sexta-feira, 19 de julho de 2013
quarta-feira, 17 de julho de 2013
quarta-feira, 26 de junho de 2013
Dois irmãos
Por volta de 1914, Galib inaugurou o restaurante Biblos no térreo da casa. O almoço era servido às onze, comida simples, mas com sabor raro. Ele mesmo, o viúvo Galib, cozinhava, ajudava a servir e cultivava a horta, cobrindo-a com um véu de tule para evitar o sol abrasador. No Mercado Municipal, escolhia uma pescada, um tucunaré ou um matrinxã, recheava-o com farofa e azeitonas, assava-o no forno de lenha e servia-o com molho de gergelim. Entrava na sala do restaurante com a bandeja equilibrada na palma da mão esquerda; a outra mão enlaçava a cintura de sua filha Zana. Iam de mesa em mesa e Zana oferecia guaraná, água gasosa, vinho. O pai conversava em português com os clientes do restaurante: mascateiros, comandantes de embarcação, regatões, trabalhadores do Manaus Harbour. Desde a inauguração, o Biblos foi um ponto de encontro de imigrantes libaneses, sírios e judeus marroquinos que moravam na praça Nossa Senhora dos Remédios e nos quarteirões que a rodeavam. Falavam português misturado com árabe, francês e espanhol, e dessa algaravia surgiam histórias que se cruzavam, vidas em trânsito, um vaivém de vozes que contavam um pouco de tudo: um naufrágio, a febre negra num povoado do rio Purus, uma trapaça, um incesto, lembranças remotas e o mais recente: uma dor ainda viva, uma paixão ainda acesa, a perda coberta de luto, a esperança de que os caloteiros saldassem as dívidas. Comiam, bebiam, fumavam, e as vozes prolongavam o ritual, adiando a sesta.
Trecho da obra Dois irmãos, de Milton Hatoum.
terça-feira, 25 de junho de 2013
Para saber mais sobre Florbela Espanca: <http://revistacult.uol.com.br/home/2010/12/florbela-espanca-um-amar-perdidamente/>
terça-feira, 18 de junho de 2013
O Casamento
“— O casamento embucetou! —
Anuncia Maria Petisco, saltando do táxi na porta de entrada da casa
de Almério. Deixara Tereza nos braços de mestre Gereba. Não tinha
naufragado, não estava morto? Que morto nem meio morto, vivo e bem
vivo, um pedaço de homem de se lamber os beiços, rolete de cana
caiana, Tereza mais sortuda. Quando o Balboa naufragara, fazia mais
de três meses que ele e Toquinho, outro baiano, haviam desengajado,
iniciando a volta para casa. Na maciota, vendo mundo. Acabara de
chegar e o compadre Caetano Gunzá lhe contara os acontecidos todos.
O amigo Almério desculpasse mas o casamento parecia bastante
comprometido.
No primeiro momento, Almério
sofreu séria decepção, profundo abalo, não há como esconder;
afinal, com papéis prontos e festa paga, não era para menos. Mas a
curiosidade de velho leitor de folhetins, de ouvinte fanático de
novelas de rádio, habituado a encarnar-se nos melodramáticos
heróis, superou o desaponto, e ele pediu detalhes. Acreditem: em
menos de meia hora já se entusiasmava com o relato. Maria Petisco se
adiantara para dar a notícia aos convidados, chegando quase junto
com o juiz e o padre. O magistrado logo se retirou; dom Timóteo,
porém, permaneceu à espera de Almério, talvez o pobre necessitasse
de consolo.
— E o que se vai fazer com tanto
manjar? — Quis saber o velho Miguel Santana, que almoçara leve
reservando espaço e apetite para a comilança.
— Ai, meu Deus, a festa não vai
mais haver! — Gemeu a negra Domingas, preparada para sambar a noite
inteira.
Na sala ia entrando Almério das
Neves acompanhado de Anália, ouviu a queixa, abanou os braços, não
lhe cabia culpa. Meu povo, disse ele, o casamento deu com os burros
n’água. Para mim foi triste mas para Tereza foi alegre. O noivo
que ela pensou que estava morto chegou do mar a tempo. Pior seria se
chegasse depois. Aí, sim, de qualquer jeito era ruim. Encarnava o
apaixonado generoso, capaz de sacrificar-se sem um lamento pela
felicidade da bem-amada e do rival afortunado.
— Já que é assim, vamos
festejar — Propôs Caymmi, homem de bom conselho.
Almério olhou a sala cheia, gente
sobrando pelos corredores, as mesas postas, grandiosas, as garrafas
no gelo e o jazz-band. Um sorriso lhe nasceu nos lábios, expulsando
da face plácida do ex-noivo a última sombra de desaponto. Heróico
e abnegado, elevou a voz para ser ouvido por todos os presentes, a
Bahia inteira:
— Não há o casamento mas nem
por isso a festa deixa de se realizar. Vamos estourar a champanha do
doutor Nelson!
— Isso, sim, que é falar
direito. — Aprovou Miguel Santana dirigindo-se para a sala de
jantar.
A festa do casamento de Tereza
Batista, apesar do casamento não ter acontecido, atravessou a noite,
animadíssima. Comeram quanto havia, beberam a bebida toda, regabofe
como hoje só na Bahia ainda se faz e olhe lá! A não ser para beber
um copo de cerveja e beliscar de cada prato um pouco, o jazz não
parou de tocar e a dança terminou na rua, de manhã, atrás do Trio
Elétrico. No meio da noite, Almério um tanto alto, e Anália —
essa não nasceu para mulher-dama — fizeram-se par constante e ela
lhe confessou ser doida por criança. Ora, já se viu, até parece
coisa de romance!
Vela enfunada, o saveiro corta o
mar da Bahia. A brisa sopra, noite alta, leve sobre o golfo. Tereza
Batista, respingada de água, sabendo a sal, odor de maresia, os
negros cabelos soltos ao vento, ressuscitada, aleluia! Achega-se ao
peito de Januário Gereba. Ao leme, mestre Janu pesa as qualidades da
embarcação à venda: se for boa de travessia, compro e pago à
vista, compadre Gunzá pôs meu dinheiro no Banco a render juros,
compadre mais porreta. Que nome vamos lhe dar, me diga? Antes de
escolher o nome do saveiro, Tereza fala:
— Sabe que eu matei um homem? Era
ruim demais, só merecia a morte mas até hoje carrego ele nas
costas.
Januário guarda o cachimbo de
barro:
— Oxente, vamos descarregar ele
aqui mesmo, de uma vez para sempre. Era ruim, vai com os cações,
raça de peixe desgraçada. Assim, tu fica livre dele.
Sorri na noite escura, em seu
sorriso o sol renasce. Um já se foi, porém tem mais, Janu.
— Um homem morreu dentro de mim,
na hora mesmo. Não sei se para os outros ele foi bom ou mau, para
mim o melhor homem do mundo, marido e pai. Levo a morte dele nas
entranhas.
— Se morreu naquela hora, então
está no paraíso, foi direto. Quem morre assim é protegido de Deus.
Largue o corpo do justo com as arraias, se livre da morte dele, mas
guarde tudo de bom que ele lhe deu.
O mar se abriu e se fechou, Tereza
suspira aliviada. Gereba pergunta:
— Tem mais algum? Se tem, a gente
aproveita e joga no mar. Por aqui perto descarreguei a minha
falecida.
Tereza lembrou-se daquele que não
chegara a ser, arrancado de seu ventre antes da hora do nascimento.
Pôs a mão sobre a de mestre Januário Gereba, Janu do bem-querer,
fazendo-o mover o leme, mudar o rumo do saveiro, dirigindo-o para
pequena enseada entre bambus na margem do golfo, escondido remanso.
Estendese Tereza na popa do saveiro:
— Venha e me faça um filho,
Janu.
— Sou bom nisso como quê.
Ali, na barra
da manhã, rio e mar.”
TEREZA
BATISTA CANSADA DE GUERRA
JORGE
AMADO
sexta-feira, 24 de maio de 2013
Chorando, atira-se nos braços de Januário Gereba
“Em casa
de dona Fina, Maria Petisco e Anália ajudam Tereza Batista a se vestir e
enfeitar. Noiva mais jururu onde se viu? Prepara-se para a festa do matrimônio
ou para o velório do próprio enterro?
Anália
reclama com a amiga que não sabe dar valor à sorte. Ai, quem me dera, fosse eu
a felizarda! Ando farta dessa vida de rameira, de cama em cama, de mão em mão,
vendendo o corpo, gastando amor com xodós de pouca duração. Não viu Kalil? Tão bom
moço mas a largou para casar com uma prima, o sem vergonha. Anália não o culpa,
para casar também ela romperia o rabicho inconsequente. Ah! quem me dera lar e
filho, marido para mim somente e eu somente para ele. Ai, Tereza, estivesse eu
em teu lugar, estaria rindo pelos cotovelos, rindo pelos cantos, pelos dentes todos,
rindo à toa. Maria Petisco concorda em parte. Para ela, ser fiel a homem não é
fácil, sobretudo com os encantados descendo nas camas sem perguntar o nome do
dono do colchão, do travesseiro e da adormecida criatura.
Tereza
vestida e penteada, Maria Petisco coloca-lhe ao pescoço um colar de Yansã,
deslumbrante e encantado, símbolo da vitória na guerra contra os mortos,
presente de Valdeloir Rego, joalheiro dos orixás, lavado por mãe Senhora no
peji. Anália a conduz defronte ao espelho para ela se mirar, formosa porém
triste.
Enquanto
as amigas se arrumam, Tereza vê-se refletida no aço do espelho pelo direito e
pelo avesso. Vibrantes contas de triunfo, roxo colar de sangue, posto em ombro
impróprio de quem foi derrotada e se acabou. Velha, cansada de guerra, morta
por dentro.
Recorda
acontecimentos e pessoas, fatos distantes, gente desaparecida. O doutor, o
capitão, Lulu Santos, o menino arrancado de seu ventre, assassinado antes de
ser. Os tempos de cadeia, os tempos de bordel, a época de Estância, lugares por
onde andou, o ruim e o bom, a taca de couro e a rosa. Quantos anos completara há
poucos meses no xadrez, presa e surrada pela polícia de costumes da Bahia?
Vinte e seis? Não pode ser. Quem sabe, cento e vinte e seis, mil e vinte e seis
ou ainda mais? Na hora da morte não se conta idade.
Barulho
na porta, ruído de discussão, a voz de dona Fina contraditando alguém, a
resposta e o riso. Tereza estremece, palpita-lhe incontido o coração, de quem
essa voz inesquecível, esse acento de marulho e búzio?
— Vai
casar? Pode ser, mas só se for comigo.
Levanta-se
trêmula, não acredita nos próprios ouvidos, sai passo a passo pelo corredor,
olha a medo. Na porta da rua, disposto a entrar de qualquer maneira, gigante,
pássaro, vivo, inteiro, lá está ele. Então Tereza Batista abre-se em pranto, em
choro convulso. Chorando, atira-se nos braços de Januário Gereba.”
TEREZA BATISTA CANSADA DE GUERRA
JORGE AMADO
quinta-feira, 23 de maio de 2013
Tereza Batista se parece com o povo!
“Com quem se parece Tereza Batista, tão castigada pela vida, tão
cansada de apanhar e de sofrer e, ainda assim, de pé, com todo o peso da morte
no lombo, porfiando em arrancar da maldita uma criança para a vida? Pois eu lhe
digo com quem acho que ela se parece.
Sentada nesta varanda, vendo ao longe o mar do Rio Vermelho, olhando
as árvores, algumas centenárias, a maioria plantada por mim e pelos meus, com
essas minhas mãos que empunharam a carabina nas matas de Ferradas, nas lutas do
cacau, recordando João, meu finado, um homem alegre e bom, cercada pelos meus
três filhos, meus tesouros, e pelas três noras, minhas filhas e rivais, pelos
netos, netas e bisnetos, por meus parentes e aderentes, eu, Eulália Leal Amado,
Lalu na voz geral da benquerença, lhe digo, meu senhor, que Tereza Batista se parece
com o povo e com mais ninguém. Com o povo brasileiro, tão sofrido, nunca
derrotado. Quando o pensam morto, ele se levanta do caixão.”
TEREZA BATISTA CANSADA DE GUERRA
JORGE AMADO
quarta-feira, 22 de maio de 2013
Explicar, não explico...
“Milagres
demais, na opinião do amigo, descrente dessas abusões. Orixás acontecendo a
cada instante, encantamentos e magias. Velho de barbas e bordão surgindo de
repente, a fechar os caminhos da polícia, a abrir portas de igreja, poeta morto
há cem anos salvando raparigas., Ogum Peixe Marinho infundindo confiança, Exu
empurrando o revoltado comissário, fazendo-o estatelar-se, quebrando-lhe de vez
as duas pernas, Santo Onofre velando no deserto chão da zona o corpo de Vovó —
para um materialista ê dose bruta, o amigo deseja o relato da verdade pura e
não feitiçarias.
Não
discuto a conta feita pelo amigo, o número certo das intervenções indébitas mas
não se esqueça que o caso se deu na cidade da Bahia, situada no oriente do
mundo, terra de esconjuros e ebós. Aqui, meu prezado, os absurdos são o pão de
cada dia desse povo incapaz de inventar uma mentira ainda mais a propósito de
assunto tão mexido.
Me diga o
distinto, por favor: como seria possível a putas sem tostão, sem armas e sem
leitura, enfrentar a polícia e ganhar a guerra do balaio fechado se não
contassem com a ajuda de santos e orixás, de feiticeiros e poetas? O que teria
sido delas, me responda, se para tanto tem competência e fantasia.
Explicar,
não explico, só lhe contei porque me rogou com insistência e um chofer de táxi
tem a obrigação de tratar bem a freguesia, conversando e comentando para fazer
a corrida mais maneira. Quem no mundo pensa, tudo explicar, trocando em miúdo
cada fato, prendendo a vida nas cancelas das teorias, é apenas, me desculpe o
amigo, um falso materialista, sábio de meia-tigela, um caga-regras, historiador
de vôo curto, um tolo.
Para
terminar, some mais um despropósito aos muitos que ouviu, sucedeu comigo, Edgard
Rogaciano Ferreira, conhecido em toda a praça da Bahia por sério e inimigo de
patranhas. Já lhe disse como vi naquela noite vazio o pedestal da estátua do
poeta Castro Alves, na praça do mesmo nome, onde faço ponto. Pois, ao acordar
novamente, bem mais tarde, à passagem dos carros da policia conduzindo o
mulherio preso no fim da briga, tendo levantado os olhos para o monumento, o
que vejo? A estátua do poeta em seu lugar de sempre, o braço estendido para o
mar e na mão um cartaz rasgado com figuras de mulheres e palavras sem sentido,
todo poder às putas, já pensou? E agora saia dessa se puder, o caro amigo. Boa
noite eu lhe desejo, tome cuidado com Exu.”
TEREZA BATISTA CANSADA DE GUERRA
JORGE AMADO
terça-feira, 21 de maio de 2013
PROCISSÃO E LUTA!
“Atrás da
imagem as mulheres, logo na primeira fila Tereza Batista. Ao vê-la, Peixe Cação
esquece até a dor nos bagos, precipita-se. Exatamente no mesmo instante, do Bar
Flor de São Miguel sai um grupo barulhento e agitado de fregueses, o futuroso astro
de nosso teatro, Tom Lívio, o alemão Hansen a gravar na madeira com goiva e
sangue a vida das mulheres da zona, o poeta Telmo Serra, os eternos boêmios,
aqueles que pela madrugada afora discutem o destino do mundo e salvam a
humanidade das catástrofes e do aniquilamento, os guardiões do sonho do homem. Nas
mãos poderosas do gravador um cartaz exibe esquálidas fêmeas seminuas, todas
elas rompendo as cadeias a lhes prender os pulsos, tendo no lugar do xibiu um
cadeado. Uma inscrição em grandes letras: TODO O PODER ÀS PUTAS. O comissário
grita ordens para os tiras e para os soldados, manda dissolver, prender, espancar,
matar, se necessário.
Parte a
carga de cavalaria, dissolve-se a procissão, os guardas baixam os cassetetes,
os investigadores apontam os revólveres. A imagem de Santo Onofre fica
depositada no chão, em pé. Ao lado, Vovó continua a puxar a ladainha. Tem ao
menos cem anos de idade e mil de puta, basta ver-lhe as rugas, a cara chocha, a
boca sem dentes, mas ainda gosta de brigar e de louvar os santos:
Ave, ave
Maria
Ave, ave
Maria
O
comissário Labão Oliveira corre para fazê-la calar-se, tropeça num buraco,
tomba, rola, não se levanta. Mesmo caído, atira, a velha emudece, o canto
cessa, o silêncio cobre a praça inteira. Junto da imagem do santo o corpo
pequeno e gasto de Vovó; morreu rezando, morreu brigando, morreu contente.
Tiras
acodem ao comissário, ajudam-no a erguer-se mas ele não consegue se firmar em
pé, rotos os ossos das duas pernas. O investigador Alirio, apavorado, joga-se
no chão, bate a cabeça nas pedras, bem ele avisara: comissário, não seja doido,
não toque em Exu.
Os carros
rumam para o edifício da Polícia Central, lotados de presos, mulheres e
boêmios, praticamente a zona inteira foi em cana. No comando da limpeza final
ainda permanece alguns minutos o investigador Peixe Cação. Mas tem pressa: no
depósito, bem guardada Tereza Batista espera.
Mais uma
vez tentarão lhe ensinar o respeito e a obediência. Peixe Cação esfrega as
mãos, em noite de tanto descalabro, uma alegria.”
TEREZA BATISTA
CANSADA DE GUERRA
JORGE AMADO
quarta-feira, 15 de maio de 2013
BASTA!
“Quem não
sabe, fique sabendo de uma vez para sempre: puta não tem direito algum, puta é
para dar gozo aos homens, receber a paga tabelada e se acabou. Fora disso,
apanha. Do cafetão, do gigolô, do tira, do guarda, do soldado, do delinqüente e
da autoridade. Do vicio e da virtude, renegada. Por tolice apanha, dá com os
costados na cadeia, quem quiser pode lhe escarrar na cara. Impunemente.
O senhor,
paladino das causas populares, com nome elogiado nas gazetas, por gentileza me
diga se alguma vez na vida dignou-se a pensar nas putas, exceto, é claro, nas
inconfessáveis ocasiões em que nelas se põe em leito de folgança a regalar-se
pois mesmo um incorruptível necessita satisfazer a carne, está sujeito às
exigências do instinto. Leito infame, carne vil, baixos instintos na opinião do
mundo inteiro.
Sabe o
indômito líder ser excelente negócio possuir casas de aluguel em zona de
meretrício? A polícia localiza a zona de acordo com os interesses da política,
premiando parentes, amigos, correligionários. Por ser aluguel de casa de puta
bem mais elevado do que o das casas de família. Sabia dessa particularidade o
bravo campeão dos explorados? Aliás, para elas tudo é mais caro e mais difícil,
e todos acham justo, ninguém protesta. Nem sequer o nobre defensor do povo. Não
sabia? pois fique sabendo. E saiba ainda mais que despejo de puta independe de
ação judicial, basta a polícia decidir, ordem de um delegado, um comissário, um
tira, faz-se a mudança. Não cabe à puta escolha de onde morar e exercer.
Quando
uma puta se despe e se deita para receber homem e conceder-lhe o supremo prazer
da vida em troca de paga escassa, sabe o ilustre combatente da justiça social
quantos estão comendo dessa paga? Do proprietário da casa ao sub-locador, da
caftina ao delegado, do gigolô ao tira, o governo e o lenocínio. Puta não tem
quem a defenda, ninguém por ela se levanta, os jornais não abrem colunas para descrever
a miséria dos prostíbulos, assunto proibido. Puta só é notícia nas páginas de
crimes, ladrona, arruaceira, drogada, mariposa do vício, presa e processada,
acusada dos males do mundo, responsável pela perdição dos homens. A quem cabe a
culpa de tudo de ruim quanto acontece universo afora? Pois às putas, sim,
senhor.
O
indomável advogado dos oprimidos por acaso tomou conhecimento da existência de
milhões de mulheres que não pertencem a nenhuma classe, por todas elas
repudiadas, postas à margem da luta e da vida, marcadas a ferro e fogo? Sem
carta de reivindicações, sem organização, sem carteira profissional, sem
sindicato, sem programa, sem manifesto, sem bandeira, sem contar tempo de
ofício, podres de doenças, sem médico de Instituto nem cama em hospital, com
fome e sede, sem direito a pensão alimentar, a aposentadorias, a férias, sem direito
a filhos, sem direito a lar, sem direito a amor, apenas putas, nada mais? Sabe
ou não sabe? Pois fique sabendo de uma vez.
Puta,
enfim, é caso de polícia, xilindró e necrotério. Mas já imaginou o caridoso pai
dos pobres se um dia as putas do mundo unidas decretassem greve geral,
trancassem a flor e se recusassem a trabalhar? Já pensou o caos, o dia de
juízo, o fim dos tempos?
O último
dos últimos encontra quem por ele brade e lute, só as putas não. Sou o poeta
Castro Alves, morto há cem anos, do túmulo me levanto, na Praça de meu nome e
monumento, na Bahia, assumo a tribuna de onde clamei pelos escravos, no Teatro
São João que o fogo consumiu, para conclamar as putas a dizer basta.”
TEREZA BATISTA
CANSADA DE GUERRA
JORGE AMADO
segunda-feira, 13 de maio de 2013
Roda-Gigante
"Sem
querer, pela primeira vez escapa-lhe da boca a expressão de um desejo, não
chega todavia a ser um pedido:
— Sempre
tive vontade de um dia andar na roda-gigante.
— Nunca
andou, Favo-de-Mel?
— Nunca
tive ocasião.
— Vai
andar hoje. Vamos.
Aguardam
a vez na fila, antes de ocuparem uma caçamba. Elevam-se pouco a pouco, enquanto
a roda vai parando para desembarcar os antigos e embarcar ps novos fregueses. O
coração palpitante, Tereza prende entre as suas a mão esquerda do doutor; com o
braço livre ele a circunda. Em determinado momento ficam parados no ponto mais
alto, a cidade lá embaixo. A multidão a divertir-se, confuso rumor de conversas
e risos, luzes multicores nas barracas, no carrossel, no contorno da praça.
Pouco adiante as ruas vazias, mal iluminadas, a massa de árvores do Parque
Triste, o vulto dos sobradões na sombra. Na distância, o murmúrio dos rios correndo
sobre as pedras para se juntarem no porto velho, a caminho do mar. Em cima, o
céu imenso de estrelas e a lua de Estância, desmedida, e louca. Tereza solta o
balão azul, o vento o leva no rumo do porto — quem sabe para o mar distante?
— Ai, que
maravilha! — murmura Tereza comovida.
Na
quermesse, obstinados, alguns basbaques, os olhos levantados, a espiá-los.
Também umas quantas senhoras e comadres arriscam destroncar o pescoço para
vê-los. O doutor traz o corpo de Tereza para junto de si, ela descansa a cabeça
no ombro dele. Emiliano acaricia-lhe os cabelos negros, toca-lhe a face e a
beija na boca, beijo longo, profundo e público — um escândalo, um descaramento,
uma delícia, um esplendor. Ah!, os felizardos."
TEREZA BATISTA
CANSADA DE GUERRA
JORGE AMADO
quarta-feira, 8 de maio de 2013
Cada aroma tinha um valor próprio...
“Para
agradá-lo, um dia, após o banho vespertino, Tereza tomou do vidro e se
encharcou com a água-de-colônia do amásio; assim veio encontrá-lo ao pé do
leito. Emiliano levantara-se para a acolher e ao sentir o perfume espalhado
sobre ela, riu o riso largo, capitoso:
— Que
fizeste, Tereza? Esse perfume é de homem.
— Vi o
senhor usar com tanto gosto, usei também, pensando. . .
Esguia
menina, corpo em formação, ancas insolentes, o doutor a volteou e a reteve de
costas contra si. Da ponta dos. Cabelos aos dedos dos pés, da rosa do xibiu ao
goivo do subilatório, o corpo inteiro de Tereza foi posse do doutor, chão de
sua lavra.
Com o
tempo, soube Tereza dos perfumes e da maneira de usá-los. Na hora da barba ela
mesma passava a água-de-colônia no rosto, no bigode, nos pelos brancos do peito
cabeludo do doutor. Gostava de aspirar o perfume seco, agreste, de homem. Vez
por outra, ele, tomando o frasco da mão da amiga, punha-lhe uma gota no colo e
a volteava, sentindo-lhe a palpitação das ancas. Cada gesto, cada palavra, cada
olhar, cada aroma tinha um valor próprio.”
TEREZA BATISTA
CANSADA DE GUERRA
JORGE AMADO
terça-feira, 7 de maio de 2013
Tempo do amor
Tempo do
amor, quando se tornaram indispensáveis um ao outro. Amor de um deus, de um
cavaleiro andante, de um ser sobre-humano, de um senhor, e de uma menina do
campo, moleca de roça por ele elevada à condição de amásia, de moça com um verniz
de finura e educação, mas amor profundo e terno, desbragado de desejo.”
TEREZA BATISTA
CANSADA DE GUERRA
JORGE AMADO
segunda-feira, 6 de maio de 2013
Manhãs de Estância
A água,
no ponto mais profundo, dava no ombro do doutor. Estendendo os braços, ele
mantinha Tereza à tona, ensinando-lhe a nadar. Os redemoinhos, as brincadeiras,
o riso solto, os beijos trocados dentro d’água; o doutor num mergulho a
sujeitá-la pela cintura, a mão no seio ou por dentro do maio, insolente,
estranho peixe escapando-lhe da sunga. Prelúdios de amor, o desejo se cendendo
no banho do rio Piauitinga. Na volta, em casa, no banheiro e na cama
completavam o alegre começo da manhã. Manhãs de Estância, ai, nunca mais.”
TEREZA BATISTA
CANSADA DE GUERRA
JORGE AMADO
quinta-feira, 2 de maio de 2013
Mas amor, desde quando, Emiliano?
—
Não saia por aí a trabalhar, comadre, não abuse de suas forças, nem fique
aperreada. — Tratando-a de comadre para a apoiar e lhe demonstrar estima: —
Quero lhe ver forte e alegre.
—
Fique descansado, doutor, já não sinto nada, ou pensa que sou uma molenga? Já
passou tudo, pode crer.
Tocado
pela bravura de Tereza e no desejo de apressar-lhe a completa convalescença,
doutor Amarílio aconselhou a Emiliano, ao despedir-se na porta do jardim:
—
Quando o doutor for à Bahia, traga de lá uma dessas bonecas grandes que falam e
andam e ofereça à Tereza, será uma compensação.
—
Você acha, Amarílio, que uma boneca pode compensar um filho? Eu não creio. Vou
trazer um bocado de coisas, tudo de bonito que eu encontrar, mas boneca não.
Tereza meu caro, não é só bonita e jovem, é sensível e inteligente. Só é menina
na idade, nos sentimentos é mulher madura, vivida de caráter, vem de dar provas
disso. Não, meu amigo, se eu trouxesse uma boneca para Tereza, ela não haveria
de gostar. Se uma boneca pudesse substituir um filho, tudo no mundo seria
fácil.
—
Talvez o senhor tenha razão. Amanhã, volto para vê-la. Até, doutor.
Do
portão do jardim, Emiliano vê o médico dobrar a esquina, a maleta na mão. O que
ela perdeu, Amarílio, o que eu lhe tomei à força, usando um truque, colocando-a
entre a cruz e a caldeirinha, só se compensa com carinho, afeto, ternura e
amizade. Só com amor se paga.
Afeto,
carinho, ternura, amizade, regalos e dinheiro, com certeza, são moedas
correntes no trato das amásias. Mas amor, desde quando, Emiliano?”
TEREZA BATISTA
CANSADA DE GUERRA
JORGE AMADO
terça-feira, 30 de abril de 2013
Despedida...
“— Em certas coisas,
Teresa; você é igualzinha a ele, olho para você e vejo Emiliano. Na convivência
foi ficando parecida: a lealdade, o orgulho, sei lá o que. . .
Ficou um instante calado,
logo prosseguiu:
— Eu quis vir vê-lo
agora, me despedir enquanto ele está em sua companhia, não quero estar presente quando chegar a gente dele. Por sua
causa, Tereza, ele veio para Estância, para junto de nós e nos deu um pouco de
seu tempo tão ocupado e nos transmitiu seu amor à vida. Quando ele chegou, eu
já estava entregue à velhice, à espera da morte, ele me levantou de novo. Quero
me despedir dele
a seu lado, os outros não
conheço e não quero conhecer.
Novamente o
silêncio, o morto de olhos abertos. Mestre João continuou:
— Nunca tive irmãos,
Tereza, mas Emiliano foi para mim mais do que um irmão. Só não perdi tudo que
meu pai deixou porque ele se ocupou de meus negócios. Mesmo assim, nunca abriu
a boca para uma confidência. Ainda agora eu estava dizendo a Amarílio: o orgulho
e a generosidade, o rebenque e a rosa. Vim para ver Emiliano e para lhe ver,
Tereza.”
Jorge Amado – Tereza Batista cansada de guerra
sexta-feira, 26 de abril de 2013
CÁLIDAS NOITES
"Nas cálidas noites de Estância de amena viração, brisa dos rios, no céu de estrelas sem contar a lua desmedida sobre as árvores, ficavam no jardim a bebericar, ela e o doutor. Ele nas fortes aguardentes, na genebra, no vodca, no conhaque, ela no vinho do Porto ou no Cointreau. Favo-de-mel, Tereza, teus doces lábios. Ai, meu senhor, seu beijo queima, chama de conhaque, brasa de genebra. Nessas horas a distância a separá-los se tornava mínima até desaparecer na cama por completo. Na cama ou ali mesmo no balanço da rede à viração, sob as estrelas. Árdegos partiam para alcançar a lua."
Tereza Batista cansada de guerra
Jorge Amado
segunda-feira, 22 de abril de 2013
Imagine, meu velho, essa gente com saúde e sabendo ler, que perigo medonho!
"Cega, vazios os buracos dos olhos, os gadanhos pingando pus, feita de chaga e fedentina, a bexiga negra desembarcou em Buquim de um trem cargueiro da Leste Brasileira, vindo das margens do rio São Francisco, entre suas múltiplas moradas uma das preferidas: naquelas barrancas as pestes celebram tratos e acordos, reunidas em conferências e congressos — o tifo acompanhado da fúnebre família das febres tifóides e dos paratifos, a malária, a lepra milenária e cada vez mais jovem, a doença de Chagas, a febre amarela, a disenteria especialista em matar crianças, a velha bubônica ainda na brecha, a tísica, febres diversas e o analfabetismo, pai e patriarca. Ali, nas margens do São Francisco, em sertão de cinco Estados, as epidemias possuem aliados poderosos e naturais: os donos da terra, os coronéis, os delegados de polícia, os comandantes dos destacamentos da força pública, os chefetes, os mandatários, os politiqueiros, enfim o soberano governo.
Contam-se nos dedos os aliados do povo: Bom Jesus da Lapa, alguns beatos e uma parte do clero, uns poucos médicos e enfermeiros, professorinhas mal pagas, tropa minúscula contra o numeroso exército dos interessados na vigência da peste.
Se não fossem a bexiga, o tifo, a malária, o analfabetismo, a lepra, a doença de Chagas, a xistossomose, outras tantas meritórias pragas soltas no campo, como manter e ampliar os limites das fazendas do tamanho de países, como cultivar o medo, impor o respeito e explorar o povo devidamente? Sem a disenteria, o crupe, o tétano, a fome propriamente dita, já se imaginou o mundo de crianças a crescer, a virar adultos, alugados, trabalhadores, meeiros, imensos batalhões de cangaceiros — não esses ralos bandos de jagunços se acabando nas estradas ao som das buzinas dos caminhões — a tomar as terras e a dividi-las? Pestes necessárias e beneméritas, sem elas seria impossível a indústria das secas, tão rendosa; sem elas, como manter a sociedade constituída e conter o povo, de todas as pragas a pior? Imagine, meu velho, essa gente com saúde e sabendo ler, que perigo medonho!"
ABC da peleja de Tereza Batista e a bexiga negra
Tereza Batista cansada de guerra
Jorge Amado
quinta-feira, 18 de abril de 2013
Os olhos, presos aos olhos celestes do anjo, umedeceram-se
"Não trocaram uma única palavra. Ele a prendeu nos braços, encostando a face cálida na fria face de Tereza; o hálito do moço era perfume, perfume de tontear. Nos cabelos, na pele, nas mãos, na boca semi-aberta. O capitão fede a suor ardido, bafo de cachaça — homem macho não usa cheiro. Sem dela se afastar, Daniel levou as duas mãos ao rosto de Tereza, emoldurando-o nos dedos, e a fitá-la nos olhos veio com a boca semi-aberta e tomou de sua boca. Por que Tereza não desvia a cabeça se tem horror a beijos, nojo da boca do capitão sobre a sua, a sugar, a morder? Maior que o nojo era o medo. O moço, porém, não lhe faz medo; então, por que consente, não vira a cara, não o manda embora?
A boca de Dan, os lábios, a língua, longa, suave carícia, a boca de Tereza foi se entregando. De repente, dentro de seu peito alguma coisa explodiu e os olhos, presos aos olhos celestes do anjo, umedeceram-se — pode-se chorar por outros motivos que não sejam dor de pancada, ódio impotente, medo incontido? Além dessas, existem outras coisas na vida? Não saberia dizer, só tinha comido da banda podre; peste, fome e guerra, a vida de Tereza Batista."
Tereza Batista cansada de guerra
Jorge Amado
segunda-feira, 15 de abril de 2013
Medo nos olhos de Tereza, curso de completo de medo e respeito...
“Antes, porém, tentou fugir pela segunda vez. Descobriu ter sido
suspensa a vigilância do cabra no corredor durante as idas e vindas de Guga. Na
certa, o capitão, ao fim de dois meses de intenso tratamento, considerava-a
suficientemente dobrada, submissa à sua vontade.
Constatada a ausência do capanga, Tereza outra vez investiu, metida
na camisola de Dóris, ligeira como um bicho do mato. Não foi longe: aos gritos
de Guga acorreram o capitão e dois cabras, cercaram-na nas aforas da casa,
trouxeram-na de volta. Dessa vez o capitão mandou amarrá-la com cordas; fardo
sem movimentos, de novo atirada no quarto.
Meia hora depois, Justiniano Duarte da Rosa apareceu à porta, riu
seu riso curto, sentença fatal. Trazia na mão um ferro de engomar cheio de
brasas. Levantou-o à altura da boca, soprou por detrás, voaram faíscas pelo
bico, brilharam lá dentro os carvões acendidos. Passou o dedo na língua, depois
no fundo do ferro, o cuspo chiou.
Arregalaram-se os olhos de Tereza, o coração encolheu e então a
coragem lhe faltou, soube a cor e o gosto do medo. Tremeu-lhe a voz e mentiu:
— Juro que não ia fugir, só queria tomar banho, tou grossa de sujo.
Apanhara sem pedir piedade, calada, apenas o choro e os gritos; não
rogara pragas, não xingara, enquanto tinha forças reagia e não se entregava.
Chorou e consentiu, é certo; jamais, porém, implorara perdão. Agora, acabou-se:
— Não me queime, não faça isso, pelo amor de Deus. Nunca mais
vou fugir, peço perdão; faço tudo que quiser, peço perdão. Pelo amor de sua
Mãe, não faça isso, me perdoe, ai, me perdoe!
Sorriu o capitão ao constatar o medo nos olhos, na voz de
Tereza; finalmente! Tudo no mundo tem o seu tempo e o seu preço.
A menina estava atada de cordas, deitada de barriga para cima. Justiniano
Duarte da Rosa sentou-se no colchão diante das plantas nuas dos pés de Tereza.
Aplicou o ferro de engomar primeiro num pé, depois no outro. O cheiro de carne
queimada, o chiado da pele, os uivos e o silêncio de morte.
Depois de fazê-lo, o capitão a desamarrou; já não eram
necessárias cordas e vigilância, cabra no corredor, fechadura na porta. Curso
completo de medo e respeito, Tereza por fim obediente.Chupa, ela chupou.
Depressa, de quatro e de costas. Depressa se pôs. Sozinha no mundo e com medo,
Tereza Batista, argola no colar do capitão.”
Tereza Batista cansada de guerra
Jorge Amado
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