Museu Nacional, por Jéssyca Rodrigues
I
Brasília em que me esqueço e lembro
acostar-me minha vida em seu corpo alado
e dizer-me:
Liberdade,
a que me ensinastes e em que me tens,
ao velho lobo do Planalto.
II
Vira o milênio, vira o século,
mais te quero se me livras
de tuas ausências e solidões.
Que dó, que alívio
desconhecer os meus vizinhos.
E de vista,
os indignados síndicos:
anti-social que és
se pudessem te prenderiam
no mastro de uma aldeia mísera.
Brasília liberdade, minha liberdade.
III
Como a uma esfinge
não sei se te chamas Brasília
ou apenas um planisfério do céu
excessivamente coevo e desabrido.
Há de ti diversas em mim
dos tempos idos. Que amor e lembrança
das estradas vazias e dos ônibus corcovejantes.
Corcovejavam por quê?
E os pastéis de queijo da Rodoviária,
boiando em óleo, que em certos dias
navegavam em níveis de pura gula ou prazer?
Ou aquelas noites solenes
de ir-se à sala Martins Pena para ouvir Brahms,
com sotaque de Beatles
e voltar enregelado para casa,
com o vento batendo a impunidade terrível
com que Oscar* te adornou...
Ou em tempos mais antigos,
o cheiro que tinha o Núcleo nas chuvas,
resinas de tabuado ruim, de becos fétidos, de pai ausente.
Do escritório empoeirado
e a fascinante secretária, cujas pernas perfeitas
ainda agem na memória.
Depois aquela chácara no Lago Sul,
com mulher e filhos pequenos
e os primeiros devaneios sobre a natureza.
Depois aquela copa de sibipiruna na chapada do Corisco
e o leito enorme da moça.
IV
Depois, mais, depois... Acho que Brasília não existe.
Deixa-se existir.
No fim sobra a poesia do desastre de Brasília,
pó de ouro no fim da tarde de Brasília.
Nada sei ou muito. Acolá, nas roças,
o sol dura até amanhecer.
Errei eu ou errou o lugar?
Pois sabe-se que ninguém
está em Brasília por acaso,
mas por designação do poder ou dos astros.
V
Examino em mim teus defeitos
e não me acho assim tão direito,
nem tão errado.
Ao que interessa o cidadão SQN 316 – I – 504?
Dizem: tudo, nada deve fazer-se de geometria
da tirania.
Quem virá libertar Brasília, a inlibertável,
para toda e qualquer
tara libertável, ou não?
A menina carece seviciamentos.
Senão como viveremos nós,
nossos ratos de porão?
VI
Brasília, cidade amada
e alongada,
desastre monocórdio da humanidade.
Mas amo tua amnésia e disritmia.
Brasília é como viver em lugar nenhum
e curiosamente viver em algum lugar
onde só há vias, carros e elevadores.
Mas amo a esplanada de Oscar,
rampa descendente para decolar astronaves,
e outras coisinhas mais
do Santo Piemontês.*
VII
Inundemos Brasília de Amores.
Nenhum planejador de espaços
conseguiria planejá-la de amores
e os amores é que conduzem à vida.
Não nascemos e vivemos
para viver a cidade natimorta
e enrijecida de sonhos póstumos.
Liberte-se, Brasília, ainda que tarde.
Em Goiás, em Minas, no Norte inteiro
algumas coisas do Brasil
pedem a tua transfiguração e metamorfose,
assim bela, mas não assim triste.
Mas amo teus jardins.
Feitos para encherem-se
de estátuas, meteoros e namorados.
As quadras numeradas
por flores, obeliscos e cores
nunca vistos nos ultramarinos.
Quadra 316, por favor?
- à direita, no obelisco rosa.
O nome agora é quadra Azulinha.
E a danceteria dancing days?
- No centro do Eixão. Perdão,
- no Cerradão Sul.
VIII
Do anonimato
brotou Brasília, flor do Eu.
Capital da liberdade
e de uma Ilusão de Ilha
no coração do Brasil quinhentista.
Terra minha amada
e recriada,
com lágrimas de mel.
1996.
Paulo Bertran, poeta goiano, in SERTÃO DO CAMPO ABERTO.
"Do anonimato
ResponderExcluirbrotou Brasília, flor do Eu.
Capital da liberdade"