" 2 de março ( no Angico)
Acordei antes do raiar do sol. Jango já tinha saído para o campo. Levantei-me e fui olhar o nascer do dia. Que espetáculo!!Os galos encarregaram-se do acompanhamento musical. Quando o sol apontou no horizonte, sua primeira luz se refletiu nas folhas do coqueiro torto, no alto da coxilha onde estão as sepulturas do velho Licurgo e do velho Fandango.
Como é que vou descrever o cheiro das manhãs do campo?Só me ocorre compará-lo com o dum bebê. Algo de fresco e úmido, recendente a leite e à vida que começa. Não posso deixar de sentir que o cheiro da grama é verde. A névoa parece ter um aroma próprio, bem como a terra molhada de orvalho.
Quem me pegou esse vício de sentir o mundo pelo olfato foi Floriano. Não conheço ninguém mais sensível que ele a cheiros. Quando um resfriado lhe tira o sentido olfativo, costuma dizer que a vida perdeu para ele uma dimensão importante.
No céu pálido, algumas estrelinhas opiniáticas insistiam em fingir que ainda não tinham percebido que já era dia. O sol a princípio tinha o ar dum covalescente, mas depois ganhou força, se fez homem e as campinas entregaram-se a e ele em amoroso abandono.
Pensei no dia da Criação. Cerrei os olhos e imaginei que o hálito de Deus me bafejava o rosto. Tudo isso e mais a sensação de fraqueza que me vinha de ter o estômago vazio, me puseram tremuras no corpo.
Ao pé da mangueira, bebi um copo de leite que trazia ainda o calor dos úberes da vaca. Em casa a Dinda me esperava com um café e bolinhos de coalhada. Encontrei junto da minha xícara um pacote envolto em papel de seda. Li o cartão que o acompanhava. Dizia apenas:Feliz aniversário, minha querida. Beijos do Jango. Ele não esqueceu, pensei com satisfação. Comecei a chorar como uma colegial. Dinda naturalmente não viu minhas lágrimas. Apertou-me as mãos rapidamente e me disse: ' Parabéns'. As ostras mortas dos olhos fitaram-se em mim. Levantei-me e beijei o rosto da velha, que resmungou:' Ué!Que bicho le mordeu?'.
Boa pergunta. Que bicho teria me mordido?Pode-se comparar a fé a um bicho?Talvez. Um pássaro...Mas não tenho medo de ser bicada por ele. Pelo contrário, não quero pegá-lo, prendê-lo numa gaiola. Mas trata-se dum animal arisco. É por isso que nestes últimos tempos ando caminhando na ponta dos pés e falando baixo, para não espantá-lo.
Lá fora está um dia de ouro e esmeralda. A imagem pode ser vulgar, mas é a melhor que encontro. Ouro, esmeralda e porcelana azul.
Resolvi que Deus não pode deixar de existir. Porque eu preciso d'Ele. Porque o mundo precisa d'Ele. Duas boas razões, não é mesmo?
Já sei o que vou fazer daqui a pouco: procurar um lugar onde haja paz e sombra para meditar. O Capão da Jacutinga, por exemplo. Bom para um encontro com Deus. Espero que Ele não falte.
Olho para a folhinha, na parede. Não é mesmo engraçado? Estou completando hoje um quarto de século de existência."
Do diário de Sílvia, Érico Veríssimo.
Nossa, Gabi, esse trecho é maravilhoso. Que coisa linda! Às vezes eu sinto isso também, essa coisa de admirar as coisas simples, um belo dia que nasce, um cheiro, as cores da natureza. Acho que é coisa de mulher sensível, hehe, nem todo mundo é capaz de se emocionar e sentir felicidade com essas coisinhas pequenas.
ResponderExcluir"Quem me pegou esse vício de sentir o mundo pelo olfato foi Floriano. Não conheço ninguém mais sensível que ele a cheiros."
Também dou muita importância a cheiros! E minha memória olfativa é de impressionar, consigo me recordar muito bem de cheiro de pessoas, de lugares. Posso até sentir, se pensar muito...
Também tenho essa necessidade de observar as coisinhas simples...me faz tão bem!
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