quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Brasília

Museu Nacional, por Jéssyca Rodrigues



I
Brasília em que me esqueço e lembro 
acostar-me minha vida em seu corpo alado 
e dizer-me: 
Liberdade, 
a que me ensinastes e em que me tens, 
ao velho lobo do Planalto.
II 
Vira o milênio, vira o século,
mais te quero se me livras 
de tuas ausências e solidões. 
Que dó, que alívio 
desconhecer os meus vizinhos. 
E de vista, 
os indignados síndicos: 
anti-social que és 
se pudessem te prenderiam 
no mastro de uma aldeia mísera. 
Brasília liberdade, minha liberdade. 
III 
Como a uma esfinge 
não sei se te chamas Brasília 
ou apenas um planisfério do céu 
excessivamente coevo e desabrido. 
Há de ti diversas em mim 
dos tempos idos. Que amor e lembrança 
das estradas vazias e dos ônibus corcovejantes. 
Corcovejavam por quê? 
E os pastéis de queijo da Rodoviária, 
boiando em óleo, que em certos dias 
navegavam em níveis de pura gula ou prazer?
Ou aquelas noites solenes 
de ir-se à sala Martins Pena para ouvir Brahms, 
com sotaque de Beatles 
e voltar enregelado para casa, 
com o vento batendo a impunidade terrível 
com que Oscar* te adornou... 
Ou em tempos mais antigos, 
o cheiro que tinha o Núcleo nas chuvas, 
resinas de tabuado ruim, de becos fétidos, de pai ausente. 
Do escritório empoeirado 
e a fascinante secretária, cujas pernas perfeitas 
ainda agem na memória. 
Depois aquela chácara no Lago Sul, 
com mulher e filhos pequenos 
e os primeiros devaneios sobre a natureza. 
Depois aquela copa de sibipiruna na chapada do Corisco 
e o leito enorme da moça. 
IV 
Depois, mais, depois... Acho que Brasília não existe. 
Deixa-se existir. 
No fim sobra a poesia do desastre de Brasília, 
pó de ouro no fim da tarde de Brasília. 
Nada sei ou muito. Acolá, nas roças, 
o sol dura até amanhecer. 
Errei eu ou errou o lugar? 
Pois sabe-se que ninguém 
está em Brasília por acaso, 
mas por designação do poder ou dos astros. 
Examino em mim teus defeitos 
e não me acho assim tão direito, 
nem tão errado. 
Ao que interessa o cidadão SQN 316 – I – 504? 
Dizem: tudo, nada deve fazer-se de geometria 
da tirania. 
Quem virá libertar Brasília, a inlibertável, 
para toda e qualquer 
tara libertável, ou não? 
A menina carece seviciamentos. 
Senão como viveremos nós, 
nossos ratos de porão? 
VI 
Brasília, cidade amada 
e alongada, 
desastre monocórdio da humanidade. 
Mas amo tua amnésia e disritmia. 
Brasília é como viver em lugar nenhum 
e curiosamente viver em algum lugar 
onde só há vias, carros e elevadores. 
Mas amo a esplanada de Oscar, 
rampa descendente para decolar astronaves, 
e outras coisinhas mais 
do Santo Piemontês.* 
VII 
Inundemos Brasília de Amores. 
Nenhum planejador de espaços 
conseguiria planejá-la de amores 
e os amores é que conduzem à vida. 
Não nascemos e vivemos 
para viver a cidade natimorta 
e enrijecida de sonhos póstumos. 
Liberte-se, Brasília, ainda que tarde. 
Em Goiás, em Minas, no Norte inteiro 
algumas coisas do Brasil 
pedem a tua transfiguração e metamorfose, 
assim bela, mas não assim triste. 
Mas amo teus jardins. 
Feitos para encherem-se 
de estátuas, meteoros e namorados. 
As quadras numeradas 
por flores, obeliscos e cores 
nunca vistos nos ultramarinos. 
Quadra 316, por favor? 
- à direita, no obelisco rosa. 
O nome agora é quadra Azulinha. 
E a danceteria dancing days? 
- No centro do Eixão. Perdão, 
- no Cerradão Sul. 
VIII 
Do anonimato 
brotou Brasília, flor do Eu. 
Capital da liberdade 
e de uma Ilusão de Ilha 
no coração do Brasil quinhentista. 
Terra minha amada 
e recriada, 
com lágrimas de mel. 


1996.




Paulo Bertran, poeta goiano, in  SERTÃO DO CAMPO ABERTO.

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