segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Grandes crimes disfarçados e profundas traições


" 'Às vezes, tocado pela tua acuidade, eu conseguia ver em ti a tua própria angústia. Não a angústia de ser cão que era a tua única forma possível. Mas a angústia de existir de um modo tão perfeito que se tornava uma alegria insuportável: davas então um pulo e vinhas lamber meu rosto com amor inteiramente dado e certo perigo de ódio como se fosse eu quem, pela amizade, te houvesse revelado. Agora estou bem certo de que não fui eu quem teve um cão. Foste tu que tiveste uma pessoa. Mas possuíste uma pessoa tão poderosa que podia escolher: e então te abandonou.
'(...)Há tantas formas de ser culpado e de perder-se para sempre e de se trair e de não se enfrentar. Eu escolhi a de ferir um cão.', pensou o homem. (...) 'Porque eu sabia que esse seria um crime menor e que ninguém vai para o Inferno por abandonar um cão que confiou num homem. Porque eu sabia que esse crime não era punível.'
Sentado na chapada, sua cabeça matemática estava fria e inteligente. Só agora ele parecia compreender, em toda sua gélida plenitude, que fizera com o cão algo realmente impune e para sempre. Pois ainda não haviam inventado castigo para os grandes crimes disfarçados e para as profundas traições."
(Trecho de O crime do professor de Matemática, de Clarice Lispector)

3 comentários:

  1. Vontade de chorar com esse texto. Mas adorei!
    Dá vontade de pegar esse cachorro da imagem e levar pra casa. Rs

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  2. Não é, Kika? rs
    Não importa quantas vezes eu leia esse conto, sempre choro!

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  3. Eu me emociono muito com esse texto da Clarice...é de uma sensibilidade tamanha... e eu ainda acho que é imperdoável abandonar um cão ou qualquer animal... só isso fez de Clarice alguém não-perfeita.

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