A família é um tema recorrente nos poemas de Drummond e surge diversas vezes por meio do retrato. Dentre eles, um dos mais conhecidos é o "Confidência do itabirano", segundo poema do livro Sentimento do mundo e que já foi publicado no blog. No entanto, nesses poemas a família aparece como uma memória dolorosa, como lembrança de um passado que não passou totalmente e pesa no presente. Alexandre Pilati, em A nação drummondiana, afirma o seguinte sobre "Confidência do itabirano":
A compreensão do passado dá-se pela percepção imediata de que ele não foi de todo superado, uma vez que as coisas estão ao lado do poeta, a testemunhar um tempo não contemporâneo em relação ao tempo do eu enunciador. O requinte da atitude lírica memorialística e reflexiva contrasta com relíquias, coisas que parecem estar fora do tempo presente. [...] A "fotografia na parede"torna Itabira uma relíquia. Torna-a um problema irresolvido, estampado na parede do funcionário republicano (2009, 75).
Em Sentimento do mundo, além de "Confidência de Itabirano", há "Os mortos de sobrecasaca", outro poema que se assemelha quanto à relação entre passado, presente e laços familiares. Seguido a ele, há o poema "Retrato de família", presente no livro A rosa do povo.
Os mortos de sobrecasaca
Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis,
alto de muitos metros e velho de infinitos minutos,
em que todos se debruçavam
na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca.
Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes
e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos.
Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava
que rebentava daquelas páginas.
Carlos Drummond de Andrade
In: Sentimento do mundo, 1940
Retrato de família
Este retrato de família
Está um tanto empoeirado.
Já não se vê no rosto do pai
Quanto dinheiro ele ganhou.
Nas mãos dos tios não se percebem
As viagens que ambos fizeram.
A avó ficou lisa, amarela,
Sem memórias da monarquia.
Os meninos, como estão mudados.
O rosto de Pedro é tranquilo,
Usou os melhores sonhos.
E João não é mais mentiroso.
O jardim tornou-se fantástico.
As flores são placas cinzentas.
E a areia, sob pés extintos,
É um oceano de névoa.
No semicírculo das cadeiras
Nota-se um certo movimento.
As crianças trocam de lugar,
Mas sem barulho: é um retrato.
Vinte anos é um grande tempo.
Modela qualquer imagem.
Se uma figura vai murchando,
Outra, sorrindo, se propõe.
Esses estranhos assentados,
Meus parentes? Não acredito.
São visitas se divertindo
Numa sala que se abre pouco.
Ficaram traços de família
Perdidos no jeito dos corpos.
Bastante para sugerir
Que um corpo é cheio se surpresas.
A moldura deste retrato
Em vão prende seus personagens.
Estão ali voluntariamente,
Saberiam – se preciso – voar.
Poderiam subtilizar-se
No claro-escuro do salão,
Ir morar no fundo dos móveis
Ou no bolso de velhos coletes.
A casa tem muitas gavetas
E papéis, escadas compridas.
Quem sabe a malícia das coisas,
Quando a matéria se aborrece?
O retrato não me responde,
Ele me fita e se contempla
Nos meus olhos empoeirados.
E no cristal se multiplicam
Os parentes mortos e vivos.
Já não distingo os que se foram
Dos que restaram. Percebo apenas
A estranha ideia de família
viajando através da carne.
Carlos Drummond de Andrade
In: A rosa do povo, 1945
Estou encantada com Drummond. Não conhecia muito qq coisa sobre poesia e esta sendo muito bacana essa leitura. Me emociono, me questiono. Esse próximo encontro do cluibe do livro vai ser jóia!
ResponderExcluirComprei o meu hoje! Vou começar a ler logo e depois volto aqui para comentar todos os posts!
ResponderExcluirHehe!Esse próximo encontro promete mesmo!
Adorei a análise... esses poemas são sensacionais!
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