quarta-feira, 28 de março de 2012

Silêncio




Às vezes, olhando um instantâneo tirado na praia ou numa festa, percebia com leve apreensão irônica o que aquele rosto sorridente e escurecido me revelava: um silêncio. Um silêncio e um destino que me escapavam, eu, fragmento hieroglífico de um império morto ou vivo. Ao olhar o retrato eu via o mistério. Não. Vou perder o resto do medo do mau-gosto, vou começar meu exercício de coragem, viver não é coragem, saber que se vive é a coragem - e vou dizer que na minha fotografia eu via O Mistério. A surpresa me tomava de leve, só agora estou sabendo que era uma surpresa o que me tomava: é que nos olhos sorridentes havia um silêncio como só vi em lagos, e como só ouvi no silêncio mesmo.

Nunca, então, havia eu de pensar que um dia iria de encontro a este silêncio. Ao estilhaçamento do silêncio. Olhava de relance o rosto fotografado e, por um segundo, naquele rosto inexpressivo o mundo me olhava de volta também inexpressivo. Este - apenas esse - foi o meu maior contato comigo mesma? o maior aprofundamento mudo a que cheguei, minha ligação mais cega e direta com o mundo. O resto - o resto eram sempre as organizações de mim mesma, agora sei, ah, agora eu sei. O resto era o modo como pouco a pouco eu havia me transformado na pessoa que tem o meu nome. E acabei sendo o meu nome.

Clarice Lispector. A paixão segundo GH

3 comentários:

  1. "O resto era o modo como pouco a pouco eu havia me transformado na pessoa que tem o meu nome. E acabei sendo o meu nome.'
    Clarice, você faz cada coisa com a cabeça e o coração da gente!!

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