segunda-feira, 5 de março de 2012

Ressureição

cena do filme Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos

A lua estava cercada de um halo cor de leite. Ia chover. Bem. A caatinga ressucitaria, a semente do gado voltaria ao curral, ele, Fabiano, seria o vaqueiro daquela fazenda morta. Chocalhos de badalos de ossos animariam a solidão. Os meninos, gordos, vermelhos, brincariam no chiqueiro das cabras, Sinha Vitória vestiria saias de ramagens vistosas. As vacas povoariam o curral. E a caatinga ficaria toda verde.
Lembrou-se dos filhos, da mulher e da cachorra, que estavam lá em cima, debaixo de um juazeiro, com sede. Lembrou-se do preá morto. Encheu a cuia, ergueu-se, afastou-se, lento, para não derramar a água salobra. Subiu a ladeira. A aragem morna sacudia os xique-xiques e os mandacarus. Uma palpitação nova. Sentiu um arrepio na caatinga, uma ressureição de garranchos e folhas secas.
Chegou. Pôs a cuia no chão, escorou-a com pedras, matou a sede da família. Em seguida, acocorou-se, remexeu o aió, tirou o fuzil, acendeu as raízes de macambira, soprou-as, inchando as bochechas cavadas. Uma labareda tremeu, elevou-se, tingiu-lhe o rosto queimado, a barba ruiva, os olhos azuis. Minutos depois, o preá torcia-se e chiava no espeto de alecrim.
Eram todos felizes. Sinha Vitória vestiria uma saia larga de ramagens. A cara murcha de Sinha Vitória remoçaria, as nadégas bambas de Sinha Vitória engrossariam, a roupa encarnada de Sinha Vitória provocaria a inveja das outras caboclas.
A lua crescia, a sombra leitosa crescia, as estrelas foram esmorecendo naquela brancura que enchia a noite. Uma, duas, três, agora havia poucas estrelas no céu. Ali perto a nuvem escurecia o morro.
A fazenda renasceria - e ele, Fabiano, seria o vaqueiro, para bem dizer seria dono daquele mundo.
Os troços minguados ajuntavam-se no chão: a espingarda de pederneira, o aió, a cuia de água e o baú de folha pintada. A fogueira estalava. O preá chiava em cima das brasas.
Uma ressureição. As cores da saúde voltariam à cara triste de Sinha Vitória. Os meninos se espojariam na terra fofa do chiqueiro das cabras. Chocalhos tilintariam pelos arredores. A caatinga ficaria verde.
Baleia agitava o rabo, olhando as brasas. E como não podia ocupar-se daquelas coisas, esperava com paciência a hora de mastigar os ossos. Depois iria dormir.


Trecho de Vidas Secas, Graciliano Ramos

5 comentários:

  1. literatura como utopia... muito bonito esse trecho.

    ResponderExcluir
  2. O que seria dessa vida sem a esperança, não é mesmo?

    ResponderExcluir
  3. É como a parte da Baleia: preás gordos, enormes! Acho que ajuda a gente a não se desesperar.

    ResponderExcluir
  4. Tem coisa mais humana que sonhar com uma vida melhor? É um verdadeiro alento. Trecho maravilhoso!

    ResponderExcluir
  5. Esse livro é todo uma lição de simplicidade.

    ResponderExcluir