domingo, 29 de abril de 2012

arauto negro

(…)
Por que será que temos tanto medo das palavras? Não tanto da palavra escrita, mas da palavra pronunciada. Por que será que ainda acreditamos em palavras mágicas, rezas, abracadabra? Será que se eu agora, nesta gravação, em vez de te contar esta história, simplesmente parar por uns segundos, respirar fundo e te dizer: quero que você morra. Será que isso vai te ajudar a morrer? Será que isso vai te empurrar? Não sei. Sei apenas que, naquele momento, as palavras da mãe de Karen, por mais melodramáticas e teatrais que fossem, tiveram algum efeito em mim. Como quando você assiste a um filme, você sabe que é tudo mentira, fingimento, mas mesmo assim você sente medo e tristeza e alegria e o que for. Por que será que a gente, mesmo sabendo que é ilusão, na hora de sentir sente de verdade? Será apenas catarse? Ou será uma necessidade muito forte, e muito profunda, de viver algo especial? A necessidade dos grandes sentimentos, amor, ódio, honra, bravura.
Érika liga de novo o rádio, desta vez encontra rapidamente uma estação. Uma ópera. Érika diminui o volume, a música continua enquanto ela fala.
Mas, como te dizia, a mãe de Karen pegou a bolsa e foi embora. Eu fiquei lá, sem conseguir dizer nada, sem conseguir me levantar. Fiquei lá o resto da tarde. Me sentia, de repente, tão frágil, desamparada. É tão fácil qualquer coisa nos atingir. Até mesmo uma frase teatral. Fiquei pensando, talvez eu seja mesmo um monstro. Você acha? Mas o que é exatamente um monstro? Lembro que fui ver no dicionário, monstro é por definição um ser contrário à natureza. Algo que não deveria existir, que não estava programado. O monstro é, portanto, uma espécie de falha da evolução. Por outro lado, há a origem da palavra. Fui procurar a etimologia. E sabe o que eu achei? Lá dizia que originalmente monstro era o ser que vinha anunciar a vontade dos deuses. Curioso, não? Eu gosto dessa definição, porque no fundo ela nos redime, o monstro é apenas um arauto, um arauto negro, nada mais. E nada do que ele faça poderá mudar a vontade dos deuses, entende? Ou seja, o monstro não tem culpa da mensagem que carrega. Mais que isso. Sem ele ficaríamos incomunicáveis. Sem ele, ao entrarmos na sala escura na expectativa da música, do concerto, encontraríamos, aí sim, apenas o silêncio.
Érika desliga o rádio.
Carola Saavedra, Paisagem com dromedário

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