Ao levantar, muito cuidado, amigo.
Não ponha os pés no chão. Corre perigo
se há nylon no tapete: ele dá câncer.
Pise somente no ar, mas com cautela.
Uma pesquisa sábia nos revela
esta triste verdade: o ar dá câncer.
À hora do café, não seja pato,
pois tanto açúcar como ciclamato
e xícara e colher, sorry, dão câncer.
O banho de chuveiro? Não tomá-lo.
O de imersão, também. Sinto informá-lo
do despacho londrino: água dá câncer.
Não se vista, meu caro ou minha cara.
Um cientista famoso eis que declara:
na roupa, qualquer roupa, dorme o câncer.
A nudez, por igual, não recomendo,
a fim de prevenir um mal tremendo:
sábado se apurou que o nu dá câncer.
Rumo ao batente, agora. Antes, porém,
permita que eu indague: o amigo tem
um carrinho? Que azar. Carro dá câncer.
E colectivo, nem se fala. Em massa,
aumenta a perspectiva de desgraça.
No ónibus, no avião, viaja o câncer.
Invente um novo meio de transporte
para ir ao trabalho, e não à morte...
Mas sabe que o trabalho já dá câncer?
Isso mesmo: afirmou-me com certeza
uma nega com o nome de Teresa
que dar duro é uma fábrica de câncer.
Pare de trabalhar enquanto é tempo!
Mas evite o lazer, o passatempo,
que no jardim da folga nasce o câncer.
Dormir? Talvez. Ou antes, nem pensar.
Em sonho, pelo que ouço murmurar,
é quando mais solerte chega o câncer.
O amor então, é a grande solução?
Amor, fonte da vida... Essa é que não.
Amor, meu Deus, amor é o próprio câncer.
Viva, contudo, sem ficar nervoso,
mas sabendo que é muito perigoso
(lá disse o Rosa) e que viver dá câncer.
Já que você nasceu... Ah, não sabia
deste resumo da sabedoria?
Nascer, mero sinónimo de câncer.
Resta morrer, por precaução? Nem isto.
Veja, no céu, o aviso trimegisto:
no mundo de hoje, até morrer dá câncer.
Viva, portanto, amigo. Viva, viva
de qualquer jeito, na esperança viva
de que o câncer há-de morrer de câncer.
Ou morrerá - melhor - pela coragem
de enfrentarmos o horror desta linguagem
que faz do câncer dor maior que o câncer.
Pois se souber do trágico brinquedo
que é ver câncer em tudo desta vida,
o câncer vai morrer - morrer de medo.
Carlos Drummond de Andrade
Não ponha os pés no chão. Corre perigo
se há nylon no tapete: ele dá câncer.
Pise somente no ar, mas com cautela.
Uma pesquisa sábia nos revela
esta triste verdade: o ar dá câncer.
À hora do café, não seja pato,
pois tanto açúcar como ciclamato
e xícara e colher, sorry, dão câncer.
O banho de chuveiro? Não tomá-lo.
O de imersão, também. Sinto informá-lo
do despacho londrino: água dá câncer.
Não se vista, meu caro ou minha cara.
Um cientista famoso eis que declara:
na roupa, qualquer roupa, dorme o câncer.
A nudez, por igual, não recomendo,
a fim de prevenir um mal tremendo:
sábado se apurou que o nu dá câncer.
Rumo ao batente, agora. Antes, porém,
permita que eu indague: o amigo tem
um carrinho? Que azar. Carro dá câncer.
E colectivo, nem se fala. Em massa,
aumenta a perspectiva de desgraça.
No ónibus, no avião, viaja o câncer.
Invente um novo meio de transporte
para ir ao trabalho, e não à morte...
Mas sabe que o trabalho já dá câncer?
Isso mesmo: afirmou-me com certeza
uma nega com o nome de Teresa
que dar duro é uma fábrica de câncer.
Pare de trabalhar enquanto é tempo!
Mas evite o lazer, o passatempo,
que no jardim da folga nasce o câncer.
Dormir? Talvez. Ou antes, nem pensar.
Em sonho, pelo que ouço murmurar,
é quando mais solerte chega o câncer.
O amor então, é a grande solução?
Amor, fonte da vida... Essa é que não.
Amor, meu Deus, amor é o próprio câncer.
Viva, contudo, sem ficar nervoso,
mas sabendo que é muito perigoso
(lá disse o Rosa) e que viver dá câncer.
Já que você nasceu... Ah, não sabia
deste resumo da sabedoria?
Nascer, mero sinónimo de câncer.
Resta morrer, por precaução? Nem isto.
Veja, no céu, o aviso trimegisto:
no mundo de hoje, até morrer dá câncer.
Viva, portanto, amigo. Viva, viva
de qualquer jeito, na esperança viva
de que o câncer há-de morrer de câncer.
Ou morrerá - melhor - pela coragem
de enfrentarmos o horror desta linguagem
que faz do câncer dor maior que o câncer.
Pois se souber do trágico brinquedo
que é ver câncer em tudo desta vida,
o câncer vai morrer - morrer de medo.
Carlos Drummond de Andrade
Não conhecia esse. Adorei!
ResponderExcluir"Viva, portanto, amigo. Viva, viva
de qualquer jeito, na esperança viva
de que o câncer há-de morrer de câncer."
"Pois se souber do trágico brinquedo
ResponderExcluirque é ver câncer em tudo desta vida,
o câncer vai morrer - morrer de medo".
Quantas vezes não vemos mal em tudo que há na vida?