quinta-feira, 15 de setembro de 2011

É para lá que eu vou



" Para além da orelha existe um som, à extremidade do olhar um aspecto, às pontas dos dedos um objeto - é para lá que eu vou.

À ponta lápis o traço.

Onde expira um pensamento está uma ideia, ao derradeiro hálito de alegria uma outra alegria, à ponta da espada a magia - é para lá que eu vou.

Na ponta dos pés o salto.

Parece a história de alguém que foi e não voltou - é para lá que eu vou.

Ou não vou?Vou, sim. E volto para ver como estão as coisas. Se continuam mágicas. Realidade?eu vos espero. É para lá que eu vou.

Na ponta da palavra está a palavra. Quero usar a palavra "tertúlia" e não sei quando. À beira da tertúlia está a família. À beira da família estou eu. À beira de eu estou mim. É para mim que vou. E de mim saio para ver. Ver o quê?ver o que existe. Depois de morta é para a realidade que vou. Por enquanto é sonho. Sonho fatídico. Mas depois - depois tudo é real. E a alma livre procura um canto para se acomodar. Mim é um eu que anuncio. Não sei sobre o que estou falando. Estou falando do nada. Eu sou nada. Depois de morta engrandecerei e me espalharei, e alguém dirá com amor meu nome.

É para o meu pobre nome que vou.

E de lá volto para chamar o nome do ser amado e dos filhos. Eles me responderão. Enfim terei uma resposta. Que resposta? a do amaor. Amor: eu vos amo tanto. Eu amo o amor. O amor é vermelho. O ciúme é verde. Meus olhos são verdes. Mas são verdes tão escuros que na fotografia saem negros. Meu segredo é ter olhos verdes e ninguém saber.

À extremidade de mim estou eu. Eu, implorante, eu a que necessita, a que pede, a que chora, a que lamenta. Mas a que canta. A que diz palavras. Palavras ao vento?que importa, os ventos as trazem de novo e eu as possuo.

Eu à beira do vento. O morro dos ventos uivantes me chama. Vou, bruxa que sou. E me transmuto.

Oh, cachorro, cadê tua alma?está à beira de teu corpo? Eu estou à beira do meu corpo.E feneço lentamente.

Que estou a dizer? Estou dizendo amor. E à beira do amor estamos nós."

É para lá que eu vou, Clarice Lispector.

3 comentários:

  1. Estou mais mergulhada do que nunca em Clarice...

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  2. "À beira de eu estou mim. É para mim que vou. E de mim saio para ver. Ver o quê?ver o que existe."
    Sensacional esse texto!

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  3. "Depois de morta engrandecerei e me espalharei, e alguém dirá com amor meu nome."
    Quer coisa mais verdadeira que isso? Clarice é amada por suas palavras, por sua alma...

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