segunda-feira, 14 de março de 2011

Um quarto de século


" 2 de março ( no Angico)

Acordei antes do raiar do sol. Jango já tinha saído para o campo. Levantei-me e fui olhar o nascer do dia. Que espetáculo!!Os galos encarregaram-se do acompanhamento musical. Quando o sol apontou no horizonte, sua primeira luz se refletiu nas folhas do coqueiro torto, no alto da coxilha onde estão as sepulturas do velho Licurgo e do velho Fandango.

Como é que vou descrever o cheiro das manhãs do campo?Só me ocorre compará-lo com o dum bebê. Algo de fresco e úmido, recendente a leite e à vida que começa. Não posso deixar de sentir que o cheiro da grama é verde. A névoa parece ter um aroma próprio, bem como a terra molhada de orvalho.

Quem me pegou esse vício de sentir o mundo pelo olfato foi Floriano. Não conheço ninguém mais sensível que ele a cheiros. Quando um resfriado lhe tira o sentido olfativo, costuma dizer que a vida perdeu para ele uma dimensão importante.

No céu pálido, algumas estrelinhas opiniáticas insistiam em fingir que ainda não tinham percebido que já era dia. O sol a princípio tinha o ar dum covalescente, mas depois ganhou força, se fez homem e as campinas entregaram-se a e ele em amoroso abandono.

Pensei no dia da Criação. Cerrei os olhos e imaginei que o hálito de Deus me bafejava o rosto. Tudo isso e mais a sensação de fraqueza que me vinha de ter o estômago vazio, me puseram tremuras no corpo.

Ao pé da mangueira, bebi um copo de leite que trazia ainda o calor dos úberes da vaca. Em casa a Dinda me esperava com um café e bolinhos de coalhada. Encontrei junto da minha xícara um pacote envolto em papel de seda. Li o cartão que o acompanhava. Dizia apenas:Feliz aniversário, minha querida. Beijos do Jango. Ele não esqueceu, pensei com satisfação. Comecei a chorar como uma colegial. Dinda naturalmente não viu minhas lágrimas. Apertou-me as mãos rapidamente e me disse: ' Parabéns'. As ostras mortas dos olhos fitaram-se em mim. Levantei-me e beijei o rosto da velha, que resmungou:' Ué!Que bicho le mordeu?'.

Boa pergunta. Que bicho teria me mordido?Pode-se comparar a fé a um bicho?Talvez. Um pássaro...Mas não tenho medo de ser bicada por ele. Pelo contrário, não quero pegá-lo, prendê-lo numa gaiola. Mas trata-se dum animal arisco. É por isso que nestes últimos tempos ando caminhando na ponta dos pés e falando baixo, para não espantá-lo.

Lá fora está um dia de ouro e esmeralda. A imagem pode ser vulgar, mas é a melhor que encontro. Ouro, esmeralda e porcelana azul.

Resolvi que Deus não pode deixar de existir. Porque eu preciso d'Ele. Porque o mundo precisa d'Ele. Duas boas razões, não é mesmo?

Já sei o que vou fazer daqui a pouco: procurar um lugar onde haja paz e sombra para meditar. O Capão da Jacutinga, por exemplo. Bom para um encontro com Deus. Espero que Ele não falte.

Olho para a folhinha, na parede. Não é mesmo engraçado? Estou completando hoje um quarto de século de existência."


Do diário de Sílvia, Érico Veríssimo.

2 comentários:

  1. Nossa, Gabi, esse trecho é maravilhoso. Que coisa linda! Às vezes eu sinto isso também, essa coisa de admirar as coisas simples, um belo dia que nasce, um cheiro, as cores da natureza. Acho que é coisa de mulher sensível, hehe, nem todo mundo é capaz de se emocionar e sentir felicidade com essas coisinhas pequenas.

    "Quem me pegou esse vício de sentir o mundo pelo olfato foi Floriano. Não conheço ninguém mais sensível que ele a cheiros."
    Também dou muita importância a cheiros! E minha memória olfativa é de impressionar, consigo me recordar muito bem de cheiro de pessoas, de lugares. Posso até sentir, se pensar muito...

    ResponderExcluir
  2. Também tenho essa necessidade de observar as coisinhas simples...me faz tão bem!

    ResponderExcluir