pessoa de tanta sensibilidade e malícia como Floriano tenha caído na armadilha que lhe preparou a vaidade masculina. Fez questão de me dizer - e mais tarde repetir - que havia satisfeito plenamente a amante como homem. Talvez estivesse inconscientemente procurando me despeitar com a narrativa de suas proezas sexuais. Era como se me dissesse: 'estás vendo agora o que perdeste por teres casado com o Jango e não comigo?'. Depois que nos separamos, pensei melhor no assunto e compreendi que no fundo daquela confissão o que havia mesmo era um homem pouco seguro de si mesmo e de seus objetivos. E mais uma grande solidão agravada pela certeza de que aquela aventura de praia não tinha nenhuma profundidade. Tive pena dele. Tive pena de mim. Perdoei-o e me perdoei... não sei bem por quê."


Do diário de Sílvia, Érico Veríssimo.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Ele me responderá...


"Cada vez mais, me convenço da utilidade desse jornal. Ele pode me ajudar muito na exploração desses poços insondados que temos dentro de nós, e que tanto nos assustam por serem escuros e parecerem tão fundos. Por outro lado, talvez eu possa deixar nestas páginas, de vez em quando, discretamente, um bilhetinho a Deus. O endereço? Posta-restante. Estou convencido de que um dia, dum modo ou de outro, Ele me responderá..."


Do diário de Sílvia, Érico Veríssimo.

Não quero piedade, quero amor


" Comprei este diário na semana passada na Lanterna de Diógenes. Era o único que existia na casa. Tipo álbum, fecho de metal, uma gaivota dourada na capa de plástico azul imitando couro. Ridículo!Senti necessidade de explciar à empregada da livraria que eu queria para dá-lo de presente a uma mocinha. Bom, não foi uma mentira completa. Porque na realidade dei o diário à jeunne fille que em parte ainda sou. Agora só falta o amor-perfeito seco entre duas páginas. Não, isso não se usa mais. Mas que é que se usa hoje em dia? Angústia. Tio Bicho fala no Angts de seus filósofos alemães. Minha angústia é menor. Angustiazinha nacional e municipal. Tem um mérito que é ao mesmo tempo um incoveniente. É minha. Em certos momentos, chegamosa ter até um certo orgulho de nossas tristezas e infelicidades, e usamos essas desgraças para comover os outros e arrancar deles piedade ou amor. (Não quero piedade, quero amor.) Em suma, uma chantagem. Um caso parecido com o da Palmira Pepé, que há anos anda pelas ruas da cidade manquejando, choramingando e mendigando. Quando os médicos querem curar-lhe o defeito da perna, a Palmira recusa, alegando que, se sarar, não terá mais razão para pedir esmolas.

Não quero usar o truque de Palmira. É por isso que vou desabafar neste livro. É mais decente lamber as próprias feridas na solidão, a portas fechadas. Mas o certo mesmo é curá-las."


Do diário de Sílvia, Érico Veríssimo.



quarta-feira, 9 de março de 2011

O mundo é todo encantado


“Onde eu estava ali era um quieto. O ameno âmbito, lugar entre-as-guerras e invasto territorinho, fundo de chácara. Várias árvores. A manhã se-a-si bela: alvoradas aves. O ar andava, terso, fresco. O céu – uma blusa. Uma árvore disse quantas flores, outra respondeu dois pássaros. Esses, limpos. Tão lindos, meigos, quê? Sozinhos adeuses. E eram o amor em sua forma aérea. Juntos voaram, às alamedas frutíferas, voam com uniões e discrepâncias. Indo que mais iam, voltavam. O mundo é todo encantado. Instante estive lá, por um evo, atento apenas ao auspício. "

Trecho de Uns Inhos Engenheiros, In: "Ave, Palavra", de Guimarães Rosa

Naturalidade


"Abandone-se, tente tudo suavemente, não se esforce por conseguir – esqueça completamente o que aconteceu e tudo voltará com naturalidade.“

Clarice Lispector

quarta-feira, 2 de março de 2011

Sem solicitações


"Eu quis tanto ser a tua paz, quis tanto que você fosse o meu encontro. Quis tanto dar, tanto receber. Quis precisar, sem exigências. E sem solicitações, aceitar o que me era dado. Sem ir além, compreende? Não queria pedir mais do que você tinha, assim como eu não daria mais do que dispunha, por limitação humana. Mas o que tinha, era seu.”

Caio Fernando Abreu

Parar, olhar, escutar


" Agenda pode ser tormento e prisão. Mas pode ser liberdade, se a gente inventar brechas: em plena tarde da semana, caminhar na calçada; sentar ao sol na varanda do apartamento; deitar na grama do parque ou jardim, por menor que ele seja, e como criança olhar as nuvens, interpretando suas formas: camelo, coelho, árvore ou anjo.

Ou: quinze minutos para se recostar para trás na cadeira ( pode ser do escritório mesmo) e espiar o céu fora da janela; ir até a sala, esticar-se no sofá com as pernas sobre o braço do próprio, e ouvir música, ver televisão, ler, ler, ler... ou simplesmente não fazer nada.

O ócio é uma possibilidade infinita a ser explorada.

Não falo da inércia, do desânimo, do vazio melancólico. Jamais falarei de ficar de robe velho e pantufas ( vi numa vitrine algumas com cara de cachorro e até orelhas!) pela casa até o meio da tarde.

Falo de viver.

Parar, olha, escutar - dizia um aviso nos trilhos do trem entre minha cidade e Porto Alegre. A gente passava de carro sobre o trilho, e eu imaginava o horror de alguém infringir isso e ser explodido pelo monstro de ferro e fumaça.

A vida há de rolar por cima da gente, reduzindo a poeirinha inútil quem se esquecer de às vezes parar pra pensar... mas sem se desmontar; olhar em torno ou para dentro: paisagens belas, ou áridas ( sempre dá pra plantar um capim) ou quem sabe coloridas ( a alma pode brincar de esconde-esconde entre as folhas).

E escutar: a música do universo, o canto do sabiá ( que tem começado às três da madrugada fria, atarantado neste clima estranho); a risada da criança no andar de cima; enfim, o chamado da vida que nos convoca de mil formas: anda, sai do marasmo, viveeeeeeeeeeee!!

Que nossas agendas ( também as interiores) nos permitam muitas vezes a plenitude do nada sorvido como um gole de champanha, celebrando tudo.

Sem culpa."


Pensar é transgredir, Lya Luft.

E o tal do mundo não se acabou!


Anunciaram e garantiram
Que o mundo ia se acabar!
Por causa disso
Minha gente lá de casa
Começou a rezar...

E até disseram que o sol
Ia nascer antes da madrugada,
Por causa disso nessa noite
Lá no morro
Não se fez batucada...

Acreditei nessa conversa mole,
Pensei que o mundo ia se acabar!
E fui tratando de me despedir,
E sem demora fui tratando
De aproveitar!

Beijei a boca
De quem não devia,
Peguei na mão
De quem não conhecia,
Dancei um samba
Em traje de maiô
E o tal do mundo
Não se acabou!

Chamei um gajo
Com quem não me dava
E perdoei a sua ingratidão!
E festejando o acontecimento
Gastei com ele
Mais de quinhentão!

Agora eu soube
Que o gajo anda
Dizendo coisa
Que não se passou!
Ahhh! vai ter barulho
E vai ter confusão!
Porque o mundo não se acabou...


Composição: Assis Valente

Interpretada por Adriana Calcanhoto, veja e ouça aqui!

Felicidade sim!




A felicidade
vive atrás de mim!
Eu que não sou louca
deixo ela vir!

Quebro o silêncio
e parto logo o fim,
deixo outras coisas!
Felicidade sim!

Roberta Campos

terça-feira, 1 de março de 2011

Reavaliar-se


"Quando menos se espera ele chega, o pensamento que nos faz parar. Pode ser no meio do trânsito, na frente da tevê ou do computador. Simplesmente escovando os dentes. Ou na hora da droga, do sexo sem afeto, do desafeto, da lamúria, da hesitação. Sem ter programado, a gente pára pra pensar. É como espiar para um corredor com mil possibildades. Cada porta, uma escolha. Muitas vão se abrir para um nada, outras para um jardim de promessas. Hora de tirar os disfarces, aposentar as máscaras e reavaliar, reavaliar-se. Pensar pede audácia, pois refletir é transgredir a ordem do superficial que nos esmaga."


Pensar é transgredir, Lya Luft.

Bagunça


"Não se engane comigo, é na bagunça que eu me arrumo."

Caio F. Abreu