quinta-feira, 15 de março de 2012

Amor de poeta

Marcelino Freire


O poeta?

Conheci o poeta, sim, na rua.

É, na rua.

Lembro como se fosse hoje, agorinha. Existia uma praça e a gente ficava até a noite. Encostado, vendo o povo passar. Os caras para lá, lálálá. A gente às vezes assobiava sujo.

Eu trabalhava perto da São Bento. Perto da São Bento, não lembro.

Nasci em Araxá.

Sou mineiro de Araxá.

O poeta?

Ele estava de óculos, como sempre. E eu pisquei, eu pisquei assim.

Assim, ó: assim, para conquistar.

Não, não sabia.

Importante era presidente da república, governador. Nem sabia o que um poeta fazia da vida.

Não sabia.

Eu gostava de música.

De samba.

Samba de roda.

Ele me levou para sua casa, sim. Tocou piano, uma marchinha.

A gente ficou ali.

Ficou ali, só. Não tinha essa afobação no primeiro dia.

Dava para ver que era gente educada, letrada. Perguntou se eu estudava. Estudei nada. Escola era para quem tinha uma boa família.

E para quem não tinha preguiça. Eu não queria nada com a vida.

Morava na Barra Funda, Santa Cecília.

18 anos, acho.

O meu sorriso era bonito, ele dizia. E o meu corpo era bonito. Eu gostava de correr, montar, fazer exercícios.

E nadar no Rio Pinheiros.

No Rio Pinheiros, para você ver.

Ele deu um livro para mim. Eu aceitei.

O livro assinado. Se eu soubesse que valia alguma coisa não tinha jogado o livro na rua.

Jogado na chuva. Pisado em cima. Eu tinha roubado era a biblioteca toda.

Era uma biblioteca muito bonita.

Muito bonita.

Poesia nunca encheu barriga.

Até hoje é assim, não é?

A gente se encontrou outras vezes, na mesma esquina. Na mesma praça. Hoje nem sei o que foi feito daquela praça.

Você sabe o que foi feito daquela praça?

No terceiro dia, não sei. Ele veio me tocar. Eu cheio de saúde, deixei. Lálálá.

Eu não era bobo.

Ele me dava dinheiro, me dava camisa, comprava sapato. Mas foi ficando meio pegajoso. Pegajoso.

Agüentei por causa das facilidades, entende? Eu queria um terno, sei lá, uma casa.

Sim, uma casa para morar.

Ganhei um terno e um chapéu novo.

Ele conheceu meu pai, minha mãe. Conheceu minha irmã pequena.

Minha irmã pequena era doente. Morreu de repente.

Ele pagou o enterro todo.

Foi osso quando eu arranjei uma namorada. Foi osso. A coisa engrossou para o meu lado.

Queria compromisso, pode?

No meu pensamento, não era assim tão sério.

Ele inventou uma viagem só para me tirar de perto da Bebel.

Bebel era o nome dela.

Maria Isabel.

Pagou tudo e eu fui com ele. Conheci Pernambuco. Bebi muita água de coco. A gente viajou pelo Nordeste do Brasil.

Como é lindo o meu Brasil, ele dizia. Demorou cinco anos, não sei.

Que a gente ficou junto.

Ele falava sempre que tinha um livro novo. Me mostrava o jornal. Queria que eu entendesse o que ele lia, como podia? Eu, burro desse jeito.

Burro, burro.

Coisa comprida, de dá sono. Mas eu ficava ali, no maior interesse. Me dava de tudo, não queria que eu voltasse para a praça. Queria que eu ficasse com ele, a vida inteirinha.

Coisa chata. Não ia dar certo.

Fui ficando nervoso. Dei para beber. Ele ganhava uns vinhos importados. Era comigo mesmo.

O quê?

Eu também fumava. Depois que a coisa foi me cansando, aumentei o número do cigarro.

Comecei a beber cachaça.

Muita cachaça.

Ele detestava. Vivia querendo salvar o mundo com a sua poesia. Até hoje não sei para que servia tanto verso, tanto verso.

O Tietê tá aí, não deixou de morrer. São Paulo, dá dó de ver.

De quando em quando, eu lembro dele. Não dá pra esquecer, não é?

Era homem muito bom o poeta.

O que mais você quer saber? Mais o quê?

Descobriram o amante do poeta.

É. Todo mundo só fala nisso. O senhor é que foi o amante do poeta? Onde conheceu o poeta? Na rua?

A fofoca tá em tudo que é jornal.

Pode perguntar para o pessoal, ninguém daqui acredita. Ninguém acredita.

Faz tempo que eu não recebo assim tanta visita.

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