Fermina Daza não podia imaginar que aquela carta sua, instigada por uma raiva cega, pudesse ser interpretada por Florentino Ariza como uma carta de amor. Tinha posto nela toda a fúria de que era capaz, suas palavras mais cruéis, os opróbrios mais injuriosos, e injustos aliás, que no entanto lhe pareciam mínimos diante do tamanho da ofensa. Foi o último ato de um amargo exorcismo com o qual procurava criar um pacto de conciliação com seu novo estado. Queria ser outra vez ela mesma, recuperar tudo que tivera de ceder em meio século de uma servidão que a fizera feliz, sem dúvida, mas que uma vez morto o marido não deixava a ela nem traços de sua identidade. Era um fantasma numa casa alheia que de um dia para o outro se tornara imensa e solitária, e na qual vagava à deriva, perguntando a si mesma angustiada quem estava mais morto: o que tinha morrido ou a que tinha ficado.
Não podia afugentar um recôndito sentimento de rancor contra o marido por havê-la deixado só no meio do oceano. Tudo que era dele a fazia chorar: o pijama debaixo do travesseiro, os chinelos que sempre lhe pareceram de doente, a recordação de sua imagem se despindo no fundo do espelho enquanto ela se penteava para dormir, o cheiro de sua pele que havia de persistir na dela muito tempo depois da morte. Parava no meio de qualquer coisa que estivesse fazendo e dava um tapinha na própria testa porque de repente se lembrava de alguma coisa que esquecera de lhe dizer. A cada instante lhe vinham à mente as tantas perguntas cotidianas que só ele podia responder. Certa vez ele dissera algo que ela não podia conceber: os amputados sentem dores, cãibras, cócegas, na perna que não têm mais. Assim se sentia ela sem ele, sentindo que ele estava onde não mais se encontrava.
Trecho de O amor nos tempos do cólera, de Gabriel García Márquez.
"Assim se sentia ela sem ele, sentindo que ele estava onde não mais se encontrava."
ResponderExcluirEu PRECISO ler mais GG Márquez!
Fermina pra mim é uma personagem incrivel!!
ResponderExcluirAcho sensacional essa imagem de sentir a ausência do outro como a de um membro amputado que ainda parece estar lá!
ResponderExcluirMuito legal mesmo essa comparação, Mel, faz todo o sentido!
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