"O poeta não cita: canta.Não se traça programas,porque a sua
estrada não tem marcos nem destino.Se repete, são idéias e imagens que volvem à
tona por poder próprio, pois que entre elas há também uma sobrevivência do mais
apto . Não se aliena, como um lunático , das agitações coletivas e
contemporâneas, porque arte e vida são planos não superpostos mas
interpenetrados, com o ar entranhado nas massas de água, indispensável ao
peixe—neste caso ao homem, que vive a vida e que respira arte. Mas tal
contribuição para o meio humano será a de um órgão para um organismo:
instintiva, sem a consciência de uma intenção, automática , discreta e
subterrânea.
Com um fosso fundo ao redor de sua turris ebúrnea, deixa a
outros o trabalho de verificarem de quem recebeu informações ou influências e a
quem poderá ou não influenciar.
E o incontentamento é o seu clima, porque o artista não
passa de um místico retardado , sempre a meia jornada. Falta-lhe o repouso do
sétimo dia. Não tem o direito de se voltar para o já-feito , ainda que mais
nada tenha por fazer.
A satisfação proporcionada pela obra de arte àquele que a
revela é dolorosamente efêmera : relampeja, fugaz, nos momentos de febre
inspiradora, quando ele tateia formas novas para exteriorização do seu magma
íntimo, do seu mundo interior. Uma tortura crescente, o intervalo de um rapto e
um quase arrependimento. Pinta a sua tela , cega-se para ela e passa adiante.
Se a surdes de Beethoven tivesse lhe trazido a infecundidade, seria um símbolo.
Obra escrita—obra já lida---obra repudiada: trabalhar em comeias opacas e
largar o enxame ao seu destino, mera ventura de brisas e de asas.
Tudo isto aqui vem tão somente para exaltar a importância
que reconheço ao estimulo que me outorgastes. Grande, inesquecível incentivo. O
Magma, aqui dentro, reagiu, tomou vida própria, individualizou-se , libertou-se
do seu desamor e se fez criatura autônoma , com quem talvez eu já não esteja
muito de acordo ,mas a quem a vossa consagração me força a respeitar. Sou-lhe
grato, principalmente, pelo privilégio que me obteve de poder --- sem
demasiadas ilusões, mas reverente--- levantar a voz neste recinto, como um
menino que depõe o seu brinquedo na superfície translúcida de uma água , para a
qual a serenidade não é a estagnação, e cujo brilho da face viva nada rouba à
projeção poderosa da profundidade.(...)"
Discurso proferido por João Guimarães Rosa quando do recebimento de um prêmio pela Academia Brasileira de Letras, por seu livro de poemas Magma, publicado em 1936.
Revista da Academia Brasileira de Letras, anais de 1937, ano 29,vol. 53, p.261-263.
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